Dentre
os devotos da arte (ou aqueles que têm se dedicado à atividade cultural) não se
pode deixar de mencionar o nome do professor Jayro Schmidt, que, com seu livro
“A uma sombra” (Bernúncia Editora, 208 págs.), contendo pequenas resenhas
publicadas no “Anexo”, encarte do jornal “A notícia”, entre 95 e 98, deu uma
contribuição bastante significativa à ensaística neste Estado, enfocando vários
temas, alguns deles pouco ou raramente abordados.
Logo
após o lançamento desse livro, lendo-o atentamente, pude perceber que Jayro
tocava em alguns problemas capitais, que, alguns de nós, ainda que por eles
mostrássemos interesse, nunca avançáramos, porém, uma percepção mais ampla e
percuciente como ele o fez, na esteira do entendimento revelado por autores e
até filósofos de renome internacional.
Não
é apenas o tratamento dado aos temas, isto é, sua abordagem direta ou no plano
do intelecto, mas principalmente a linguagem colocada a serviço de tal
abordagem me pareceu de uma propriedade ou de uma qualidade que pouquíssimos
outros escritores, mesmo a nível nacional, alcançaram. Estarei dizendo, por
acaso, algum disparate? Convido o leitor a tirar, por si mesmo, a prova dos
nove lendo-o.
O
que mais espanta e admira é que o autor nunca passou pelos bancos de uma escola
universitária, sendo um autodidata puro, que, em um dos seus trabalhos (fora do
livro) declarou, certa vez, que, para aprender, teve que se afastar da escola,
querendo dizer, com isso, numa crítica velada ao ensino que se adota nas
universidades, que o sistema de educar, nas academias, chegou a um ponto tal de
deterioração, que não sugere nem incita, a quem quer aprofundar-se na ciência
ou em qualquer ramo da ciência, o desejo de freqüentar o mofento currículo de uma escola dessas.
A
bem de tal posição (ou colocação) é bom lembrar que o maior escritor deste país
continua sendo um autodidata, Machado de Assis.
Não
vai nisso nenhum desejo de defender a opinião de que o autodidatismo é o único
caminho a ser trilhado para quem deseja adquirir conhecimentos em qualquer área
científica. Mas para uma espécie de talentos (que é o caso típico de Jayro), a
escola regular ou a freqüência a um curso regular parece ser, a princípio, um
entrave ao aprofundamento de conhecimentos.
Mas
à parte tais questões, absolutamente irrelevantes para o que, a seguir, se vai
tratar, a obra de Jayro, antes de tudo, ou antes de ser o que já foi dito, ou
seja, a abordagem de temas referentes às artes e até, muitos deles, de caráter
puramente filosófico, prima, a meu ver, por ser um manancial precioso de
informações desses mesmos temas, de cujas páginas o leitor sai mais
enriquecido.
Tive
ocasião de dizer isso ao Jayro num encontro casual que tivemos, pegando-o, pelo
que senti, um pouco de surpresa, pois acredito que ele próprio talvez não
reconhecesse que seu livro pudesse ter ou conter assuntos ou o tratamento de
questões tão importantes. Ou colocações às vezes desconcertantes pelas quais
outros passaram de uma forma mais ou menos superficial e nem sempre com a
necessária precisão.
Seria
difícil senão quase impossível fazer um relato completo e detalhado de todos os
bons momentos desse livro. Se o fizéssemos, certamente não o lograríamos com
êxito no modesto espaço de uma resenha. Ou desta, especificamente.
Para
esta breve análise da obra, valho-me de um outro exemplar, não do meu, que me
foi dedicado pelo escritor, onde pacientemente anotei tudo o que me
interessava. Daí que, agora, essa pesquisa do que para mim se destacou, entre
tudo, torna-se mais trabalhosa.
Mas
mesmo assim, com essa dificuldade considerável, vou tentar fazer uma amostragem
de alguns enfoques nela contidos.
Quem
se propor a percorrer as páginas de “A uma sombra” carece de fazê-lo munido de
alguma erudição para bem assimilar colocações rarefeitas, como é, por exemplo,
o caso de uma das referências iniciais, envolvendo o exame do Cânone Ocidental,
de Harold Bloom, em que Shakespeare e Dante são colocados no centro desse
Cânone, além do conflito do ser e consciência de Kafka. Referindo-se a este,
diz: “A seus personagens estão reservados o não lugar, o nada. Não se sabe o que
são e o que representam” (pág. 15).
Detém-se
em Vechietti, nosso grande artista plástico, diria um dos mais importantes
tapeceiros, tão bom quanto o famoso Luçart, cultuado por muitos colecionadores,
um dos quais foi o ex-ministro das Relações Exteriores Francisco Clementino de
San Tiago Dantas. Referindo-se ao artista, Jayro considera a posição ímpar que
manteve a vida toda em relação as suas opiniões estéticas. Ou a uma espécie de
independência intelectual solitária, muito precoce para a época em que viveu.
Ou em que apareceu como artista plástico.
Uma
das poucas abordagens ao filme “Limite”, de Mário Peixoto, descobri ou vim a
ler nesse livro, a partir da qual fiz todas as tentativas de vê-lo até agora
inúteis. Um filme que, como anota Jayro, foi visto e muito apreciado por
ninguém menos que Orson Welles, Eisenstein e Pudovkine. “Limite – diz Jayro –
foi taxado como arte pura, inacessível ao grande público. Para entendê-lo, na
opinião de Octávio de Faria, é preciso um certo hábito de ver cinema, como arte,
- o cinema autêntico, que vem sendo perdido com o vozerio e o catastrofismo do
cinema falado. A percepção da singularidade estética das coisas faz de “Limite”
uma realização isolada”.
Não
calculo, ao repassar novamente os artigos/ensaios desse livro, o que se pode
ainda colher que não provoque de imediato uma espécie de visão renovadora, que
nos desperta para o sentimento de que uma coisa vista ou percebida pode ser
revista de um ângulo mais profundo. A cada passo, é esse sentimento que vai se
apossando do leitor, que tem muitas vezes de exigir muito de si para acompanhar
a altura rarefeita a que o autor nos arrasta.
Jayro
Schmidt desenvolve uma abordagem intelectual múltipla, tanto é que seu livro
vai desde a crítica (ou seria melhor dizer comentário) a pintores, campo em que
é um especialista como professor de arte do CIC (Centro Integrado de Cultura),
até o exame de questões que dizem respeito à filosofia e às letras, de passagem
pelo cinema, uma espécie assim de enciclopedista da cultura.
Há
uns poucos anos, mantivemos uma polêmica epistolar sobre a obra de Picasso “As
senhoritas d’Avignon”, que pretendemos oportunamente editar com cerca de trinta
cartas de cada qual. Seguramente suas opiniões, como pude constatá-lo, são
muito técnicas e especializadas. Medir forças com ele, em qualquer área das
artes em geral, é uma parada difícil. Mantém invariavelmente um entendimento
muito particular e avançado.
Alongar-me
em considerações sobre seu livro, como disse, não é tarefa para uma mera
resenha de jornal, e, sim, para uma análise mais metódica e que incorpore todos
os aspectos que ali vêm muito bem considerados.
Mas
há uma pequena colocação de Jayro quando ele diz que Cèzanne é o pintor básico,
querendo dizer que teria sido uma espécie de precursor da arte moderna que se
seguiu após ele, o cubismo, notoriamente. Até hoje (posso estar redondamente
enganado), não consegui gostar da pintura de Cèzanne. Não estou solitário nessa
opinião. O escritor francês Émile Zola não a apreciava também. Ambos amigos e originários
da mesma cidade, Aix –au-Provence.
Jayro
diz precisamente que “Cèzanne foi a base irradiadora” (pág. 23).
Suponho
que deve ter fortíssimos argumentos para ter Cèzanne em tal conta. Seu livro do
começo ao fim é um convite a um banquete cultural imperdível, envolvendo esse e
mais outros assuntos fascinantes.
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