Total Pageviews

Friday, May 24, 2013

UM ESTRANHO AMIGO – Hamilton Alves

 

            Conheci há muitos anos um homem magro, alto, ralos cabelos, uma testa larga, que era o que mais sobressaia em seu rosto, uns olhos pequenos cobertos de óculos de lentes grossas. Vestia-se de forma imaculada mas simples, sem afetação, como se a roupa acabasse de sair da lavanderia. Encontrávamo-nos de quando em quando em qualquer rua, em qualquer lugar, perdidos ambos em nossas andanças. Tinha sido seminarista e esteve perto de ordenar-se. Soube disso por dados que pouco a pouco foi me fornecendo, porque, a seu respeito, falava pouco ou nada. Era um homem beirando os sessenta anos. O tema que ambos debatíamos era filosófico, ele com conhecimentos muito mais sólidos que os meus. Não era dogmático. Nutria suas convicções, mesmo religiosas, com simplicidade e humildade. Comungava de seus sentimentos e de suas visões das coisas. Éramos espíritos afins. Que, no fundo, guardavam uma grande dúvida sobre tudo.
            Em geral, era na praça que se davam nossos encontros. Ele aparecia de repente, vindo não ei de onde – e não marcávamos encontro; acontecia ao acaso. Falava devagar. Tinha um riso mal esboçado, como se até para rir se mostrasse inibido.
            Sua presença me fazia bem. Era a amizade de um homem maduro para um adolescente que, no fundo de si mesmo, já deparara com tantos mistérios.
-       O que ele via em mim? – me perguntava.
No que poderia eu de alguma forma corresponder a sua erudição, um homem que como revelara, quase se ordenara. Conhecia línguas, filosofia, etc.
Praticamente, a esse tempo, não concluíra o ginásio. Interrompera minha atividade escolar antes de ingressar no clássico (2º grau hoje). Mas lia, lia tudo o que me caísse às mãos. O tema religioso sempre me fascinara. Por esse tempo, andava lendo “Os Thibault”, de Roger Martin Du Gard, um escritor voltado à questão da existência de Deus.
Embebera-me de Du Gard. Não cheguei ao término do livro porque Jacques, um dos personagens, no segundo volume, fizera uma quixotada.
Ao meu amigo nunca revelei minhas leituras. Nem lhe falei que estava lendo “os Thibault”.
Notava que ele não ia diretamente às questões, abordava-as aos poucos, como se tivesse receio de aprofundá-las, sentindo-me certamente inexperiente para avançar mais além do que eu podia. Perdia-se, assim, muitas vezes, em devaneios, esboçando um risinho simpático.
Dizia as coisas pausadamente como se refletisse muito ante de dizê-las. Parecia estar sempre absorvido em si mesmo.
Certa feita, deu-me a saber que trabalhava no escritório de uma empresa. Era só, morava só, não tinha família, era do interior, presumivelmente de origem alemã, mas também sobre isso nunca fez qualquer referência. Não falava de si mesmo. Só se interessava em trocar comigo algumas palavras, embora parcas. Nunca abordávamos assunto da hora, para nós ambos sem qualquer atrativo, como se isso estivesse implicitamente acertado.
Nunca referiu que estivesse lendo algum livro, embora fosse homem de muitas leituras.
Era, em suma, um erudito, mas não fazia a mínima ostentação dessa erudição.
Era um homem afável, que custava encontrar as palavras para exprimir-se, que, a falar, preferia o silêncio.
Muitas vezes surpreendia-o a fitar um ponto qualquer, como se vagasse por mundos desconhecidos.
Quando voltava à conversa parecia emergir desse vale de sombras ou de uma vertigem qualquer.
Pouco tempo depois nossos encontros se extinguiram.
Era um bom amigo, de quem eu não sabia nada, nem mesmo o nome.


No comments:

Post a Comment