Só hoje, quando ambos chegamos à
velhice, nessa idade em que não digo que as ilusões passaram, que nunca passam,
mas que se podem dizer certas coisas com franqueza, sem a inibição
compreensível de outros tempos, em que as interpretações poderiam sugerir
dubiedade ou pelo menos ambigüidade, pude confessar sem rebuços a uma amiga
que, na adolescência, quando a via em algum lugar, dava-me ímpetos quase
incontroláveis de me aproximar dela e revelar-lhe que era minha paixão secreta.
Ela, naturalmente, à vista de tão surpreendente quão imprevista declaração,
abriu-se num largo riso.
-
Ora, porque não o revelou?
-
Pois é (disse-lhe) sempre fui dominado por uma inibição invencível. E perdi
certamente grandes momentos na vida por causa disso.
-
Eu o teria pelo menos ouvido com muita atenção. Quem sabe até poderia acontecer
um envolvimento. – disse ainda toda sorrisos.
Achava
que poderia ser repelido. E isso, para mim, se ocorresse, me custaria um grande
sofrimento.
A
partir daí a conversa girou em torno de conceito de beleza masculina.
-
Sabe o que é homem bonito para mim?
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Não faço idéia.
-
Não é só beleza física. O intelecto, para mim, numa pessoa, conta mais que
tudo.
-
Bem nunca fui um intelectual, de modo que estaria perdido de qualquer jeito.
-
Por exemplo (disse ainda rindo à minha observação), tipo de homem que me
fascina é Roberto Campos. Ele não é nenhum tipo de beleza física assim... é até
sob esse aspecto meio feio. Mas quando dá uma entrevista, mostrando sua alta
capacidade de análise, acho-o lindo.
-
Você citou o tipo de pessoa (perdoe-me) que não me agrada de jeito nenhum. Nada
contra o Roberto Campos. Mas não gosto de suas idéias. E como homem... homem me
produz urticária!
Ela
se debulhou em risos.
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Uma vez, fui a um concerto de um pianista húngaro. Você precisava vê-lo!
-
Sim...
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Era gordo, atarracado, desengonçado. Dava a impressão de que era o carregador
do piano e não o pianista.
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Sentou-se à cadeira, rodopiou nela inúmeras vezes até se sentir bem instalado,
olhou para a platéia, limpou o suor do rosto com o lenço, depois tranqüilamente
baixou as duas mãos sobre o teclado. Foi um êxtase. Foi aplaudido, no fim, de
uma forma delirante pelo público. As mulheres diziam, após o recital:
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Ele é lindo, é lindo, é lindo!...
-
Veja como são as coisas. Como a arte tem o Dom de transformar as pessoas.
-
Então a beleza do espírito muitas vezes suplanta ou supre a ausência de beleza
física.
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Quem me dera ser um pianista famoso!
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Mas você, afinal, é um escritor, é também um artista. Quantas pessoas que o
lêem, sem que você se dê conta. O admiram. Podem também achá-lo lindo por um
trabalho que você produziu, etc.
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Mas nós, escritores, somos diferentes do músico, que pode medir no contato
direto com o público a aceitação ou não de seu trabalho; ao passo que nós,
cronistas ou contistas ou novelistas, nunca ficamos sabendo como é que um
leitor reage.
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Eu mesmo lhe dirigi um cartão, manifestando minha simpatia por suas crônicas.
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Agradeço-lhe a atenção. Mas é diferente... O pianista recebe na hora o aplauso
em troca de sua “performance”. Nós temos que esperar um cartão, um cumprimento
seco e frio de rua – e isso não chega a ser minimamente caloroso. O escritor é,
por isso, um solitário irremediável.
Estávamos
entretidos nesse papo, quando ela voltou a falar dos tempos idos, em que tantas
vezes, como lhe havia dito, senti ímpetos de abordá-la.
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É pena que você não tenha vencido sua inibição e não tivesse se aproximado...
-
Pois é... agora é tarde.
Era
uma senhora sexagenária, com rugas profundas no rosto, cabelos grisalhos. O
tempo havia produzido nela efeitos devastadores.