A MORTE DE DEUS
(Hamilton
Alves)
Numa
sexta-feira de abril
de um ano
de que não
há registro , num hotel
da rua Conselheiro
Mafra, em que
durante uma semana
ocupou uma água-furtada , de onde se tinha
uma bela visão
da baía sul , Deus morreu.
Quando
se deu pelo fato, houve um alarido no pequeno hotel. O gerente ficou feito
barata tonta quando a camareira lhe pôs a par do ocorrido.
-
Mas por que Deus está morto? – perguntou ele muito tenso à camareira.
-
Sabe-se lá porque! Hoje, à tarde, quando fui arrumar o quarto, o corpo
estava caído do lado da cama.
Imediatamente, depois de
constatar o fato, temeroso do escândalo que a morte de Deus poderia provocar, o
gerente, com toda a cautela, dirigiu-se à Delegacia de Polícia, onde manteve
contato com o comissário de plantão, que foi encontrado sentado numa cadeira
rolante, lendo um gibi, com as pernas repousando em cima da mesa.
-
Boa tarde.
-
Boa tarde. – respondeu o comissário. O que é que manda?
-
Um homicídio!... E logo no hotel em que trabalho.
-
O que é que aconteceu?
-
Deus morreu hoje de tarde.
-
Deus morreu?!... Você deve estar brincando. A morte de Deus foi
anunciada pelo filósofo Nietzche, mas nem por isso se deu ao caso maior
importância; Deus continua vivo e bem vivo. Você enlouqueceu!
-
Não se trata do Deus bíblico.
-
De quem se trata então?
-
Este Deus a que me refiro é outro Deus. É um homem como eu e você, de
carne e osso.
-
Mas como ousa chamá-lo de Deus?
-
Nós o chamávamos de Deus. Era corriqueiro no hotel, desde o dia em que
lá se hospedou.
-
Tem outro nome então?
-
Sim.
-
Como se chama?
-
José de Deus.
-
Então está explicado. Começo a entender melhor as coisas.
O policial mexeu nuns
papéis, pegou um cigarro, acendeu-o, empertigou-se, olhou de frente seu
interlocutor e lançou-lhe a pergunta.
-
Mas afinal, de que ele morreu?
-
Pois é... isto é que convém saber.
-
Estava há muito tempo hospedado no hotel?
-
Fazia já uma semana.
-
Como foi que souberam do fato?
-
A camareira hoje à tarde foi entrar no quarto para a faxina de rotina e
viu o corpo caído ao lado da cama.
-
Estava morto?
-
Sim, ela disse que o encontrou morto.
-
Ele tinha algum tipo de relacionamento com alguém conhecido?
-
Não, ninguém o visitara durante esse tempo no hotel.
-
Quem poderia tê-lo matado?
-
Quem é que sabe!
-
Ele costumava ir a algum local conhecido, recebia telefonemas ou coisas
desse tipo?
-
Nada se sabe em torno de sua vida. Era uma pessoa esquisita, de pouca
fala.
-
Isso torna tudo difícil. Bem, providenciarei a remoção do corpo para
fazer-se a autópsia. Em seguida, será aberto o inquérito. É tudo o que nos
cabe, no caso, fazer.
O policial, seguido do
gerente, dirigiu-se à garagem da Chefatura de Polícia. Embarcaram num carro.
Foram até o hotel. Uma ambulância retirou o corpo de onde se encontrava e o
levou ao Instituto Médico Legal, onde se veio a constatar a morte de Deus por
ter feito ingestão excessiva de barbitúricos.
Ao tomar conhecimento do
fato, alguns repórteres estiveram na Delegacia.
-
Soube-se que Deus morreu. Ou matou-se, comissário. Que pode adiantar
sobre o fato?
-
Tudo se resume à ingestão de dose letal de barbitúricos.
-
Não foi crime, então?
-
Não havia vestígio de luta corporal no local em que foi encontrado o
corpo.
-
Por que Deus teria se matado?
-
Quem sabe?!...
-
De onde teria vindo?
-
O gerente me disse que ele era caixeiro-viajante.
-
Não é um ofício muito condigno a Deus.
-
Não brinque. Não seja sacrílego.
-
Mas não é conhecido por esse nome?
-
Sim, todos o conheciam por Deus. O nome dele é José de Deus
-
A polícia não fará nenhuma diligência além da que já fez para apurar
outros fatos ligados à morte de Deus?
-
O que é que você espera que a polícia faça?
-
É possível que alguém lhe tenha servido algum líquido envenenado ou uma
garrafa de bebida contendo dose excessiva de alguma droga. Deus não se mataria
á-toa.
-
Por que não?
-
O senhor sabe alguma coisa a respeito da sua vida pregressa? Acaba de
me dizer que não se sabe de onde veio.
-
Quem é que teria motivos para matá-lo?
-
Há tanta gente interessada em matá-lo.
-
Quem?
-
Isso não é pergunta que o senhor me faça. O senhor mesmo deve fazê-la a
si mesmo.
-
Vocês, jornalistas, sempre pretendem bisbilhotar em torno de razões às
vezes imponderáveis.
-
Mas o caso não se encerrou com a simples constatação da morte de Deus.
Há que ir até o fim.
-
O gerente me disse que ele deixou apenas o nome no registro de hóspedes
e quando foi perguntado de onde tinha vindo não disse nada. Disse apenas que
acabara de chegar à cidade e, ao declinar sua profissão, disse ser
caixeiro-viajante.
-
O que é que ele vendia?
-
Livros.
-
Procurou-se saber se tinha visitado alguma livraria ou biblioteca?
-
O gerente nada disse a tal respeito.
-
O caso, então, a seu ver, está encerrado. A morte de Deus fica por isso
mesmo?
-
Não temos até agora nenhuma pista.
-
Não se procurou algum documento que revele sua identidade ou o lugar de
onde teria vindo?
-
Nada constava numa pequena maleta que o acompanhava, nada nos bolsos de
sua roupa, que, aliás, se resumia a duas calças, três camisas, dois pares de
meia, duas ou três cuecas e um casaco pendurado num cabide atrás da porta do
quarto que ocupou.
-
Isto é tudo?
-
Sim.
-
Nada mais?
-
Nada.
Houve um longo silêncio. O
comissário puxou novamente um cigarro do bolso, acendeu-o, deu algumas
baforadas, olhou por uma janela por onde se via uma nesga do mar. Àquela hora,
transitavam por ali alguns barcos.
-
Deus tinha que escolher logo esta Ilha para morrer. – disse, entre
dentes, o comissário.
Parecia ter pensado em voz
alta, dando azo a que o jornalista perguntasse:
-
Não seria o caso de checar as livrarias da cidade ou a biblioteca
pública? Pode ser que tivesse mantido contato com elas
-
Já foi tudo devidamente checado. Ninguém sabe informar nada sobre a
existência de Deus.
-
Isso dá o que pensar... – disse o repórter.
-
O que é que você pretende dizer?
-
Mas se ninguém sabe da existência de Deus... isso é muito curioso.
-
Por que?
-
Ora, se ele era caixeiro-viajante, algum contato devia manter com o
comércio de livros. Não acha?
-
Mas o que se apurou até agora é que ninguém o viu. Ninguém sabe dizer
nada. Nada se prova. O que é que você quer?
-
É estranho!...
-
Por mais estranho que lhe possa parecer, os fatos são estes - declarou
peremptório o comissário como querendo pôr uma pá de cal no assunto.
-
A polícia não tomará mais nenhuma iniciativa?
-
Estamos coletando dados, mas não creio que esse caso envolva algum
crime.
-
Por que o senhor está tão certo disso?
-
O gerente informou que Deus não foi visitado por ninguém no dia dos
fatos. Não manteve também nenhuma ligação telefônica com qualquer pessoa. Que
conclusão tirar disso?
-
Alguém poderia ter se infiltrado no quarto e lhe servido o líquido
contendo a droga. Havia uma jarra de água em sua mesinha de cabeceira.
-
Quem foi que lhe disse que tinha uma jarra de água na cabeceira dele?
-
O gerente.
-
Você o entrevistou também?
-
Antes de vir aqui, estive com ele.
-
Nada me disse a tal respeito.
-
São dados importantes.
-
Você tem razão. Voltarei a entrevistar o gerente para que confirme
esses detalhes.
Na entrevista mantida com o
gerente, este repetiu tudo o que o policial já sabia e confirmou a existência
de uma jarra d’água à cabeceira da cama de Deus.
Teria tomado da água da
jarra onde poderia ter sido colocada a dose fatal de barbitúricos.
A polícia, apesar de todo o
levantamento feito, não chegou a nenhuma conclusão de ter havido crime.
Nunca se soube nada a
respeito da morte de Deus. E muito menos da sua vida pregressa. O mistério
envolveu para sempre este rumoroso caso. Até hoje.
(fim)
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