Creio que todo mundo em minha ruidosa
época de moço conheceu Oscar. Quem poderá dizer, sendo da minha geração, que
não o conheceu? Ou que não teve oportunidade, por menor que fosse, de conviver
alguns instantes com ele? Ou de sentir-lhe o humor, a sensibilidade, a profundidade
que tinham suas palavras às vezes ditas a esmo?
Na verdade, não me proporei, como o
título pretensioso diz, a narrar a história de Oscar, caso contrário isto não
seria um conto com algumas poucas páginas, mas uma novela ou quem sabe até um
alentado romance. A vida de Oscar foi tão cheia, tão repleta de acontecimentos
e sobre ele inventaram-se, verdadeiros ou não, tantos fatos e ocorrências,
típicas de sua curiosa personalidade, que daria um romance. Todas as vidas,
afinal, bem contadas, dão ( ou dariam) um romance.
Limito-me a identificá-lo com o
prenome, a medo de que o nome patronímico o revele ao leitor. Oscar,
certamente, não gostaria que trouxesse pormenores de sua existência para estas
páginas.
Oscar era, digamos logo, um
"primus inter pares". Talvez, de todas as pessoas que nesse largo
período de vida que me foi dado conhecer, não tenha outra igual, com seu
temperamento, com seu chiste, sua verve, seu talento, sua independência, sua
vocação para uma vida, não digo dissoluta (isto seria exagerar nas tintas), mas
para a anarquia, no seu sentido mais lato.
Oscar nunca ambicionou nada.
Dinheiro e honrarias, para ele, não
contavam para nada. Quanto à aparência, estava longe de se incomodar com ela.
Parece-me que sempre usou o mesmo terno a vida toda. Seus sapatos eram de tal
maneira sem brilho, opacos, que nunca chamavam a atenção.
A maneira de rir (e ria muito em
qualquer situação que se lhe apresentasse, até porque sempre tive a
desconfiança que todas as situações com que se defrontava, fossem quais fossem,
lhe pareciam cômicas) de Oscar era um dado à parte em sua pessoa. Ria fininho
(e há quem possa pensar que um tal riso traz uma forma de deboche), mas o riso
de Oscar era franco, infantil, expressão de sua pura alegria.
Quando ele segurava um pileque, nos
botecos sórdidos, dava para cantar em francês belas cançonetas, de cuja língua
foi professor num colégio durante algum tempo - e dele saiu porque seu
comportamento foi considerado meio marginal pela direção da dita escola - que inventava ou criava na hora.
Uma vez, quando vivia um problema sério
de sobrevivência, apresentou-se numa estação de rádio para produzir um
programa. O diretor da emissora levou uma entrevista meio longa com ele.
- O senhor é produtor de programas?
- Sim, tenho experiência em
produzi-los.
- Em que emissora já trabalhou?
Oscar citou umas duas ou três.
- Vamos fazer um teste. - disse-lhe o
tal diretor.
E acrescentou em seguida:
- O
senhor tem aí máquina de escrever e papel para produzir um programa sobre tema
que quiser. Terá ainda o tempo que entender.
E, para terminar, disse-lhe:
- Boa sorte.
Oscar encafuou-se num recinto pequeno,
que era onde os redatores trabalhavam no noticiário, e ali ficou por bem uma
hora ou mais, produzindo seu programa radiofônico.
Entregou seis ou oito laudas
datilografadas ao diretor. Este olhou-as, leu-as e, a certa hora, fez-lhe a
seguinte observação:
- De um modo geral, seu programa está
satisfatório. Mas há um reparo a fazer.
- Reparo?!... - Oscar arregalou os
olhos, revelando-se preocupado.
- Sim, um pequeno pormenor.
- De que se trata?
- O senhor tem frases que se iniciam
com pronome oblíquo. E isso é um erro palmar de gramática. - disse o diretor.
Oscar olhou-o ensimesmado e entendeu
que não tinha condições de trabalhar na tal emissora, se o diretor considerava
tanto assim a colocação pronominal. Mas resolveu comentar:
- Nas emissoras em que trabalhei nunca
me foi exigido colocar pronomes nos lugares certos.
Pelo que o diretor, do alto de sua
prosopopéia, disse:
- Aqui, porém, é diferente; fazemos
questão dos pronomes nos lugares.
Oscar silenciou. Olhou à esquerda, à
direita, e percebeu em volta um grande silêncio conivente à crítica do diretor.
E mais uma vez na vida sentiu que o chão lhe faltava e que ali não tinha a
mínima condição de garantir o pirão de cada dia, pelo que, logo em seguida,
bateu em retirada.
Oscar foi trabalhar, tempos depois,
noutra emissora, em que nada se lhe exigiu, nem testes, nem pronomes bem
colocados, nem nada.
Mas tudo foi uma curta lua de mel
porque bebia mais do que escrevia.
Para tornar breve esta história, foi
tal a maneira desbragada que Oscar passou, de certa época em diante, a viver -
e ele revelava especial gozo em fazê-lo - que, certa noite, foi surpreendido,
feito menino, (pois jamais distinguiu ou separou o homem adulto da criança) a
pular os muros de uma praça, aos xingamentos dos motoristas de taxis que faziam
ponto em volta, chamando-o ininterruptamente, em uníssono:
- Corno, corno, corno!
Quanto mais era assim alvo da
maledicência de tais pessoas, mais Oscar assanhava-se em pular os bancos da
dita praça, como se loucamente quisesse escapar a esse vozerio pleno de uma
grave acusação a sua honra de jornalista, de produtor de programas de rádio, de
professor de francês, de poeta.
Passou um tempo sem que aparecesse nas
rodas costumeiras.
Por onde andaria?
Todos que o conheciam e tiveram o
privilégio de conviver com ele faziam esta pergunta.
Dizia-se que fora certa feita
desrespeitado por um aluno num bar, mas um amigo lhe tomara a defesa. Em geral,
Oscar não revidava aos ataques dos desafetos. Era de natureza tão frágil que
não reagia a qualquer tipo de agressão. Não que fosse covarde; era bastante
tímido.
O amigo disse a tal aluno:
- Você o desrespeita porque ele é
generoso e bom professor. Certamente, não o reprovará mesmo que você o mereça
e, em geral, a uma pessoa assim não se leva muito em consideração.
O aluno, a estas palavras, recolheu-se
ao mais completo mutismo.
A última notícia que ecoou sobre Oscar
foi que tinha se submetido a uma cirurgia de risco.
Numa tarde de vento sul e chuva,
soube-se que não resistira à operação e morrera.
Há quem diga que, depois disso, um
vulto, nas madrugadas silenciosas e tristes da praça, onde sofrera uma chusma
de ditos escabrosos, partidos dos taxistas, em idos tempos passados,
atravessa-a de um lado a outro, pulando os bancos como um menino.