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Sunday, May 19, 2013

EU E DOSTOIEWSKI NUMA MADRUGADA FRIA


EU E DOSTOIEWSKI NUMA MADRUGADA FRIA

Hamilton Alves

            Entro num bar de madrugada em San Petersburgo. Não há ninguém. O bar está vazio. Lá fora neva na Avenida Nievsky, por onde Dostoievski e Gogol cansaram certamente de percorrer. Sinto-me perdido na cidade, onde fui atraído por tantas coisas. É uma cidade de sonhos, que por vários motivos me fascina. Há um século (penso) poderia encontrar Gogol num bar desses ou em outro qualquer lugar, com seu misticismo, engolfado em sua depressão, que o levou às portas da loucura. Era um marginal. Desafeito ao serviço público, onde foi um estranho no ninho (como eu em certo tempo de minha mais ou menos atribulada existência), só sentiu de alguma forma justificado a partir do momento em que entendeu que seu destino era a arte. E por ela e para ela viver, custasse o que custasse.
            Não teria condições de encontrar nem Gogol nem Dostoievski, que ali viveram momentos curiosos, como se sabe. Ambos têm histórias ligadas à cidade.
            No outro dia, tenho que pegar um trem que me levará de volta à Paris, de onde vim para passar em San Petersburgo algumas horas, um dia, parte de dia, não sei exatamente definir quanto tempo durou minha permanência ali.
            Um garçom solícito e educado, com um longo avental, vem me atender. Dirigi-se-me em francês:
- Qu’est ce que vous voulez? – pergunta-me.
- Je veux boir. – digo-lhe insensatamente.
Queria lhe perguntar onde podia encontrar alguma referência de Gogol ou Dostoievski, que há muitos anos viveram naquela cidade. Mas o homem me trouxe a carta de bebidas. Peço uma vodca. Nem poderia ser outra bebida. Faz uma temperatura baixíssima. O céu quando ali entrei estava encoberto.
Bebo duas, três doses de vodca. Embebedo-me. Sinto-me mais leve. Alguns veículos passam na Avenida Nievsky, sem passageiros, pelo que vejo, como fantasmas na noite Sanpetersburguense.
- Quelle heure est-il? – pergunto ao garçom.
- Deux heures, monsieur. – responde-me.
Ergo-me. O hotel onde estou hospedado fica a duas ou três quadras. Vou andando na noite Sanpetersburguense, com o espírito de Gogol ou de Dostoiewski pulsando dentro de mim.
- Foi numa dessas casas que Gogol escreveu “O Capote” (dizia a mim mesmo). – O garçom não saberia me informar.
- Aqui se travou a grande luta da última guerra. – dizia-me baixinho, enquanto um guarda, mais adiante, nas proximidades de meu hotel, marchava lentamente, com um boné típico, uma capa que lhe cobria até os pés.
- A cidade então se chamava Leningrado.
Vou andando, como uma sombra, à imagem de Gogol, pela Av. Nievsky.
Peço a chave ao porteiro.
Subo o elevador. Paro no terceiro pavimento. A vodca me pesa na cabeça. Estou bêbado. Abro a porta. Vejo um sujeito sentado numa poltrona.
- Quem é o senhor ? – pergunto, meio ansioso e perplexo.
- Sou Fedor Dostoiewski.
Tenho uma espécie de alumbramento.
Era um homem já entrado em anos, com uma longa calva à mostra, um olhar penetrante.
- Pois agora mesmo num bar aqui próximo evocava-o – disse-lhe.
- É por isso que estou aqui para satisfazer sua curiosidade.
- E Gogol ?
- Gogol ?!... Também o admiro. É um ilustre filho deste país. Ou desta cidade, como queira.
- Li sua obra. Em meu país o senhor ainda hoje é muito admirado.
- Agrada-me sabê-lo.
Recolheu-se a um profundo mutismo, desviou-me o olhar. Puxou um cigarro. Deu inúmeras baforadas. Assumiu uma atitude distante, reflexiva, como se a minha presença fosse de tal forma insignificante que não lhe despertasse maior curiosidade.
Não sabia como quebrar o gelo.
Mas a certa altura, perguntou:
- Qual de meus livros o interessou mais vivamente ?
- “Recordação da Casa dos Mortos”.
- Logo este ?
- Por quê ?
- Nada de especial.
- O senhor narra ali sua dura vida na Sibéria.
- Quisera nunca ter vivido essa experiência.
- Ergueu-se, despediu-se, sumiu lá fora, misturado à densa névoa que caía, mas antes disse:
- Espere por Gogol. Não tardará passar por aqui. Poderá também conhecê-lo.    

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