Já
conhecia os dotes de resenhista da professora Dirce Waltrick do Amarante
através de matérias que, de quando em quando, publica em jornais locais. Já,
por isso só, vinha chamando a minha atenção como se revelando muito competente
no trato dos assuntos literários, parecendo-me dotada, sobretudo, de grande
discernimento no enfrentamento de problemas que lhes estão ligados.
Outro
dia, folheando o Estadão, li uma referência a uma obra de sua autoria, editada
pela “Iluminuras”, com o título “Para ler Finnegans Wake de James Joyce”, que
faz uma magnífica abordagem desse romance do escritor irlandês, inçado de
problemas léxicos e sintáticos, e, por isso mesmo, tornou-se um dos mais
polêmicos para estudiosos de literatura. Ainda hoje, é provável que não se
tenha ainda esgotado a análise a que vem sendo reiteradamente submetido por
grandes hermeneutas das letras universais.
O
próprio fato de alguém se abalançar a uma aproximação desse corpo que irradia
tanta luminosidade quanto dificuldade de exame é já algo que envolve um grande
risco e exige, principalmente, uma dedicação intensa a estudos dos mais
variados tipos, dentre os quais avulta o da linguagem, considerada em seus
aspectos mais complexos. Alguns intérpretes conhecidos (os que particularmente
tratei ou procurei estudar) me forneceram, sobre as duas mais importantes obras
de Joyce – Ulisses e Finnegans Wake –, apenas algumas noções preliminares ou
até mesmo de alguma consistência ou senão com bastante aprofundamento, como o
faz agora, em seu livro, a professora Dirce, para o que se capacitou através da
consulta a um número considerável de autores que tentaram abordar essas duas montanhas verbais. Posso citar, no meu
caso, Michel Butor e Anthony Burgess (este com seu livro “Homem Comum Enfim) - Companhia
das Letras, 303 pgs.-, que envolve as iniciais do principal personagem de FW, e
os irmãos Campos (Haroldo e Augusto), com “Panorama do FW”, em que ambos
procuraram trazer os primeiros elementos de orientação a essa obra em âmbito
nacional. Fiz ainda incursões à obra de Edna O,Brien, (Ed.Objetiva), “James Joyce”, l88 pgs. e, por último,
RIVERRUN, de vários autores, organizado por Arhur Nestrovski, (Ed. Imago, 404 pgs.).
Quanto
à referência que me permito a esse estudo tão bem realizado e sistematicamente
elaborado pela professora. Dirce de FW, faço-a
com certa preocupação de ser o mais possível criterioso e cuidadoso. De
assinalar que foi feito dentro de moldes que me parecem de grande utilidade
didática para quem deseja conhecê-lo e, quem sabe, como tantos outros leitores,
se ver envolvido em suas malhas ricas e de beleza infinita no que diz respeito
a uma linguagem que é absolutamente inovadora e de expressão universal.
De
modo que é com muita cautela, como quem pisa em ovos, que me proporei a algumas
colocações sobre o belíssimo ensaio da professora. Dirce.
A
interpretação de Finnegans Wake é, como reconhece a professora. Dirce e tantos
outros analistas, que também se aproximaram desse livro, na tentativa de
esmiuçá-lo ou projetar-lhe alguma luz, uma tarefa praticamente impossível,
contentando-se em traçar-lhe algumas coordenadas e diretivas capazes de o
devassar e tentar clarificar o enigma por ele representado.
A
autora refere, à página 82, que “Clive Hart, um dos mais conhecidos estudiosos
de FW, por exemplo, confessou não saber ainda do que trata o romance, mesmo
depois de vinte anos de estudo e intensa dedicação a ele”.
Não
se trata, porém, de uma revelação isolada de um estudioso da altura de Clive
Hart, mas de levar-se em conta outros que, tanto quanto ele se defrontam ou se
defrontaram com idêntico problema de percepção de sentido ou significado de FW.
O
próprio Joyce, quando o deu por terminado, teria dito que acabara de escrever
(ou compor) algo que desafiaria a argúcia de críticos pelos 300 anos próximos,
significando que temos mais de dois séculos pela frente para poder, quem sabe,
alcançar alguma clareza ou definição do que é ou do que possa ser
literariamente. Em torno dele, até agora, não há unanimidade nem completa
percepção do que simboliza, ou seja, embora todos os esforços feitos (como os
da prof., Dirce) sejam veredas ou rumos que levem a esse fim que se quer
colimar.
Um
dos momentos mais elucidativos da professora. Dirce, ao tratar das origens
possíveis de FW, é quando diz, às páginas 57/58, que Joyce teria sofrido a
efervescência cultural que, por essa época, grassava na Europa, especialmente
em Paris, com os movimentos de vanguarda do dadaismo e surrealismo,
estabelecendo, ainda, correlação com “O Grande Vidro”, de Duchamp, que se
propôs e ainda se propõe, em nosso tempo, como um colosso indecifrável, a ponto
de ainda agora um crítico de arte dos mais renomados ter dito que “tudo o que é
difícil é por isso mesmo instigante e que, quando menos, devemos ter diante
desse quadro uma atitude de indagação de seus possíveis significados, sem nos deixarmos
levar por uma atitude de recusa ou de negação a priori de seu valor”.
Particularmente,
sempre pensei nessa relação, sabido que, por esse mesmo período, em que
eclodiram esses movimentos, alcançando inclusive a música, com a atonalidade,
iniciada por Stravinsky, de modo não tão definido, e, depois, de forma mais
característica, com Webern e Schoemberg, Joyce morou em algumas cidades
européias, especialmente e mais demoradamente em Paris. Mas esse é um
pequeno dado que, se pode trazer alguma explicação à eclosão da obra, pode
significar pouco ou nada. O mistério parece ser perpétuo e só a pouco e pouco
podemos pretender avançar no seu desenredamento. Se é que o alcançaremos algum
dia.
O
título do livro da professora. Dirce leva-nos a crer, de início, que é uma espécie de itinerário para o
viajante que se aventura pela primeira vez às páginas de FW. Na verdade, é, sem
dúvida, um roteiro e dos melhores que conheço para poder-se, de saída, sem
grandes obstáculos, realizar sua travessia pedregosa, bastante obscura e
repleta de escolhos de toda a natureza, notoriamente a linguagem, que é
absolutamente revolucionária em termos de criatividade e neologismos (
palavras-valise), destacando-se “que o romance foi escrito num léxico que
incorpora mais de sessenta e cinco línguas” (pg. 108 op.cit.), o que o torna de
certo modo (ou praticamente) intraduzível para qualquer outra, pois ele,
segundo a prof. Dirce, é a tradução de si mesmo, já que está repleto de todas
as línguas possíveis
Mas
é mais do que propriamente um roteiro de leitura e nisso reside todo o valor do
trabalho desenvolvido pela autora. Vai além desse propósito, constituindo-se em
fórmulas de elucidar de que trata o livro. Nisso, inegavelmente, desempenha um
trabalho paralelo de interpretação de FW, servindo-se, de certo, de um sem número
de referências críticas das mais pertinentes.
Ao
fim, traz-se o último capítulo, o oitavo, de FW, com o título Ana Lívia Plurabelle,
(traduzido pela autora, que é outro feito que não tem paralelo, a meu ver, na
literatura de língua portuguesa entre mulheres), que é considerado o mais
popular e o mais simples de se entender, para análise do que se voltam as
vistas da autora, tratando de esmiuçá-lo para maior facilidade do eventual
leitor (ou estudioso) de FW.
Talvez
seja essa obra da professora. Dirce Waltrick do Amarante uma das contribuições
de clarificação do sentido (ou do que seja) de FW das mais notáveis e ricas que se tenha produzido
dentre toda a massa existente de teor didático e explicativo que se divulga por
esse mundo afora.
É,
por isso, a meu ver, que está destinada a ser alvo de interesse de alunos,
professores, estudiosos, críticos, etc. É um livro para se ler e reler,
seguramente.