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Monday, September 30, 2013

A ARTE DE ESCREVER CRÔNICA - Hamilton Alves

  
Vou eu agora, na pretensão de ditar regras sobre escrever crônica, enfileirar algumas palavras em torno dessa arte, que não é tão simples como se julga.
Na verdade, não vou dizer nada que pareça ser uma aula sobre o tema, mas recorrer a exemplos de grandes cronistas, cujas crônicas até hoje continuam sendo modelos de como compor uma.
A crônica tem um ritmo
Sem esse ritmo poderá ser tudo, menos crônica.
É o mesmo que dizer-se que tem um modelo próprio, uma forma de ser, uma certa leveza, uma espontaneidade de seus termos, de sua frase, de suas palavras, de seus achados.
É assim como uma espécie de rápido bilhete que se escreve ao sabor das primeiras impulsões que vêm à cabeça.
Nada calculado, tudo dito de uma vez só, sem muito refletir.
Quando, no meu estrito caso, levo tempo para compor uma crônica, sei que vai sair uma porcaria.
Mas quando engreno e tudo sai como um sopro de improviso, como uma espécie de jazz session – esses grandes inventores de uma música que empolga ainda agora o mundo e tantos aficionados da música - aí sei que tudo vai dar certo, que chegarei ao fim de forma que me reconheço no que escrevi.
A crônica, para dizer tudo numa palavra só, tem seu esquema.
Ou se adota ou se vai infalivelmente perder pelos caminhos.
Nunca se vai encontrar a fórmula de dizer as coisas.
Quem é que alcançou essa qualidade entre nós? Não vou citar nomes para não melindrar ninguém no caso de uma exclusão. Mas temos uma meia dúzia de craques locais que têm (ou descobriram) a arte de conduzir uma crônica ao seu bom destino.
Assim como qualquer outra coisa neste mundo, a crônica tem seus condimentos específicos.
Quem sabia escrever uma crônica bem ao jeito de como deve ser era José Mauro Mattos, meu diletíssimo amigo, poeta em tempo integral, que tive com um punhado de suas crônicas, escritas em negrito, em uma coluna, para o desaparecido jornal do meu amigo Jayro Callado, “A Gazeta”, (que tempos!) que me foram confiadas por sua mulher, querida amiga Lourdes. Andei de Herodes a Pilatos para publicá-las em livro, mas cadê apoio para empreitadas culturais nesta Ilha dos Ocasos Raros?
Perdemos para sempre a chance de reler as belas crônicas do Zé Mauro, que eram, sim, o modelo perfeito de como deve ser uma crônica.


(mar/10)

Sunday, September 29, 2013

A VISITA DE CAMUS - Hamilton Alves


Em “O Príncipe e o Sabiá”, Otto Lara Resende conta pormenores da visita meio malograda que Albert Camus fez ao Brasil, que, segundo ele, foi marcada pela depressão e pelo tédio do visitante. Até o Cristo no Corcovado o desalentou, segundo Otto o diz nesse depoimento. Agendou um jantar com o escritor, que, a essa altura, não tinha ainda sido contemplado com o Nobel (a visita deu-se em 1949, onze anos depois foi Sartre que nos visitou, depois de ter passado por Cuba e escrito um livro resultante disso, “Furacão em Cuba”, que a Editora do Autor, de Rubem Braga e Fernando Sabino, editou em prazo recorde. Quem tem um exemplar desse livro raríssimo? Poucos, muito poucos, certamente).
A travessia pelo Atlântico deixou-o já nauseabundo, não pela viagem em si, mas por tudo que lhe foi dado ver e viver dessa experiência. Esteve na iminência de suicidar-se, segundo se comentou a sua chegada ao Rio.
Os brasileiros lhe pareceram, segundo se depreende da leitura dessa resenha de Otto, excessivamente formalistas e provincianos.
Chegou aos ouvidos de Sartre o fracasso da visita do colega e amigo. Sartre teria comentado: “Bem feito, quem mandou aceitar o convite de uma visita oficial”.
O jantar com Otto não deu certo porque caiu na asneira (confessado por ele) de convidar o editor do “Correio da Manhã” à época. Quando Camus se inteirou do esquema, despistou, alegou qualquer coisa para não comparecer ao jantar. No fundo, suspeitava que Otto quisesse, de algum modo, lhe obter uma entrevista. Camus detestava repórteres e jornalistas.
Veio a ter contato com Augusto Schmidt. Não houve meio de simpatizar com Schmidt, o senhor gordo que o enfastiou, até mesmo quando conduzido no seu Chrysler. Imagino o tipo de conversa que Schmidt deve ter querido provocar com Camus.
Podia perguntar a Camus como é que foi sua temporada de goleiro no Racing, time em que atuou na juventude. Mas certamente deve ter querido que justificasse por que, afinal, Meursault matou o árabe, quando cego pelos raios do sol numa praia de Argel, em “O estrangeiro”. Ou coisas chatas desse tipo.
O brasileiro deslumbra-se facilmente diante de celebridades. Não sabe, em geral, manter a naturalidade.
Otto revela que Camus, por toda parte, não podia impedir-se de expressar no olhar o tédio que o consumia.
Em Recife, quando deu uma palestra numa universidade, ao fim, Camus terminou-a com estas palavras: “Il y a quelqu’un que voudrait poser une question?” Diz-se que um engraçadinho espetou o dedo no ar. Camus disse: “Allez, monsieur”.
O sujeito respondeu: “Quel l’heure est-il?”
Nada mais faltava para Camus encerrar sua viagem decepcionante ao Brasil.   

(julho/10)                   








Saturday, September 28, 2013

ASCHENBACH - Hamilton Alves


Um dos maiores personagens da literatura universal, Gustav Aschenbach, que, numa tarde de primavera do ano de 19..., sai de sua residência, na Rua do Príncipe Regente, em Munique (conta o início de “Morte em Veneza”), para um passeio solitário, vive a tragédia de sua vida, paixão e morte numa viagem que empreende a Veneza para repousar de sua tenaz lida de escritor.
Num exemplar dessa novela, que ganhei de um amigo num natal de 1984, - já a tinha lido de outro exemplar que trago comigo de muito tempo – contam-se exatamente 109 páginas, numa edição da “Nova Fronteira”.
Paulo Francis disse, em seu livro de pequenos registros, “O dicionário da Corte”, compilado e organizado por Daniel Piza, que essa pequena, mas grandiosa obra, que Visconti levou ao cinema não de forma tão bem sucedida (Aschenbach vira músico em vez de escritor), é a melhor dentre todas produzidas por Thomas Mann.
Li “A montanha Mágica”, “Doutor Fausto” em parte, “Tonio Kroger” e um volume de contos do grande escritor e ainda li “O impostor Felix Krull”, parcialmente também. De todos achei que essa novela ocupa, na obra de Mann, um lugar de destaque, não apenas pelo trabalho literário em si, mas pelo tratamento dado a esse grande personagem, Gustav Aschenbach, que, buscando a paz e o descanso na exuberante cidade italiana, acaba, bem ao contrário, se envolvendo com o inferno de uma paixão avassaladora por um adolescente de beleza rara, Tádzio, que, em vários momentos, até a exaustão, persegue por toda a cidade ou fica fascinado quando de seu aparecimento no salão do hotel, junto com outros membros de uma família polonesa, guiados por uma governanta, de muita distinção.
O episódio de sua fuga de Veneza mal sucedida, quando há o providencial extravio de sua mala, fazendo com que retorne pelo mesmo vapor ao Lido, lhe causa um grande alvoroço de ânimo por só constatar que ali voltaria a se encontrar com o objeto dessa paixão.
A deflagração da peste em Veneza é outro fato que o traz apreensivo em função não de si mesmo, mas do jovem belo, Tádzio, por cuja vida começa a se preocupar.
A sua exaltação quando percebe, em certa tarde, que Tádzio tem consciência ou corresponde a essa desmedida paixão, entreolhando-se no cruzamento do hotel, é outro destaque de sua existência tormentosa nessa passagem por Veneza.
E, finalmente, sua morte na praia, sentado numa cadeira, lendo os  jornais do dia, acometido do mal oriundo de manifestações da epidemia que se alastra claramente, revelando-se, sobretudo, em medidas preventivas de autoridades sanitárias.
Havia comido adquiridos numa quitanda, os morangos fatídicos, nos quais se alojara o vírus da doença.
Mas antes que isso ocorresse, deparara-se com Tádzio, cuja silhueta se perdia aos seus olhos, no mar, numa grande distância.
Que paixão é essa, de origem homossexual, perguntam-se os críticos?
Há quem entenda que Aschenbach via em Tádzio a expressão máxima do belo, que jamais conseguiria traduzir na obra de arte. Seria ele, assim, um símbolo da beleza inexprimível. Seja como for, não se deslustra nem se compromete essa novela extraordinária, em que Thomas Mann alcançou uma grandeza literária poucas vezes conseguida.
“Morte em Veneza”, bem ao contrário do título, exulta de vida nessas poucas cem páginas.


(julho/08)

Friday, September 27, 2013

ACONTECEU EM PARIS - Hamilton Alves


Num início de noite meio frio, sem ter o que fazer no hotel em que me hospedara, uma espelunca no Quartier Latin, até porque estava com vontade de tomar uma bebida que me esquentasse, procurei o Café de Flore, muito famoso por ser o reduto procurado pelos escritores da chamada “lost generation”, como a chamou Gertrude Stein.
Sentei-me a uma mesa ao fundo (não seria a que pertenceu a Hemingway, que era seu frequentador assíduo – e por isso era considerada intocável?).
Trazia no bolso do casaco uma pequena novela de aproximadamente sessenta páginas de Eça de Queiroz, que já havia lido no Brasil, “José Matias”, que é a história de um amante do espírito, não da carne, ou que sublima o amor da carne por uma devoção sem igual ao ente amado, que se satisfaz apenas na sua contemplação, obcecado pela teoria de Fitche, de que o prazer é uma ilusão.
Adquiri esse exemplar da novela de Eça num bouquiniste daqueles numerosos existentes à margem do Sena.
Regalei-me numa confortável cadeira e dei tratos à novela, traduzida num excelente francês, segundo percebi.
Há algum tempo (na década de 20 do século passado), me lembrava, ali havia sido palco de intermináveis discussões de escritores e pintores famosos, como além de Hemingway, Scott Fitzgerald e os de casa, Valéry Larbeaud, Paul Valéry, Picasso, Sartre, Simone de Beauvoir, etc.
O ambiente reinante parecia ressuscitar tais pessoas. Via-os a cada um, como se ali ainda estivessem reunidos, a fazer planos sobre seu trabalho literário, sobre o que se produzia artisticamente à época, quem era quem, e tanta celeuma desse tipo.
Até que entrou, em certo momento, enrolado numa capa que lhe ia até os pés, um poeta conhecido e muito aplaudido naquela ocasião, Jacques Prévert, autor de um poema também muito celebrado, “Déjeuner du matin”, que sabia de cor.
Tive a tentação de dizê-lo a Prévert. Certamente, ficaria feliz de saber que alguém conhecia seu poema e o havia decorado.
Mas como fazê-lo sem quebra da discrição? Prévert se acomodara a uma mesa bem afastada, o que de certo modo dificultava minha aproximação.
Mas a certa hora, com o intuito de ir embora, passei perto de onde se achava alojado. Bati-lhe no ombro. Trocamos algumas palavras, quando lhe informei que conhecia seu magnífico poema.
Ficou encantado quando o disse estrofe a estrofe.
Depois, quando ia já a certa distância, aproximando-me do hotel, algo estranho soou aos meus ouvidos – era o despertador, que me chamava à realidade do dia a dia.


(Nov/10)

Thursday, September 26, 2013

A RENÚNCIA DE SARTRE - Hamilton Alves

                                               
Não quero de modo algum desfeitear o merecimento de Vargas Llosa por ter recebido o prêmio Nobel de literatura das mãos do rei da Suécia, empertigado, metido numa fatiota preta, com gravata de borboleta branca e uma camisa luzidia igualmente branca, parecendo uma ave emplumada.
Ali estava ele feito um dom João de Salão para receber a honraria, representada por 1,4 milhões de dólares, o que é uma grana que, à primeira vista, pode assustar, mas que, sem dúvida, enche de alegria uma conta corrente de qualquer cristão.
Saramago foi recebê-lo, se não me falha a memória, em traje também de gala, de smoking. Só lhe faltou ter comparecido de cartola, como era, antigamente, o complemento desse traje.
Não sei como Garcia Marques se apresentou para idêntica solenidade.
Lembro-me, nessa altura, de um escritor que o recusou – Jean Paul Sartre, o nunca assaz louvado Jean Paul Sartre.
Como explicar-se a renúncia de Sartre à tanta grana?
Simone de Beauvoir explicou que Sartre não gostava de dinheiro.
O que faria ele com 1,4 milhões de dólares? Ao tempo em que o ganhou, a mufunfa era menor, mas devia mais ou menos equivaler ao montante atual.
O que é que um homem da altura intelectual de Sartre faria com tanto dinheiro?
Não sou capaz de imaginar.
Vivia com a cabeça nas nuvens, elucubrando sobre teorias filosóficas, até dar com uma que o celebrizou – a do existencialismo, que corresponde à ideia da contingência e, por consequência, por ela, segundo ele, o homem está condenado a ser livre.
Teoria que foi mal interpretada em nosso país, por exemplo, quando um compositor de carnaval lançou a marchinha, interpretada por Emilinha Borba, da “Chiquita Bacana, que se veste com uma casca de banana nanica, existencialista, com toda a razão, só faz o que manda o seu coração”.
A teoria existencialista de Sartre envolvia um humanismo, do homem contingente e, portanto, condenado a ser livre. Com isso, o destino estava em suas mãos.
Um pouco falso isso, mas afinal era a teoria de um gênio.
Sartre deixou o mundo em suspenso quando se anunciou que recusara o Nobel.
Tantos o querem, tantos o disputam, Sartre foi diferente: deu uma banana para o rei da Suécia e para uma considerável fortuna.


(dez/10).                                             

A RENÚNCIA DE SARTRE - Hamilton Alves

                                               
Não quero de modo algum desfeitear o merecimento de Vargas Llosa por ter recebido o prêmio Nobel de literatura das mãos do rei da Suécia, empertigado, metido numa fatiota preta, com gravata de borboleta branca e uma camisa luzidia igualmente branca, parecendo uma ave emplumada.
Ali estava ele feito um dom João de Salão para receber a honraria, representada por 1,4 milhões de dólares, o que é uma grana que, à primeira vista, pode assustar, mas que, sem dúvida, enche de alegria uma conta corrente de qualquer cristão.
Saramago foi recebê-lo, se não me falha a memória, em traje também de gala, de smoking. Só lhe faltou ter comparecido de cartola, como era, antigamente, o complemento desse traje.
Não sei como Garcia Marques se apresentou para idêntica solenidade.
Lembro-me, nessa altura, de um escritor que o recusou – Jean Paul Sartre, o nunca assaz louvado Jean Paul Sartre.
Como explicar-se a renúncia de Sartre à tanta grana?
Simone de Beauvoir explicou que Sartre não gostava de dinheiro.
O que faria ele com 1,4 milhões de dólares? Ao tempo em que o ganhou, a mufunfa era menor, mas devia mais ou menos equivaler ao montante atual.
O que é que um homem da altura intelectual de Sartre faria com tanto dinheiro?
Não sou capaz de imaginar.
Vivia com a cabeça nas nuvens, elucubrando sobre teorias filosóficas, até dar com uma que o celebrizou – a do existencialismo, que corresponde à ideia da contingência e, por consequência, por ela, segundo ele, o homem está condenado a ser livre.
Teoria que foi mal interpretada em nosso país, por exemplo, quando um compositor de carnaval lançou a marchinha, interpretada por Emilinha Borba, da “Chiquita Bacana, que se veste com uma casca de banana nanica, existencialista, com toda a razão, só faz o que manda o seu coração”.
A teoria existencialista de Sartre envolvia um humanismo, do homem contingente e, portanto, condenado a ser livre. Com isso, o destino estava em suas mãos.
Um pouco falso isso, mas afinal era a teoria de um gênio.
Sartre deixou o mundo em suspenso quando se anunciou que recusara o Nobel.
Tantos o querem, tantos o disputam, Sartre foi diferente: deu uma banana para o rei da Suécia e para uma considerável fortuna.


(dez/10).                                             

Wednesday, September 25, 2013

BARTLEBY - Hamilton Alves


Ítalo Calvino, quando foi convidado a participar de uma palestra numa universidade de Harvard, nos Estados Unidos, para a qual eram convocados os grandes nomes da literatura mundial, enfileirando seis temas, um deles seria uma abordagem do personagem Bartleby, da novela de Melville “Bartleby, o escrivão”, escreveu cinco em seu país, a Itália, e deixou a última, exatamente a que abordaria essa novela ou seu personagem, para produzi-la quando já estivesse no local da palestra. Como ocorre sempre, quando procrastinamos alguma atividade ou compromisso, na suposição de que podemos contar a nosso favor com o fator tempo, Calvino não a escreveu – e, certamente, a atração recairia notadamente para os conhecedores dessa novela ou do personagem Bartleby, de preferência sobre ela, que despertava sem dúvida maior curiosidade de como enfrentaria o difícil tratamento do tema.
Teria o título, segundo Calvino diz, em “Seis propostas para o próximo milênio” (Companhia das Letras, 140 pgs.), de “Consistência”. Nos cinco outros, Calvino saiu-se muito bem, até excelentemente, constituindo-se essa leitura num dos momentos mais ricos de minha experiência de leitor.
Mas quando disse, no limiar do livro, que deixara de abordar a obra de Melville e, especialmente, seu personagem admirável, um dos maiores da grande literatura, fiquei como a mesma sensação de quem perdera um objeto valioso e de que nunca mais poderia recuperá-lo, tal a importância para mim de um escritor da altura de Calvino ter produzido esse ensaio.
Teria sido bem sucedido na difícil tarefa a que teria se imposto? Ou fracassaria? Ou não a enfrentou justamente pelo medo de ser mal sucedido. Não seria de forma alguma fácil realizá-la mesmo que se resumisse a poucas páginas, como, de resto, se constituíram as demais cinco que produziu admiravelmente.
Haverá um ensaio de algum autor de alto nível, como Calvino o era, que levou a cabo esse trabalho? Desconheço-o.
Borges compareceu à mesma universidade para realizar idêntica palestra, com o título de “Sete Noites”, que publicou em livro, que é um momento muito feliz da carreira do grande escritor. Fez a tradução da novela de Melville para a sua língua nativa, o espanhol, sendo ele, como sabido, um poliglota e cultor de línguas. Tal tradução foi uma das mais felizes que conheço, considerando a francesa, a italiana (sobre esta não tenho muita autoridade para avaliar, muito pouco a conheço; mas a feita pelo escritor argentino alcança um padrão de qualidade que ultrapassa as demais conhecidas) e a nossa própria, portuguesa.
Borges, sim, teria reunido as condições necessárias para lograr com pleno sucesso um ensaio sobre esse grande personagem, Bartleby. Limitou-se a um pequeno prefácio na tradução que fez, que, embora curto, é igualmente admirável.
Mas Calvino nos deixou a ver navios.

(set/10)                                                         
                                              
                                              

  

Tuesday, September 24, 2013

A BONECA - Hamilton Alves


De meus contos há um que me agrada mais que todos por causa do personagem, que não é nomeado nem muito menos identificado pela outra, Clara, uma prostituta que, na noite do Natal ou véspera, ficara em casa sozinha. As demais colegas tinham ido para as suas cidades ou locais onde tinham família passar a data natalícia. Clara, sem ninguém no mundo que se lembrasse de ter alguma ligação, ainda que longínqua, com ela, teve por isso que amargar a solidão na noite natalina.
Mas qual não foi sua surpresa quando, na noite anterior ao Natal,  um sujeito bate à porta, sob um aguaceiro muito forte.
Abre-a. Nota que está todo encharcado.
Entra.Vai desvestindo a capa gabardine, que coloca no encosto de uma poltrona, na mesma em que Clara estivera sentada. Inicia-se entre ambos um diálogo, que marca bem a condição de dois solitários, mais ou menos extraviados no mundo, sem nenhum ente a quem recorrer ou procurar contato para obtenção do mínimo de calor humano.
Clara lhe pergunta, de saída, se quer beber alguma coisa quente.
- Quente? – pergunta ele.
- Sim, você está todo molhado, isso pode lhe causar um resfriado.
- Tem uisque?
- Tem.
- Então me sirva uma boa dose com duas pedrinhas de gelo.
            - Clara se afasta até a uma cômoda de onde traz um litro de uísque com um pequeno balde de gelo para que o homem se sirva à vontade.
- Não tem ninguém em casa, só eu. - diz Clara.                 
- Curioso (diz o homem) só nós dois numa noite dessas reunidos aqui. Onde foram as outras?
- Foram passar o Natal com as famílias.
- Por que não fez o mesmo?
À pergunta reage com um muxoxo.
- E você tem uma família?
- Boa pergunta? E você?
- Todos de alguma maneira temos uma família. Todos nascemos de uma mulher.
- Sim, você tem razão.
- Como descobriu esta casa? – quer saber Clara.
- O gerente do hotel me disse que aqui poderia encontrar uma garota.
- Ah, sim, compreendo.
A seguir, o homem a convida para dançar. Mas Clara não sabe dançar. Convida-a para sair sob a noite tempestuosa. Alude ao fato de que, àquela hora, com a chuva, difícil encontrar algum lugar aberto.
O homem já ingerira, segundo Clara o notara, quase meio litro de uísque. Por isso, revelava-se meio bêbado.
- Que presente você gostaria de ganhar no dia de Natal? -pergunta-lhe mudando o tom da conversa.
Clara lhe responde quase sem muito refletir:
- Uma boneca?
Aprontando-se para sair, colocando a gabardine, o homem diz-lhe:
- Amanhã você estará aqui?
- Sim.
- Pois amanhã lhe trarei uma boneca de presente.
No dia seguinte, Clara o espera longa e inutilmente. Pega o mesmo litro de uisque deixado pelo homem a meio e o ingere de um só gole. Adormece na poltrona. De manhã, acorda-se, estremunhando. Vai ferver água para o café. Liga o rádio. O noticiário informa que num hotel da cidade fora encontrado um homem morto, suspeitando-se que se suicidara.

(agosto/08)

                                               

Monday, September 23, 2013

A TRAVESSIA DE FINNEGANS WAKE: A professora Dirce Waltrick do Amarante, em aproximadamente 150 páginas, percorre o mais complicado romance da literatura universal - por Hamilton Alves.


Já conhecia os dotes de resenhista da professora Dirce Waltrick do Amarante através de matérias que, de quando em quando, publica em jornais locais. Já, por isso só, vinha chamando a minha atenção como se revelando muito competente no trato dos assuntos literários, parecendo-me dotada, sobretudo, de grande discernimento no enfrentamento de problemas que lhes estão ligados.
Outro dia, folheando o Estadão, li uma referência a uma obra de sua autoria, editada pela “Iluminuras”, com o título “Para ler Finnegans Wake de James Joyce”, que faz uma magnífica abordagem desse romance do escritor irlandês, inçado de problemas léxicos e sintáticos, e, por isso mesmo, tornou-se um dos mais polêmicos para estudiosos de literatura. Ainda hoje, é provável que não se tenha ainda esgotado a análise a que vem sendo reiteradamente submetido por grandes hermeneutas das letras universais.
O próprio fato de alguém se abalançar a uma aproximação desse corpo que irradia tanta luminosidade quanto dificuldade de exame é já algo que envolve um grande risco e exige, principalmente, uma dedicação intensa a estudos dos mais variados tipos, dentre os quais avulta o da linguagem, considerada em seus aspectos mais complexos. Alguns intérpretes conhecidos (os que particularmente tratei ou procurei estudar) me forneceram, sobre as duas mais importantes obras de Joyce – Ulisses e Finnegans Wake –, apenas algumas noções preliminares ou até mesmo de alguma consistência ou senão com bastante aprofundamento, como o faz agora, em seu livro, a professora Dirce, para o que se capacitou através da consulta a um número considerável de autores que tentaram abordar essas  duas montanhas verbais. Posso citar, no meu caso, Michel Butor e Anthony Burgess (este com seu livro “Homem Comum Enfim) - Companhia das Letras, 303 pgs.-, que envolve as iniciais do principal personagem de FW, e os irmãos Campos (Haroldo e Augusto), com “Panorama do FW”, em que ambos procuraram trazer os primeiros elementos de orientação a essa obra em âmbito nacional. Fiz ainda incursões à obra de Edna O,Brien, (Ed.Objetiva),  “James Joyce”, l88 pgs. e, por último, RIVERRUN, de vários autores, organizado por Arhur Nestrovski,  (Ed. Imago, 404 pgs.).
Quanto à referência que me permito a esse estudo tão bem realizado e sistematicamente elaborado pela professora. Dirce  de FW, faço-a com certa preocupação de ser o mais possível criterioso e cuidadoso. De assinalar que foi feito dentro de moldes que me parecem de grande utilidade didática para quem deseja conhecê-lo e, quem sabe, como tantos outros leitores, se ver envolvido em suas malhas ricas e de beleza infinita no que diz respeito a uma linguagem que é absolutamente inovadora e de expressão universal. 
De modo que é com muita cautela, como quem pisa em ovos, que me proporei a algumas colocações sobre o belíssimo ensaio da professora. Dirce.
A interpretação de Finnegans Wake é, como reconhece a professora. Dirce e tantos outros analistas, que também se aproximaram desse livro, na tentativa de esmiuçá-lo ou projetar-lhe alguma luz, uma tarefa praticamente impossível, contentando-se em traçar-lhe algumas coordenadas e diretivas capazes de o devassar e tentar clarificar o enigma por ele representado.
A autora refere, à página 82, que “Clive Hart, um dos mais conhecidos estudiosos de FW, por exemplo, confessou não saber ainda do que trata o romance, mesmo depois de vinte anos de estudo e intensa dedicação a ele”.
Não se trata, porém, de uma revelação isolada de um estudioso da altura de Clive Hart, mas de levar-se em conta outros que, tanto quanto ele se defrontam ou se defrontaram com idêntico problema de percepção de sentido ou significado de FW.
O próprio Joyce, quando o deu por terminado, teria dito que acabara de escrever (ou compor) algo que desafiaria a argúcia de críticos pelos 300 anos próximos, significando que temos mais de dois séculos pela frente para poder, quem sabe, alcançar alguma clareza ou definição do que é ou do que possa ser literariamente. Em torno dele, até agora, não há unanimidade nem completa percepção do que simboliza, ou seja, embora todos os esforços feitos (como os da prof., Dirce) sejam veredas ou rumos que levem a esse fim que se quer colimar.
Um dos momentos mais elucidativos da professora. Dirce, ao tratar das origens possíveis de FW, é quando diz, às páginas 57/58, que Joyce teria sofrido a efervescência cultural que, por essa época, grassava na Europa, especialmente em Paris, com os movimentos de vanguarda do dadaismo e surrealismo, estabelecendo, ainda, correlação com “O Grande Vidro”, de Duchamp, que se propôs e ainda se propõe, em nosso tempo, como um colosso indecifrável, a ponto de ainda agora um crítico de arte dos mais renomados ter dito que “tudo o que é difícil é por isso mesmo instigante e que, quando menos, devemos ter diante desse quadro uma atitude de indagação de seus possíveis significados, sem nos deixarmos levar por uma atitude de recusa ou de negação a priori de seu valor”.
Particularmente, sempre pensei nessa relação, sabido que, por esse mesmo período, em que eclodiram esses movimentos, alcançando inclusive a música, com a atonalidade, iniciada por Stravinsky, de modo não tão definido, e, depois, de forma mais característica, com Webern e Schoemberg, Joyce morou em algumas cidades européias, especialmente e mais demoradamente em Paris. Mas esse é um pequeno dado que, se pode trazer alguma explicação à eclosão da obra, pode significar pouco ou nada. O mistério parece ser perpétuo e só a pouco e pouco podemos pretender avançar no seu desenredamento. Se é que o alcançaremos algum dia.
O título do livro da professora. Dirce leva-nos a crer, de início,   que é uma espécie de itinerário para o viajante que se aventura pela primeira vez às páginas de FW. Na verdade, é, sem dúvida, um roteiro e dos melhores que conheço para poder-se, de saída, sem grandes obstáculos, realizar sua travessia pedregosa, bastante obscura e repleta de escolhos de toda a natureza, notoriamente a linguagem, que é absolutamente revolucionária em termos de criatividade e neologismos ( palavras-valise), destacando-se “que o romance foi escrito num léxico que incorpora mais de sessenta e cinco línguas” (pg. 108 op.cit.), o que o torna de certo modo (ou praticamente) intraduzível para qualquer outra, pois ele, segundo a prof. Dirce, é a tradução de si mesmo, já que está repleto de todas as línguas possíveis
Mas é mais do que propriamente um roteiro de leitura e nisso reside todo o valor do trabalho desenvolvido pela autora. Vai além desse propósito, constituindo-se em fórmulas de elucidar de que trata o livro. Nisso, inegavelmente, desempenha um trabalho paralelo de interpretação de FW, servindo-se, de certo, de um sem número de referências críticas das mais pertinentes.
Ao fim, traz-se o último capítulo, o oitavo, de FW, com o título Ana Lívia Plurabelle, (traduzido pela autora, que é outro feito que não tem paralelo, a meu ver, na literatura de língua portuguesa entre mulheres), que é considerado o mais popular e o mais simples de se entender, para análise do que se voltam as vistas da autora, tratando de esmiuçá-lo para maior facilidade do eventual leitor (ou estudioso) de FW.
Talvez seja essa obra da professora. Dirce Waltrick do Amarante uma das contribuições de clarificação do sentido (ou do que seja) de FW das mais  notáveis e ricas que se tenha produzido dentre toda a massa existente de teor didático e explicativo que se divulga por esse mundo afora.
É, por isso, a meu ver, que está destinada a ser alvo de interesse de alunos, professores, estudiosos, críticos, etc. É um livro para se ler e reler, seguramente.


                                                          

                                                 

Sunday, September 22, 2013

A ALMA DE ODETTE - Hamilton Alves


Há uma frase de Edmund White, que escreveu uma pequena biografia de Proust, que diz o seguinte: “O amor de Swann por Odette não era um tributo à alma dela; a alma dela era banal”.
Acho que Proust não endossaria essa frase.
À margem desse pensamento, anotei: “a grande paixão é uma doença, ignora tudo, passa por cima de tudo. Dane-se a alma; que seja banal pouco importa”.
Quando uma pessoa ama ou se apaixona, não há outra consideração a fazer ou outra qualquer coisa a ser levada em linha de conta que não seja exclusivamente o objeto dessa paixão (ou a pessoa envolvida).
Psicólogos já o afirmaram, com muita razão, que a paixão é uma espécie de patologia da alma, que cega, a tal ponto que tudo é deixado de lado, seja o que for, para dar lugar unicamente a esse sentimento avassalador.
O caso de Swann em relação a Odette de Crécy não é único nem mesmo em termos literários. A paixão mais obsessiva de um homem por uma mulher foi de Phillip por Mildred na magnífica novela “Servidão Humana”, de Sommerset Maughan, em que um homem altamente qualificado, estudante de medicina, amante das artes, de uma alta linhagem, empolga-se por uma balconista de um “pub” londrino. No primeiro encontro que teve com ela, admirou-se que um amigo, que o levara a esse “pub”, tivesse enamorado dela. Ou revelasse simpatia por ela. Achou-a sem encanto algum que justificasse o interesse do amigo por ela. Pouco tempo depois, cai no mesmo alçapão, atraído não por Mildred, mas pelo local, que lhe pareceu aprazível. Nessa ocasião é ela que lhe vem atender. A partir de então se estabelece uma relação com Mildred da qual Phillip consegue se desvencilhar, mas a que preço!
Os atos de baixeza moral que Phillip incorre nessa relação são incompatíveis com qualquer criatura que tenha o mínimo senso de dignidade. Ou de amor próprio. Mas se submete a todas as exigências, a todas as provas de vilania de Mildred. Sentia que, sem ela, não era capaz de continuar a existir. Chegou a ponto de querer se suicidar, como forma de escapar aos seus tormentos.
Submeteu-se até ao patrocínio de uma viagem que faria com outro amante, sabendo que não sentia nada por ele. Esse amante (ou presumido tal) vinha a ser amigo de Phillip. O mesmo por cujo intermédio veio a ter contato com Mildred.
Quem é que vai cogitar se Mildred ou Odette eram portadoras de almas banais?
Que fossem banais. E daí?
Até o detalhe de uma mulher ser possuidora de uma alma banal piora o quadro do homem que se apaixonou por ela. A paixão torna-se, parece, ainda mais incontrolável.
Ao apaixonado o aspecto da banalidade de uma mulher lhe é tão indiferente quanto sua própria sombra.
Odette de Crécy e Mildred retratam bem até onde uma mulher pode levar um homem à loucura.

(maio/08)


                                   


Saturday, September 21, 2013

A ASTRÓLOGA - Hamilton Alves

  
Num jornal em que trabalhei há muitos anos, o “Diário da Manhã,” dirigido pelo meu querido e saudoso amigo escritor Zedar Perfeito da Silva, havia uma seção de astrologia. Conheci a astróloga, que era uma pessoa amável, que só fazia aquela coluninha prevendo o destino zodiacal das pessoas e nada mais.
Num de nossos papos diários, pois frequentava a redação a horas regulares para entregar sua matéria, púnhamo-nos a conversar sobre os mais diferentes assuntos.
Foi exatamente numa dessas ocasiões que sugeriu que grafasse meu nome “Hamilton” sem o “H”.
Claro que não adotei a sugestão, embora também me parecesse que grafar meu nome sem “H” o tornaria mais simples ou menos sofisticado ou menos parecido com nome de americano ou com a pronúncia em inglês que a grafia sugere.
De vez em quando, tenho a tentação de aderir à mudança por ela proposta faz tantos anos. Não acho simpático grafar meu nome com “H”. Parece meio pedante. Mas não tenho, obviamente, nenhuma culpa por isso.
Minha mãe, certa vez, falando sobre a escolha de meu nome, me contou a história, que, por ser muito íntima e pertencer ao acervo de dados secretos da família, não revelarei. Pode ser coisa banal (de fato o é), mas há coisas sobre as quais se devem guardar o devido sigilo e não se expor assim publicamente.
Venho aguentando esse nome (aguentando é modo de dizer). Não tenho nada contra meu nome. Há até quem o considere bonito. Conheço vários xarás que o grafam como eu o faço. E nem por isso vivem às turras com seu nome. Até pelo contrário. Honram-se muito de usá-lo. Embora concordem que a eliminação do “H” poderia trazê-lo para mais próximo de nosso espírito de brasilidade. E menos americanidade.
Nada disse à astróloga quando me recomendou a supressão do “H”. De mim para comigo disse que levaria por diante meu “H” ainda que, como ela previsse, isso poderia me levar a não ter boa sorte na vida.
- Com “Amilton”, sem o “H”, você irá de vento em popa na vida.
Não levei tal prognóstico, claro, minimamente a sério.
Estava disposto a arrostar todas as dificuldades e adversidades com o meu “H” de batismo.
Não é o nome que faz a pessoa (pensei sempre), mas o contrário.
Veja-se, por exemplo, um nome como “Juscelino”. Quem poderia crer que o detentor de um nome desses se tornaria o maior Presidente que nosso país já teve?
Vou abrir levemente a cortina em torno de minha privacidade: quando vejo meu nome nos jornais ou impresso (confesso-o) desagrada-me o “H”.
Por que então conservá-lo?
Por que não acolher o conselho da astróloga?
Não o faço por uma única razão: não posso alterá-lo juridicamente. Não há fundamento legal para fazê-lo. Caso contrário, poderia até tentá-lo.
Mas a essa altura da vida tenho que conviver com o “H”, para o bem ou para o mal.
                                  

(agosto/08)



Friday, September 20, 2013

EU E BEBU -Hamilton Alves



Há muitos anos, num livro muito bem impresso, não me lembro de que editora, li pela primeira vez uma crônica de Rubem Braga, por quem sempre nutri admiração, que, como a outros ledores, certamente, me marcou para sempre, com o título de “Eu e Bebu na hora neutra da madrugada”. Só o título dispensa maiores comentários quanto a sua beleza.
A história de Bebu (que é o apelido que Rubem Braga dá ao diabo) resume-se num encontro que teve com o quimbinga numa certa madrugada num bar do Rio. Começam entre si um diálogo. Braga passa a lhe chamar de Bebu quando a conversa esquenta e não há mais lugar a tratamento cerimonioso.
Em duas páginas e meia ou três a crônica segue em alto diapasão até o fim.
Foi uma das melhores crônicas que li (eu que sempre fui apreciador do gênero, a tal ponto que, a partir de certo momento, comecei também a cultivá-lo).
Outros cronistas, que muito aprecio, têm tido trabalhos igualmente grandiosos. Poderia citar crônicas de Drummond, Bandeira, José Carlos Oliveira, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Silveira de Souza, Barreiros Filho (estes dois últimos nossos escritores conterrâneos), que igualmente deixaram marcas definitivas de sua qualidade literária. Nem vou dizer que “Eu e Bebu na hora neutra da madrugada” teria sido superior às demais. É muito difícil estabelecer padrões de qualidade na literatura, notadamente nesse gênero tão polêmico. Mas não tenho a menor dúvida em dizer que essa do Braga é um dos momentos grandiosos da crônica.
Trata-se de um verdadeiro achado literário o fato de um cronista ter como tema um diálogo com o diabo num momento realmente neutro (entre o dia e a noite) num lugar qualquer. Nada pode ser mais interessante, divertido ou curioso do que um encontro (embora, claro, fictício) desses.
O diabo sempre foi um personagem que nos aguçou (ou tem aguçado) a imaginação.
É uma página de Rubem Braga que aparece em várias antologias de crônicas e em algumas que ele mesmo editou.
A forma como Braga conduz a história revela uma arte única na formulação de perguntas e respostas, que é uma verdadeira aula para quem se inicia no aprendizado das letras ou pretende seguir carreira idêntica.
Curioso é que o texto que pela primeira vez li, na sua fórmula impressa, não o vi mais repetido em outras edições (como numa recente que adquiri), que, a meu ver, o empobreceu um pouco. Revelou-me que o tratamento gráfico de um trabalho literário tem tudo a ver com sua qualidade.
Evidentemente que tem muito pouco a perder com isso a crônica famosa do Braga.

(agosto/09)

                                               

Thursday, September 19, 2013

SUÍTE LUNAR – Hamilton Alves


pedaços de lua
eu os mastigo
iluminados
não me sabem a nada

entram-me olhos
adentro e reverbero-os
cintilantes fora
de órbita

transpostos à janela
ou a peças da casa
em que mourejam
os lusco-fuscos

onde rastejam
translúcidos alguns
detritos lunares
esmigalhados à boca

em surdina ouço-os
perdidos em suas vozes
ou na pretensão de
fazer um jogo de luz

mas esfumam-se como
vapores nevoentos
perdem-se no éter
reduzidos a nada.


(poema publicado no livro “Canto do Vento” – Bernúncia Editora/2005).

Wednesday, September 18, 2013

PANDORGA – Hamilton Alves


com papel
bambu para fazer varetas
e grude
faz-se uma pandorga

depois é o trabalho
de com linha e rabo
soltá-la

lembro-me da última vez
que soltei uma pandorga
o espaço não era
muito propício

havia cercas próximas
e árvores dificultando
a manobra

o vento batia em falso
de um lado
o trabalho de erguê-la
não foi fácil

de repente ela tomou
impulso e dei-lhe linha
subindo bastante alto

feito um balão.

(poema publicado no livro “Canto do Vento” – Bernúncia Editora/2005).


Tuesday, September 17, 2013

NOITE – Hamilton Alves


A nódoa da noite
emoldura o candelabro
da sala, uma mosca
faz uma rápida incursão

Por cima da mesa
onde mal distribuídos
se veem um livro,
uma garrafa de uísque,

Alguns embrulhos
de coisas díspares,
umas flores dentro
de um saco de papel.

É uma hora da manhã,
nenhum ruído
se ouve, apenas o
faiscar de uma lâmpada

Lá fora penetra com
uma réstia de luz
por sobre esses
objetos fantasmais.

Na rua, um homem
caminha devagar.

(poema publicado no livro “Homenzinho na Madrugada” – Bernúncia Editora/2007).