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Sunday, June 30, 2013

VAGUIDÃO - Hamilton Alves



Na tela
brancas
nuvens
soltas

E não mais
que quimera
à janela

Nenhum aviso
do abismo
na aparição
de uma mosca

Súbito
pervagam
escombros
noturnos
mal percebidos

Estrelas noctívagas
estremecem
dentro de teus
olhos

Em sonhos
pergunto
sobre a vanidade
do mundo.


Saturday, June 29, 2013

RITMO DA MADRUGADA - Hamilton Alves


Hauro a palavra
que me espicaça
na fímbria
da noite

A sombra empobrece
a cor da hora
e me devolve
solitário ao curso
dos minutos

Ouço o rumor
do mar
(os peixes nadam
em zigue-zague
por algas tristes)

Teria muito
que falar
sobre o barril
de vinho
mas é hora de recolher
uma a uma
as consoantes
e as vogais

Não entendo
o ritmo da madrugada
tudo que vejo
me fala
de névoa.


Friday, June 28, 2013

CHUVA - Hamilton Alves


Orlando mal despertou foi à janela. E viu que peneirava uma chuvinha e uns trovões, de longe em longe, ribombavam. O céu toldado de nuvens escuras.
Sentia-se meio encurralado pela chuva, porque a rotina era tomar o café, arrumar-se e ir ao escritório.
Sim, estava já às voltas com os problemas rotineiros de um homem, a quem compete, no turno de um dia, fazer certas coisas, tomar certas providências, entrar em contato com fulano e sicrano - enfim, a mesmice de todos os dias.
Lembrava-se ainda do pesadelo que, na noite passada, o acometera. Queria  recompô-lo, embora o tivesse levado a uma dura provação, que, em geral, provocam todos os pesadelos. Era uma coisa mais ou menos assim: tinha um emprego numa repartição e lhe incumbiam de uma nova tarefa. Fora trabalhar noutro setor. Quando chegou lá, porém, deparou-se com uma sala vazia, sem mobiliário, sem nada, só com uma porta, nada mais.
Afinal, perguntou-se, o que teria de fazer ali? Resolveu sair e se informar com alguém. Mas quando fez isso, a porta estava trancafiada e viu-se atônito.
Essa espécie de pesadelo era-lhe recorrente. Sempre estava metido numa situação labiríntica, sem saída, bloqueado nesses espaços sempre vazios.
Felizmente, tudo não passara de fantasia.
Estava de volta à realidade.
E bem considerando as coisas, o que lhe oferecia a realidade?
Uma manhã nebulosa, com chuva, trovões, sem poder arredar pé de casa para cumprimento das obrigações de sempre.
Bem verdade que a chuva lhe concedia uma espécie de trégua. Apaziguava-o .
Fez o desjejum, aprontou-se, a mulher lhe disse alguma coisa numa voz apagada, que não conseguiu logo entender. Por isso, perguntou-lhe:
- O que é?
- Você vai ao escritório com esse tempo?
- Pois é... não sei... se a chuva aumentar, como parece ser o caso, o volume de nuvens é grande, vou sair só à tarde.
- Não esqueça de pegar o carro na garagem. Temos de ir ao sacolão.
Uma das coisas que consta de sua agenda semanal é o compromisso de fazer compras no sacolão.
Mas ele não cogitava dessas tarefas domésticas. Ainda lhe aturdia o pesadelo que sofrera na última madrugada.
- Por que será que um homem tem que sofrer pesadelos? Que mistérios há na mente ou no cérebro que o conduzem a isso? - indagava-se.
Bem, chovia, uma chuvinha rala, com perspectivas próximas de engrossar.
A chuva era um fenômeno que ele sempre bem dizia. Havia uma certa beleza na chuva. Um vago conforto psicológico.
Ficou ali, estático, atrás dos vidros da janela, procurando achar uma brecha no pesadelo, na chuva, no mundo, em si mesmo.


Thursday, June 27, 2013

O SEGREDO PROFUNDO DO COSMOS - Hamilton Alves


Caminhava lentamente madrugada
adentro, poucas as pessoas

Que àquela hora percorriam
as ruas da cidade e só

De quando em quando
ouvia-se pequeno ruído

Produzido por algo que não
se sabia precisar o que fosse,

Com o céu toldado e nenhuma
estrela nele apontando,

Um vento cortante e frio
produzindo um frêmito

Na alma, que, de si, ia
perdida em tantas conjecturas,

Com os guardas noturnos
envolvidos em suas fardas

E de longe em longe
trilando no ar o intermitente

Apito, no convívio com fantasmas
díspares e igualmente estranhos,
  
Quando, súbito, a questão
cristalina se colocou:

"O mistério das coisas é claro,
tudo se abre à esperança"

A madrugada, a essa altura,
ia já se desvanecendo ao longe,

As primícias de um radioso dia
se entremostravam na linha

Do horizonte e uma tênue
luz se definia nas cercanias

Onde o mundo parece acabar
e onde a negra noite se esconde.

O ritmo de meus passos
vagarosos percutia no chão,

E só esse toc-toc harmonioso
e único se destacava

Na solidão imensa que me
engolfava e aturdia.

Aprofundei em mim toda
a vã razão e coloquei
  
A questão completa e
radiosa em meu espírito

A examiná-la por todos
os ângulos possíveis

De verdade inabalável
que pudesse afinal conter

E, naquela hora, me
permitisse um desafogo,

O encontro com o absoluto
pelo qual tanto anseiam

Os homens que, como eu,
em tantos outros lugares,

Se encontravam perdidos,
perplexos, e, pobres coitados,

Desesperados e esmagados
perante todas as incertezas.

"Não há mais lugar
à dúvida: teu espírito

Ainda não se abriu
generoso à fé"

Uma janela num prédio
se abriu iluminada

E alguém debruçou-se
nela, como se naquele

Momento acabasse de
acordar ou por alguma razão

Fiscalizasse a rua
silenciosa e erma.

Teria visto daquela altura
esse homem perdido

Em si mesmo no trânsito
ensimesmado pela cidade,

Julgando-o um ébrio,
um vagabundo ou boêmio?

Diante de mim apenas
era visível o negrume

Dos objetos e das coisas
que pouco a pouco fugiam

À indistinção provocada
pela progressão da luz.
  
Um carro passou célere,
um cachorro latiu,

Um rato saiu de dentro
do toco de uma árvore,

Enquanto se acentuava
mais e mais a dor crucial

Das incertezas que empolgavam
a alma que, àquela

Altura, chegava ao fim
de sua jornada noturna

Foi aos primeiros tons
definidos do que era dia

Nascido que vislumbrei
então claramente

A grandeza imensurável
de todas as coisas e

A verdade que se irradiava
de todos os seres vivos

Como se cada um proclamasse
o segredo profundo do cosmos.




Wednesday, June 26, 2013

O ESPAÇO NUTRITIVO - Hamilton Alves


(esvaziado do abcesso de ser alguém,
beberei novamente o espaço nutritivo)

Henri Michaux

Bebi uma nuvem numa tarde
esplêndida de primavera;
bebi também a chuva brusca
que irrompeu na madrugada.

Além disso, bebi num dia
só o jardim do vizinho,
uma pandorga com dor de
barriga que ameaçava cair.

Bebi a Tertuliana com todas
suas imprecações matinais
de mau e bom humor que se
alternam no espaço de um dia.

No trânsito pela ponte bebi
três barcos à vela, uma canoa
com dois pescadores e todos
os urubus que a sobrevoavam.

Bebi num só domingo a praia
do Santinho, a Cachoeira de
Bom Jesus com cinco vacas e
de lambuja bebi Cacupé.

Bebi ontem um poema de Ernani
Rosas, um conto de Silveira
de Souza, uns versos de Elizabeth
Bishop, e mais beberia.

Bebi a tarde do sábado passado
inteira e foi devido a isso
certamente que no domingo
tive uma ressaca terrível.

Na conta de beber agora
só me faltava algo ainda
mais capitoso e desejado -
assim bebi toda a aurora.




A BELA EXPOSIÇÃO DE TÉRCIO DA GAMA (voltando a expor uma série de quadros de sua última produção, o maior “fauvista” catarinense revela um momento apoteótico de sua arte).- por Hamilton Alves

 

            Antes que os trinta (serão trinta ou mais?) quadros que estão sendo apresentados ao público no saguão do Banco do Desenvolvimento do Extremo Sul aparecessem, Tércio me convidou para vê-los numa preliminar, em sua casa, no Caminho dos Açores. Alguns ainda estavam em fase de acabamento. Um deles quis adquirir, mas disse que não podia vendê-lo, primeiro porque o lançaria nessa exposição e, segundo, porque não se encontrava ainda concluso.
Foi então que, admirado, lhe indaguei:
- O que falta para concluí-lo?
- Alguns detalhes. – disse-me ele.
- Esse quadro está pronto, não precisa que se acrescente mais nada nele. Se você fizer isso acabará por estragá-lo.
Mas Tércio riu e o fato é que, voltando a ver o quadro na exposição agora, notei que, em grande parte, tinha razão. Não há dúvida que o melhorou bastante.
Tércio sempre seguiu uma linha “fauve” (fera em francês). Mas por que “fera”? Porque os “fauvistas” são exuberantes nas cores. Tércio é o maior colorista dentre todos os pintores catarinenses. Quem o afirma não sou apenas eu. Harry Laus, que foi um dos mais categorizados críticos de arte na imprensa brasileira (militou por vários anos nos jornais do Rio, mantendo uma coluna apreciadíssima no extinto “Correio da Manhã”), dizia-o muitas vezes.
A pintura de Tércio é característica. Ninguém pinta igual a ele, ou seja, no seu estilo pessoalíssimo. Tem uma marca própria. Ou seria o mesmo que dizer: tem uma luz só dele.
O que surpreende nos quadros que ora expõe são os detalhes “supérfluos” e que não prejudicam, antes os tornam mais originais ainda. Por exemplo: a fixação em reproduzir a imagem na maioria dos seus quadros da “Ponte Hercílio Luz”, que é a mais bela imagem da ilha. Em sua casa, no primeiro contato com esses mesmos quadros, lhe disse francamente:
- Tércio, tira a ponte. Para que essa ponte?
Aí me deu uma explicação em torno de incluir a ponte em suas telas. E agora, percebendo-a na mostra, dou-me por convencido que é um detalhe que se casa muito bem ao restante das imagens, configurando um cenário tipicamente ilhéu.
Cito o caso, por exemplo, de que nenhum pintor ousaria reproduzir um “surfista” num quadro. Seria de pronto taxado de superado, obsoleto, decadente, coisas desse tipo. Pois numa das telas das trinta expostas no BRDE há uma em que reproduziu essa imagem que muitos haverão de considerar imprópria. Mas até mesmo “o surfista”, na atitude característica de surfar uma onda, não prejudicou essa tela; pelo contrário, para repetir um lugar comum, inseriu-se bem no contexto.
Venho acompanhando há anos a atividade artística de Tércio.
Dir-se-á que se repete ou que não evoluiu ou que pinta sempre o mesmo quadro.
Digamos que essa crítica possa ter alguma procedência. Mas no caso específico de Tércio, a repetição só prova que não abandona sua linha tradicional, do mesmo modo como os grandes nomes da pintura brasileira o faziam: Guignard, Pancetti, Volpi, Di Cavalcanti, Tarsila, etc. Quem olhar para uma tela de um desses pintores será levado a dizer a mesma coisa. Contudo, em cada quadro, vê-se o mesmo quadro, sem dúvida, mas outro. Ou seja, uma nova concepção do mesmo trabalho precedente.
Como ocorreu com um artista da marca de Aldemir Martins. Certa vez, em São Paulo, quando entrei numa sapataria na Barão de Itapetininga, vi numa vitrine um quadro de Aldemir. Tratava-se de um “croquis” figurando uma sapataria, mostrando o sapateiro com um martelinho batendo no salto de um sapato, com outros detalhes.
De pronto, identifiquei-o.
Trazia, infelizmente, uma parte coberta, (mas transparente) com um pano. E, no rodapé da tela, lia-se a assinatura do pintor.
Há outros detalhes envolvendo esse episódio, mas não é hora de narrá-los. Atenho-me ao fato de, com Tércio, a mesma coisa ocorre: para reconhecer-lhe a autoria de um quadro é simples. É a tal luz própria a que me referi.
Comparecendo a sua “vernissage”, disse-me que tem um convite para levar essa exposição a “Manhattan”, em Nova York. Acredito que é hora de os pintores cantarem noutra freguesia. Em geral, as pessoas aqui não têm cacife para bancar a aquisição de uma obra de arte. Os americanos são apaixonados por arte. E, além disso, têm dinheiro. Em geral, o investem na aquisição de quadros. Basquiat, um pintor modesto, fez furor nos EUA. Basquiat, quando estava no auge, com o nome projetado internacionalmente, vendendo bem, morreu de overdose de cocaína. A pintura dele não tem condições de se comparar à do Tércio. Por que Tércio não poderá ser igualmente bem sucedido nos “states”?
Comentei para amigos, sobre a prometida exposição do Tércio em “Manhattan” (desses quadros que ora exibe no BRDE), que voltará de lá, provavelmente, forrado de dólares e sem um único quadro desse acervo de trinta. Tivesse mais trinta desse nível, vende-los-ía todos.
A pintura, de todas as atividades artísticas, entre nós, sempre se alçou a um nível de grande importância. Temos pintores do nível de Vitor Meirelles, consagrado mundialmente, de Martinho de Haro, de Hassis, de Eduardo Dias, de Hely Heil, cujas obras já há muito romperam nossas fronteiras.
Temos ainda Rodrigo de Haro, seguindo também uma linha muito própria, Vera Sabino, Semy Braga, Juarez Machado, Pléticos, muito bons, Vecchietti, outro artista plástico de extraordinário talento, Janga, Mayer Filho, com seus galos exuberantes, Jair Platt, grande nome, e outros.
A pintura, portanto, tem esses grandes cultores.
A literatura catarinense, sem dúvida, disputa um grande páreo com a pintura. Difícil, neste momento de nosso desenvolvimento cultural, dizer qual das duas desponta à frente.
Precisamos comemorar (ou bememorar), Tércio, a tua belíssima mostra.





Tuesday, June 25, 2013

ÔNIBUS - Hamilton Alves



O ônibus, fantasma de lata,
atravessa, furando a noite,
a Rodovia Haroldo Soares Glavan,
em Cacupé;

Ah, o sortilégio do ônibus!,
quem vem dentro?
quem vai saltar?

As luzes acesas em seu interior;
quem vai abraçado com quem?
e o motorista, pobre coitado,
a essa hora ainda

A exercer seu duro ofício
de condutor de fantasias,
pois o ônibus é um distribuidor
delas, por mais

Que não se creia;
ah, lá vem ele de novo,
feito um ser macabro,

Por dentro do feitiço
da noite, na travessia
da Rodovia Haroldo Soares Glavan.




(publicado sob o pseudônimo de Max Hops, agosto/02)

Monday, June 24, 2013

Fantasma - Hamilton Alves

é um pouco tarde
para destrinçar o nó
das coisas

a fala oficial para justificar
os meios e os fins
me enfada e desanima

o ofício de viver
por isso vai se tornando
pouco a pouco
uma abstenção
ou um rompimento

o que me importa no conjunto
é o rumor do vento

fora disso sou
um fantasma que a si
mesmo não se reconhece

O elefante triste - Hamilton Alves

o circo tinha ido embora
e o elefante tinha ficado como última peça
a ser encaixotada.

treinava sobre um pau
uma dança que não lhe era própria,
a mutilação de seu próprio ser.

da distância me olhava,
como a falar-me sob forma de protesto
de tal violação.

não gostava (era óbvio)
do picadeiro; arrancaram-lhe do ambiente
natural para uma dança perversa.

pobre elefante, além de corrompido,
abandonado, a rolar as patas
num pau redondo.

era uma tarde fria,
o elefante no contraste de um espaço
aberto, à espera do circo e

de seu inevitável picadeiro
em outras praças de espetáculo.

Thursday, June 20, 2013

A PRIMEIRA VEZ – Hamilton Alves


Chovia a cântaros. As valetas transbordantes inundavam as ruas. Era já um pouco tarde da noite. O jovem resolveu dirigir-se a um rendez-vous nas proximidades por onde, àquela hora, circulava. Ficava no fim de uma avenida, numa casa baixa, amarela, descaiada, com um portão de madeira à entrada.
Foi a medo que ali entrou.
Deparou-se com um recinto pequeno, sob a luz tênue de um abajur de teto e, em torno de uma sala redonda, com cadeiras e sofás, sentavam-se à espera de clientes algumas mulheres.
A proprietária era uma velhota magra, que procurava arrumar uns copos e garrafas numa prateleira.
- Margarida, - dirigia-se a uma jovem que devia ter menos de vinte anos, - venha cá me ajudar.
A garota ergueu-se de sua poltrona, segurou copos e pequenas garrafas à mão, enquanto a mulher abria o guarda louça para ali enfiá-los.
Dois senhores bebiam e esperavam noutro canto.
No mais, reinava o silêncio.
O jovem dirigiu-se a um balcão e pediu uma bebida, na tentativa de adaptar-se ao local ou de mostrar que estava à vontade.
Observava Margarida, magrinha, baixa, cabelos pretos compridos (ou assim lhe pareciam naquela luminosidade que pouco fazia distinguir as coisas). Tinha um rosto simpático, um corpo bem modelado. Ela o olhou em certo momento. O olhar de ambos se encontrou.
Dirigiu-se a uma poltrona.
Uma música lenta, vinda de uma eletrola roufenha, inundava o espaço.
A moça aproximou-se dele.
- Vamos dançar?
Saíram os dois para a pequena sala.
- Não o conheço; é a primeira vez que vem aqui?
- Sim, é a primeira vez.
- Você está de visita à cidade?
- Não, sou natural daqui mesmo.
Houve um silêncio.
- Aquela senhora que pediu tua ajuda, quem é ela?
- É minha mãe.
- Bem que desconfiei, quando te chamou para ajudá-la. São parecidas.
Depois, os dois recolheram-se cada qual a seu lugar. O moço voltou à poltrona. E a jovem foi novamente solicitada pela mãe e, dessa vez, chamou-a à parte em outra peça.
Ele ficou ruminando no que estariam conversando. Ou se a conversa poderia de algum modo envolvê-lo.
A moça voltou a alojar-se numa cadeira perto dele.
A mãe aproximou-se de ambos e disse à filha:
- Vai com o moço, filha. Ele é tão simpático.
A moça agarrou-o pelo braço, levou-o por um corredor sombrio até a uma peça bem no fundo. Entraram num quarto pequeno, com uma cama de casal, forrado de cortinas azuis. Tudo era muito modesto, mas a cama parecia o docel de uma princesa.
- Este é seu dormitório?
- Sim. Gosta?
- Muito aconchegante.
Ela discretamente desnudou-se, ele fez o mesmo. Beijaram-se, após o que se uniram à cama.
O corpo dela era delgado, de uma brancura acetinada.
- Não pensei que você fosse tão bonita.
Não tinha vencido seu nervosismo. Ajudou-o nisso o fato de ela o ter como que iniciado nos jogos do amor. Entrou nesse jogo com toda a naturalidade, como se fosse já bastante experiente.
- Você tem namorada?
- Não.
- Você nunca esteve antes com uma mulher?
- Não.
- Verdade?
- É sério.
Ela riu-se. Voltou a beijá-lo com muita ternura.
- Vou entrar para a sua vida como sendo sua primeira amante.
- Nunca vou esquecê-la. A primeira vez deixa sempre uma marca.
Voltou à rua.
A chuva agora era mais forte e implacável. Foi a pé até sua casa, que ficava a uma boa distância.
A alma o empolgava durante essa travessia; não teria encontrado melhor parceira para a sua estreia como amante.
A chuva não o perturbava e muito menos o fato de se encontrar inteiramente encharcado.
Sabia que essa noite estava destinada a se eternizar em sua memória.


Wednesday, June 19, 2013

O VELÓRIO - Hamilton Alves


Os dois amigos estavam velando um terceiro quando um dizia para o outro:
- Sempre pensei que ele daria um bom defunto.
- Por que?
- Você não percebia?
- Não.
- Pois eu o via atrás de sua mesa no escritório, aqueles óculos em cima do nariz, aquela atenção às cifras...
- Mas o que é que isso explica que ele daria um bom defunto?
- ...aquela sua mulher magra, aquela sua falta de vocação prá qualquer outra coisa na vida, só dinheiro, só papéis, só escritório, o dia inteiro...
- Então só por isso daria um bom defunto?
- É que ele já estava morto há muito tempo e não sabia.
O outro fez silêncio. Achava absurda a opinião do amigo.
- Ele viveu a vida toda às voltas com o nada. E o nada o matou.
- Mas ele sempre me pareceu voltado ao trabalho. Bem verdade que...
- Ele vivia empolgado com isso vinte e quatro horas por dia.
- Ele tinha uma amante, essa é que você não sabia; viajava com ela para toda parte; a última viagem que fez com ela foi ao Caribe.
- Não sabia disso. E a magra nunca desconfiou de nada?
- Tinha que dar uma trégua da magra, ninguém é de ferro.
- Está bem, digamos que esse era o lado humano dele. Mas...
- Mas o que?
- Ele ia pro escritório ao romper da aurora e lá se encafuava até de noite. Isso é vida? E nunca fez, que eu saiba, outra coisa. Valeu a pena? Valeu?
- Mas ele curtia, é o que você não sabe.
- Sempre o vi como um morto. O jeito balofo dele, aquele riso, a forma de andar, nadando com os braços, as calças muito largas, um paletó imenso, sua cara desengonçada, me parecia um morto.
- Você tem cada uma!
- Sua vocação era de morrer. Não de viver. Há indivíduos que vivem para a vida, outros vivem para a morte. Era o caso dele.
- Não compreendo como é que você pensa assim.
- Quando você entrava no gabinete dele, por trás daquela mesa, nunca erguia os olhos pra te olhar, sempre voltado àqueles papéis durante anos e anos.
- Não entendo.
- Não tinha um "hobby", não lia, não tinha outra atividade qualquer, nem dirigir automóvel ele sabia, a mulher é que o fazia, a magra. Aliás, a magra era pau pra toda obra. Por que lidar com tantos papéis?
- Por que acumular tantos bens? Para que?
- Mas cada um tem sua índole.
- Eu sei, eu sei...mas ele era um morto. Não havia vida nele. Eu o olhava muitas vezes e sentia dó de vê-lo entregue àqueles papéis.
- E você (irritara-se o outro), o que é que você faz de melhor que ele?
- Eu, cara?!... Eu vivo!...
- Como você vive?
- Eu curto uma porrada de troços!
- Que troços?!
- Eu não me meto num escritório o dia todo, não lido com papéis, não tenho aquela cara dele que era a pura expressão da morte.
Ali ficaram durante algum tempo, até que se colocou a tampa no esquife. Um padre apareceu para benzer o morto e dizer umas palavras. Lá na rua, embarcando num carro, um ainda dizia para o outro:
- Ele era o defunto mais absoluto que conheci.

O outro escandiu um risinho.

Tuesday, June 18, 2013

“UM ÔNIBUS E QUATRO DESTINOS”, UM CLÁSSICO LITERÁRIO (Francisco José Pereira, Silveira de Souza e Holdemar Menezes conceberam uma novela que marcou época nos anais da literatura catarinense). por Hamilton Alves

 

            Lendo há pouco uma resenha de Ruy Castro sobre “O Falcão Maltês”, de Dashiell Hammett, que é um dos clássicos maiores da literatura “noir” em plano mundial, fui relê-lo. A segunda leitura é sempre melhor que a primeira. Ou isso é apenas meia verdade? Não interessa muito saber se é ou não melhor. O fato é que agora me dou conta que houve aspectos na segunda leitura que ou me passaram despercebidos na primeira ou não os fixei como agora o faço ou o fiz.
            Não é necessário dizer que Ruy é um craque da resenha. Sobre a obra de Hammett se revela absolutamente insuperável na análise exaustiva que faz. Antes havia feito uma outra, sobre “Servidão Humana” (refiro-me à ‘Obras Primas que poucos leram’, organizado por Heloisa Seixas, e que traz um sem número de notáveis e muito oportunos comentários sobre vários romances e novelas que marcaram definitivamente a literatura mundial de todos os tempos).
            Sobre “Servidão Humana” não foi, na verdade, muito feliz. Na minha visão particular, sobre o personagem Phillip Carey, me pareceu ter revelado certas características que não refletem absolutamente bem esse grande personagem.
            Mas voltando ao “Falcão Maltês”, em certo momento dessa releitura, lembrou-me compará-lo a uma novela semelhante (ainda que não na linha do ‘roman noir’, a rigor), escrita por três escritores catarinenses (um não tão catarinense, Holdemar Menezes), Francisco José Pereira e Silveira de Souza, editada pela Movimento, de Porto Alegre, que foi (ou tem sido) pródiga em publicar autores deste Estado, graças a esse infatigável homem promotor da cultura que é Carlos Appel.
            A edição desse livro data de 1994.
Título: “Um ônibus e quatro destinos”.
Em que pode se diferenciar o valor literário de uma (a de Hammett) e a de outra (de três escritores locais)?
A única diferença possível, sob qualquer aspecto, é que a novela do americano (grande caráter, que, para não dedurar amigos, suspeitos de atividades anti-americanas ou ligados ao comunismo, preferiu passar algum tempo na prisão) virou um dos maiores clássicos do cinema, “Relíquia Macabra”, com Humphrey Bogart, Sidney Greenstreet, Peter Lore e outros, com a direção de John Huston.
No mais, as duas novelas se eqüivalem – e não vai qualquer exagero nisso. É só lê-las e compará-las.
Quando li “Um ônibus e quatro destinos”, fiquei tão entusiasmado com sua qualidade literária que a comuniquei aos autores (não resisto em fazê-lo todas as vezes que isso ocorre). Além disso, fui ao jornal em que registrei num pequeno artigo a minha impressão de leitura. Lembro-me que pus em destaque o fato incontroverso de que, em matéria literária, talvez fosse a primeira vez que nosso Estado dava um salto de qualidade na vida literária do país, embora a novela tivesse (até hoje) se circunscrito aos limites de nossas fronteiras. Acho que, como outros sucessos iguais, o fato não repercutiu além da ponte Hercílio Luz, o que tem sido rotina em nossa vida cultural. Devo ressaltar que esse êxito literário teria grande repercussão nacional caso houvesse melhor tratamento de distribuição da obra, em se tratando de novela. Em poesia já tínhamos logrado grande projeção com Cruz e Souza e Luiz Delfino, até hoje insuperados no tocante à notoriedade fora de nossos limites geográficos.
Para o Chico Pereira tive oportunidade de dizer, algum tempo depois do lançamento, que o grupo perdera uma excelente oportunidade de ter dado um título mais literário à novela. – Qual? – perguntou-me.- O camafeu egípcio. – respondi.
É que, junto do corpo do juiz assassinado, logo depois de ter saído de uma roda de pôquer no Clube Doze de Agosto, fora encontrado um camafeu egípcio, que, na verdade, não tem nada a ver em relação ao crime.
No registro jornalístico que fiz anotei esse pormenor. Chico ponderou e achou que eu podia ter alguma razão. A escolha do título não fora tão acertada.
Em geral, quando feito por vários autores, mormente tratando-se de um romance, o que ocorre com freqüência é uma certa falta de homogeneidade do texto. E isso é muito natural que ocorra. Cada escritor tem seu próprio estilo. Mas milagrosamente os três (Chico, Holdemar e Silveira) alcançam um equilíbrio muito bom, a ponto de, se não se soubesse que o livro fora escrito pelos três, podia-se concluir que era de um único autor.
Valendo-me de meu artigo, publicado em dezembro de 1994 neste jornal, sob o título “Um ônibus especial”, sumariando o livro, comentei: “Trata-se de uma novela com laivos detetivescos, com um crime que é revelado logo nas páginas iniciais, envolvendo a morte de um Juiz de Direito, depois de ter saído de uma roda de pôquer no Clube Doze de Agosto. O livro poderia ter o título (mais literário) de “O camafeu egípcio” – lembraria o de Hammett, “O falcão maltês”. A família do magistrado, a mulher e o filho, muda-se para Porto Alegre. Depois de alguns anos, o filho, Dr. Thales, formado em medicina, retorna à Ilha para exercer a profissão e também para de alguma forma desvendar a misteriosa morte do pai. Nisso está disposto a se empenhar até as últimas conseqüências. Os capítulos que se referem ao Dr. Thales são confiados a Chico Pereira, que, com categoria, os desenvolve dentro de uma trama muito bem urdida. Além dele, o médico, viajam no ônibus da empresa São Cristóvão, que existia à época, mais três personagens: a jovem e de certo modo desditosa Solange, que vem à capital para submeter-se a um aborto, engravidada perlo patrão, empresário de Criciúma; Teresa, que vem ao encontro de Carlos para a prática de um ato adúltero, sendo ele quase noivo de sua filha adotiva; e, por último, Gustavo Paiva, que é estudante de Direito e poeta. Teresa vem de Laguna, onde o marido trabalha como assistente de uma empresa portuária, e Paiva origina-se de Porto Alegre.
No dia da morte do Juiz, encontra-se junto de seu corpo um “camafeu egípcio”, que, no entanto, não conduzirá à elucidação do mistério das circunstâncias do crime. Paralelamente aos destinos que estão traçados para esses personagens, o escritor, do qual se ocupa magistralmente Silveira de Souza, vive problemas marginais, não apenas quanto à condução da narrativa do romance, mas ao envolvimento com a umbanda, de que participa com outros personagens igualmente curiosos”.
Termino essas considerações assim:
“Vale, porém, registrar que ‘Um ônibus e quatro destinos” é um dos momentos culminantes da literatura catarinense, que, assim, se põe ao nível do que há de melhor literariamente no país”.
Acho que, além de mim, não houve mais ninguém que se abalasse a escrever uma linha sobre essa bela novela.
Em que ela é parecida com “O falcão maltês”? Precisaria de tempo e de um acurado estudo para responder satisfatoriamente tal pergunta.
Mas resumindo, creio que a semelhança, além da propriamente literária (do mesmo calibre), envolve, a meu ver, o gênero – ambas têm o cunho do “mistério”, uma a morte do Juiz, a outra, a relíquia representada por uma estátua negra de uma ave avaliada em um milhão de dólares – e por causa dela muita gente foi sacrificada.