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Friday, May 31, 2013

A NOITE SEM FIM - Hamilton Alves





Resta-me ainda
A noite sem fim
Para traçar uma fuga
Ou uma escapatória

Ou elaborar um plano
Qualquer que permita
Me esconder ou achar
A fórmula do invisível

Ou percorrer a calada
Da noite para em seus
Brandos refolhos

Passar incólume aos
Olhos da multidão
Que vem e vai.

         x x x

Nov/09

Thursday, May 30, 2013

A ARANHA - Hamilton Alves






                                                           Uma aranha pequenina, minha velha conhecida desde os tempos da infância, invadiu, nessa tarde, minha privacidade. Não vou descrevê-la porque todo mundo a conhece, de tão comum e rotineira que é sua presença por toda parte. É uma peralta. Quando tentei pegá-la (ou colocar meu dedo na sua travessia para trazê-la sem risco para um local mais seguro), quem disse que o agarraria? Evitava-o sempre, como se imaginasse que, se o fizesse, estaria em maus lençóis.
                                                           Insisti com outras estratégias, que não lograram sucesso. Pelo que resolvi abandonar meu intento de pegá-la.
                                                           Começou a dar pequenos saltos (que me lembraram o Homem Aranha), mudando de um lugar para outro, sem achar rumo certo.
                                                           Enquanto esperava uma ligação telefônica, me distrai observando-a. Houve um momento em que sumiu completamente. Devia ter se enfiado em algum lugar. Tinha até me ocupado com outras coisas. Afinal, que importância teria uma aranhazinha de nada?
                                                           Abri uma gaveta onde estavam uns textos, que precisava revisar.
                                                           Depois de concluído esse trabalho, que não me tomou muito tempo, eis que reaparece agora num plano reto, não mais numa vertical, como se exibira pouco antes, desafiando a lei da gravidade. Bem, para aranha não existe o fenômeno da gravidade. Ou de planos.
                                                           Reparava nos seus detalhes. Sempre simpatizei com esse tipo de aranhazinha. Tem uma cabecinha do tamanho de uma de alfinete, talvez até menor, seis perninhas. Tem uma mobilidade incrível, além do dom de saltar (saltos pequenos, bem verdade, não exatamente como o Homem Aranha, que, nesse item, é bem mais arrojado). 
                                                           Comecei a pensar que o autor do Homem Aranha (ou que o inventou) deve provavelmente ter se inspirado nessa diminuta aranha. Ela é uma espécie de Homem Aranha em miniatura. Tem praticamente todas as suas principais características.
                                                           Quando reapareceu a minha frente, recomecei uma perseguição, quis novamente encontrar uma solução para sair do beco sem saída em que se meteu. Fugira outra vez com uma facilidade espantosa.
                                                           Em cima de livros, entre papéis, procurara se alojar. A empregada podia sem querer lhe dar um golpe que lhe poderia ser fatal.
                                                           Redobrei meus esforços para dominá-la. Em vão. Tinha sempre um modo de escapar ou esconder-se. Coloquei as mãos em concha para não lhe permitir a menor chance de fugir. Deu um salto mortal por sobre a muralha erguida, ganhando a liberdade e se metendo onde não percebi.
                                                           Olhei o relógio. O tempo voava. Que se danasse (pensei). Tranquei a porta e saí.

(junho/10)

Wednesday, May 29, 2013

EM “A UMA SOMBRA” JAYRO SCHMIDT FAZ LUZ SOBRE VÁRIOS TEMAS (Editado em 1998, o livro do escritor e professor de arte marca um momento importante na ensaística deste Estado) - Hamilton Alves

  


            Dentre os devotos da arte (ou aqueles que têm se dedicado à atividade cultural) não se pode deixar de mencionar o nome do professor Jayro Schmidt, que, com seu livro “A uma sombra” (Bernúncia Editora, 208 págs.), contendo pequenas resenhas publicadas no “Anexo”, encarte do jornal “A notícia”, entre 95 e 98, deu uma contribuição bastante significativa à ensaística neste Estado, enfocando vários temas, alguns deles pouco ou raramente abordados.
            Logo após o lançamento desse livro, lendo-o atentamente, pude perceber que Jayro tocava em alguns problemas capitais, que, alguns de nós, ainda que por eles mostrássemos interesse, nunca avançáramos, porém, uma percepção mais ampla e percuciente como ele o fez, na esteira do entendimento revelado por autores e até filósofos de renome internacional.
            Não é apenas o tratamento dado aos temas, isto é, sua abordagem direta ou no plano do intelecto, mas principalmente a linguagem colocada a serviço de tal abordagem me pareceu de uma propriedade ou de uma qualidade que pouquíssimos outros escritores, mesmo a nível nacional, alcançaram. Estarei dizendo, por acaso, algum disparate? Convido o leitor a tirar, por si mesmo, a prova dos nove lendo-o.
            O que mais espanta e admira é que o autor nunca passou pelos bancos de uma escola universitária, sendo um autodidata puro, que, em um dos seus trabalhos (fora do livro) declarou, certa vez, que, para aprender, teve que se afastar da escola, querendo dizer, com isso, numa crítica velada ao ensino que se adota nas universidades, que o sistema de educar, nas academias, chegou a um ponto tal de deterioração, que não sugere nem incita, a quem quer aprofundar-se na ciência ou em qualquer ramo da ciência, o desejo de freqüentar  o mofento currículo de uma escola dessas.
            A bem de tal posição (ou colocação) é bom lembrar que o maior escritor deste país continua sendo um autodidata, Machado de Assis.
            Não vai nisso nenhum desejo de defender a opinião de que o autodidatismo é o único caminho a ser trilhado para quem deseja adquirir conhecimentos em qualquer área científica. Mas para uma espécie de talentos (que é o caso típico de Jayro), a escola regular ou a freqüência a um curso regular parece ser, a princípio, um entrave ao aprofundamento de conhecimentos.
            Mas à parte tais questões, absolutamente irrelevantes para o que, a seguir, se vai tratar, a obra de Jayro, antes de tudo, ou antes de ser o que já foi dito, ou seja, a abordagem de temas referentes às artes e até, muitos deles, de caráter puramente filosófico, prima, a meu ver, por ser um manancial precioso de informações desses mesmos temas, de cujas páginas o leitor sai mais enriquecido.
            Tive ocasião de dizer isso ao Jayro num encontro casual que tivemos, pegando-o, pelo que senti, um pouco de surpresa, pois acredito que ele próprio talvez não reconhecesse que seu livro pudesse ter ou conter assuntos ou o tratamento de questões tão importantes. Ou colocações às vezes desconcertantes pelas quais outros passaram de uma forma mais ou menos superficial e nem sempre com a necessária precisão.
            Seria difícil senão quase impossível fazer um relato completo e detalhado de todos os bons momentos desse livro. Se o fizéssemos, certamente não o lograríamos com êxito no modesto espaço de uma resenha. Ou desta, especificamente.
            Para esta breve análise da obra, valho-me de um outro exemplar, não do meu, que me foi dedicado pelo escritor, onde pacientemente anotei tudo o que me interessava. Daí que, agora, essa pesquisa do que para mim se destacou, entre tudo, torna-se mais trabalhosa.
            Mas mesmo assim, com essa dificuldade considerável, vou tentar fazer uma amostragem de alguns enfoques nela contidos.
            Quem se propor a percorrer as páginas de “A uma sombra” carece de fazê-lo munido de alguma erudição para bem assimilar colocações rarefeitas, como é, por exemplo, o caso de uma das referências iniciais, envolvendo o exame do Cânone Ocidental, de Harold Bloom, em que Shakespeare e Dante são colocados no centro desse Cânone, além do conflito do ser e consciência de Kafka. Referindo-se a este, diz: “A seus personagens estão reservados o não lugar, o nada. Não se sabe o que são e o que representam” (pág. 15).
            Detém-se em Vechietti, nosso grande artista plástico, diria um dos mais importantes tapeceiros, tão bom quanto o famoso Luçart, cultuado por muitos colecionadores, um dos quais foi o ex-ministro das Relações Exteriores Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Referindo-se ao artista, Jayro considera a posição ímpar que manteve a vida toda em relação as suas opiniões estéticas. Ou a uma espécie de independência intelectual solitária, muito precoce para a época em que viveu. Ou em que apareceu como artista plástico.
            Uma das poucas abordagens ao filme “Limite”, de Mário Peixoto, descobri ou vim a ler nesse livro, a partir da qual fiz todas as tentativas de vê-lo até agora inúteis. Um filme que, como anota Jayro, foi visto e muito apreciado por ninguém menos que Orson Welles, Eisenstein e Pudovkine. “Limite – diz Jayro – foi taxado como arte pura, inacessível ao grande público. Para entendê-lo, na opinião de Octávio de Faria, é preciso um certo hábito de ver cinema, como arte, - o cinema autêntico, que vem sendo perdido com o vozerio e o catastrofismo do cinema falado. A percepção da singularidade estética das coisas faz de “Limite” uma realização isolada”.
            Não calculo, ao repassar novamente os artigos/ensaios desse livro, o que se pode ainda colher que não provoque de imediato uma espécie de visão renovadora, que nos desperta para o sentimento de que uma coisa vista ou percebida pode ser revista de um ângulo mais profundo. A cada passo, é esse sentimento que vai se apossando do leitor, que tem muitas vezes de exigir muito de si para acompanhar a altura rarefeita a que o autor nos arrasta.
            Jayro Schmidt desenvolve uma abordagem intelectual múltipla, tanto é que seu livro vai desde a crítica (ou seria melhor dizer comentário) a pintores, campo em que é um especialista como professor de arte do CIC (Centro Integrado de Cultura), até o exame de questões que dizem respeito à filosofia e às letras, de passagem pelo cinema, uma espécie assim de enciclopedista da cultura.
            Há uns poucos anos, mantivemos uma polêmica epistolar sobre a obra de Picasso “As senhoritas d’Avignon”, que pretendemos oportunamente editar com cerca de trinta cartas de cada qual. Seguramente suas opiniões, como pude constatá-lo, são muito técnicas e especializadas. Medir forças com ele, em qualquer área das artes em geral, é uma parada difícil. Mantém invariavelmente um entendimento muito particular e avançado.
            Alongar-me em considerações sobre seu livro, como disse, não é tarefa para uma mera resenha de jornal, e, sim, para uma análise mais metódica e que incorpore todos os aspectos que ali vêm muito bem considerados.
            Mas há uma pequena colocação de Jayro quando ele diz que Cèzanne é o pintor básico, querendo dizer que teria sido uma espécie de precursor da arte moderna que se seguiu após ele, o cubismo, notoriamente. Até hoje (posso estar redondamente enganado), não consegui gostar da pintura de Cèzanne. Não estou solitário nessa opinião. O escritor francês Émile Zola não a apreciava também. Ambos amigos e originários da mesma cidade, Aix –au-Provence.
            Jayro diz precisamente que “Cèzanne foi a base irradiadora” (pág. 23).
            Suponho que deve ter fortíssimos argumentos para ter Cèzanne em tal conta. Seu livro do começo ao fim é um convite a um banquete cultural imperdível, envolvendo esse e mais outros assuntos fascinantes.

           
           
           

            

Tuesday, May 28, 2013

FUGAZ AURORA – Hamilton Alves






Tingida a aurora
De azul e rosa

É tudo que quero
Agora

Anseio a plenitude
Afora

O que traz
A fugaz hora

No vislumbre
Ora ali, ora aqui

De quanto de belo
Oferece a desoras

        x x x

(junho/10 )

Monday, May 27, 2013

DESENHO DE UMA CADEIRA – Hamilton Alves

 

            Num dos contos de Rubem Fonseca, em seu livro “Pequenas Criaturas”, dois personagens se encontram num local chiaroscuro, como ele anota, uma cor meio palescente (como ele diz também), e ali, fugidos de uma festa chata de fim de ano, começam a conversar, ele atraído pela sedução do escuro, alegando que a treva permite a plena lucidez.
            Ela revela-se desenhista industrial. E, por isso, ele lhe pergunta:
- Você já desenhou uma cadeira?
Ela diz que cadeira ainda não, mas já desenhou profissionalmente um relógio, torradeira de pão, calendário eletrônico, coisas mais fáceis.
A pergunta, se o leitor é um pouco sensível às artes gráficas, leva a um aprofundamento da questão estética.
É possível que se julgue que o desenho de uma cadeira seja uma coisa banal, que qualquer um pode fazer. E, no entanto, não é bem assim; há certa sutileza; em todas as coisas deste mundo há sutileza; nós é que temos a mania de simplificar muito as coisas.
Eu não seria capaz de desenhar uma cadeira. Desenhar uma cadeira pode ser uma coisa reles. Uma cadeira qualquer todo mundo desenha, até o mais imbecil dos homens. Mas não se trata apenas de simplesmente desenhar uma cadeira. A cadeira objeto da pergunta envolve certamente uma cadeira original. Porque para desenhar uma cadeira não precisaria existir uma pessoa que tivesse passado anos numa faculdade para se formar na área de desenho industrial. A cadeira em questão ou implícita na pergunta “Você já desenhou uma cadeira?” é algo absolutamente revolucionário, uma cadeira que nunca existiu semelhante, inteiramente nova aos olhos humanos.
Tanto é que à pergunta o personagem de Fonseca responde, como vimos:
- Uma cadeira nunca desenhei.
E passa , a seguir, a nomear coisas mais fáceis.
Não tenho particularmente tendência à tal profissão. Há que ter vocação. Ter jeito para desenhar. Nunca tive esse dom. Lembro-me que deixei de fazer o exame de segunda época, certa ocasião, no curso ginasial, porque além de duas outras matérias tinha rodado em desenho. O professor de desenho botou um vaso em cima de uma coluna (era um cubo) para que os alunos o desenhassem de seu ângulo de visão, incluindo a luz do sol, com a projeção da sombra.
Depois de concluído meu desenho, que levei um tempão para executar, detestei-o e achava que não seria merecedor de uma boa nota. Desenho não devia constar obrigatoriamente de currículo escolar. Nasce-se com certos pendores. Desenhar está entre tais inclinações. Ou se adquire de berço ou não se adquire nunca.
A personagem era formada em desenho industrial e nunca tinha desenhado uma cadeira.

Na verdade, não é nada fácil desenhar uma cadeira.   

Friday, May 24, 2013

UM ESTRANHO AMIGO – Hamilton Alves

 

            Conheci há muitos anos um homem magro, alto, ralos cabelos, uma testa larga, que era o que mais sobressaia em seu rosto, uns olhos pequenos cobertos de óculos de lentes grossas. Vestia-se de forma imaculada mas simples, sem afetação, como se a roupa acabasse de sair da lavanderia. Encontrávamo-nos de quando em quando em qualquer rua, em qualquer lugar, perdidos ambos em nossas andanças. Tinha sido seminarista e esteve perto de ordenar-se. Soube disso por dados que pouco a pouco foi me fornecendo, porque, a seu respeito, falava pouco ou nada. Era um homem beirando os sessenta anos. O tema que ambos debatíamos era filosófico, ele com conhecimentos muito mais sólidos que os meus. Não era dogmático. Nutria suas convicções, mesmo religiosas, com simplicidade e humildade. Comungava de seus sentimentos e de suas visões das coisas. Éramos espíritos afins. Que, no fundo, guardavam uma grande dúvida sobre tudo.
            Em geral, era na praça que se davam nossos encontros. Ele aparecia de repente, vindo não ei de onde – e não marcávamos encontro; acontecia ao acaso. Falava devagar. Tinha um riso mal esboçado, como se até para rir se mostrasse inibido.
            Sua presença me fazia bem. Era a amizade de um homem maduro para um adolescente que, no fundo de si mesmo, já deparara com tantos mistérios.
-       O que ele via em mim? – me perguntava.
No que poderia eu de alguma forma corresponder a sua erudição, um homem que como revelara, quase se ordenara. Conhecia línguas, filosofia, etc.
Praticamente, a esse tempo, não concluíra o ginásio. Interrompera minha atividade escolar antes de ingressar no clássico (2º grau hoje). Mas lia, lia tudo o que me caísse às mãos. O tema religioso sempre me fascinara. Por esse tempo, andava lendo “Os Thibault”, de Roger Martin Du Gard, um escritor voltado à questão da existência de Deus.
Embebera-me de Du Gard. Não cheguei ao término do livro porque Jacques, um dos personagens, no segundo volume, fizera uma quixotada.
Ao meu amigo nunca revelei minhas leituras. Nem lhe falei que estava lendo “os Thibault”.
Notava que ele não ia diretamente às questões, abordava-as aos poucos, como se tivesse receio de aprofundá-las, sentindo-me certamente inexperiente para avançar mais além do que eu podia. Perdia-se, assim, muitas vezes, em devaneios, esboçando um risinho simpático.
Dizia as coisas pausadamente como se refletisse muito ante de dizê-las. Parecia estar sempre absorvido em si mesmo.
Certa feita, deu-me a saber que trabalhava no escritório de uma empresa. Era só, morava só, não tinha família, era do interior, presumivelmente de origem alemã, mas também sobre isso nunca fez qualquer referência. Não falava de si mesmo. Só se interessava em trocar comigo algumas palavras, embora parcas. Nunca abordávamos assunto da hora, para nós ambos sem qualquer atrativo, como se isso estivesse implicitamente acertado.
Nunca referiu que estivesse lendo algum livro, embora fosse homem de muitas leituras.
Era, em suma, um erudito, mas não fazia a mínima ostentação dessa erudição.
Era um homem afável, que custava encontrar as palavras para exprimir-se, que, a falar, preferia o silêncio.
Muitas vezes surpreendia-o a fitar um ponto qualquer, como se vagasse por mundos desconhecidos.
Quando voltava à conversa parecia emergir desse vale de sombras ou de uma vertigem qualquer.
Pouco tempo depois nossos encontros se extinguiram.
Era um bom amigo, de quem eu não sabia nada, nem mesmo o nome.


Thursday, May 23, 2013

UM POEMA DE BROWNING – Hamilton Alves

 

            O poeta inglês Browning tem um poema lindíssimo, que vim de conhecer há pouco, com o título de “O amante de Porfíria”. Trata-se, resumidamente, do seguinte: um homem se apaixona desesperadamente por uma mulher. “Esta noite a chuva chegou”, diz o primeiro verso. A chuva contextualiza, de certa forma, o restante dos versos. Abre caminho a que, a certa altura, o poeta narre que, quando a amada chegou, sentou-se ao lado dele. E, súbito, tudo pareceu-se aquecer à sua presença. Desnudou os ombros alvos, macios, de cabeleireira loura, em desalinho, inclinou-se levando a face dele a aninhar-se à face dela. Ciciou seu amor por ele, ela fraca para cortar as amarras da vaidade, e entregar-se para sempre para ele. Teve a certeza de que a amante o adorava; o coração se expandia enquanto meditava no que faria. Naquele instante, ela era sua. Descobriu, então, o que lhe cabia fazer. Com o seu cabelo entrançou uma corda loira e longa, que lhe enrolou três vezes ao pescoço. Estrangulou-a. ela não sentiu dor. Abriu-lhe as pálpebras e voltaram a sorrir seus olhos azuis imaculados. A seguir, desapertou a trança que lhe cingia o pescoço e sua face voltou a avivar-se num rubor sob o beijo que lhe deu. Amparou-lhe a cabeça, só que dessa vez foi o ombro dele que susteve a cabeça que sobre ele descai. Minúscula cabeça rosada e sorridente tão feliz de possuir tudo o que queria, de ter de súbito cessado tudo o que desdenhava e de em vez disso ter conquistado o amor dele. O amor de Porfíria –ela não podia imaginar como o seu mais grato desejo ia se realizar.
            Termina o poema com estes derradeiros versos, que coloco aqui em forma de prosa:
            “E aqui estamos juntos, sentados, agora; ficamos imóveis durante a noite inteira e Deus está emudecido”.
            A dois amigos mandei esse poema, um dos quais é poeta; o outro, apreciador do gênero, tem também bom senso crítico.
            Num dia desses, o primeiro me surpreendeu com o comentário de que lhe pareceu que o amante mata a amada não apenas para sublimar o amor ou para perpetuá-lo, impedindo que se lançasse no abismo do efêmero, mas que lhe parecia que outro aspecto se adivinhava: não pudera consumar a cópula com a amada.
            Essa hipótese me pareceu despropositada e lhe retruquei que, no que se referia ao ato sexual, me parecia circunstância absolutamente irrelevante. O amante não mataria a mulher por se ver impotente, o que, a admitir-se, o poema perderia inteiramente o impacto de beleza que tem.
            Comentei essa questão com o segundo amigo para tirá-la a limpo. No primeiro momento, entendeu que tal interpretação não cabia. A intenção do amante, concordava com o meu ponto de vista, era a perenização do amor, sujeito a todas as vicissitudes das transformações porque passa a alma ou os sentimentos humanos.
            Dias depois, esse amigo me diz que lera com mais vagar e atenção o poema de Browning e chegara também, meditando melhor, à opinião do outro, segundo a qual também entrou no ato de morte o problema da impotência.
            Mantive irredutível a minha posição inicial de que essa interpretação do assassínio  desvirtua de sua grandeza o poema, até porque a satisfação do sexo é um ato animal, que não se compraz à transcendência da poesia de Browning, ou das intenções que deixou impressas nesse trabalho. Embora ambos admitam que a outra ilação, a de perpetuação do amor ou da paixão amorosa, é também de considerar, o fato é que as duas interpretações, se aceitas, não convivem bem, uma empobrecendo a outra.
            Já um terceiro amigo me levou o livro de poemas de Browning. Não o tenho encontrado nos últimos tempos, razão pela qual não tive a oportunidade de conhecer seus pensaments quanto à interpretação que colheu desse poema.
            Trata-se de um eminente homem de letras, que poderia nos tirar a mim e aos meus dois outros amigos desse dilema, não obstante da minha parte não esteja disposto a ceder a quem quer que espose a tese deles.
            O leitor não tem o poema integral, apenas alguns dados. Daí que possa Ter dificuldades de bem interpretá-lo.
Insisto apenas num único ponto, que, para mim, é capital: aceitar que o amante recorreu ao homicídio da amada porque não pôde concretizar a posse me parece reduzir a beleza do poema ou até mesmo desfigurá-lo.

            Browning quis colocar o sentimento do amor num nível de totalidade, eternizá-lo, para que nenhum outro fato humano fosse capaz de destruí-lo. É o que penso.