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Thursday, October 31, 2013

VEM, POEMA - Hamilton Alves

  
Vem, poema,
Nas asas do acaso;

Vem abrir
As portas à luz;

Vem irradiar
A beleza a fundo;

Vem, agora,
Nos revelar

Teu segredo
Tão profundo;

Vem, alvissareiro,
Iluminar a vida;

Vem rasgar
O véu do mundo;

Vem nos encantar
Com teu esto vagabundo.


 (poema publicado sob o pseudônimo de Otto Nul – agosto/2008) 

Wednesday, October 30, 2013

DANS CETTE NUIT – Hamilton Alves

  
Dans cette nuit
Je ne parlerai pas de rien
Rien de mois
Rien de la vie
Rien du monde

Cependant, je parlerai

d'autres choses

De la mer
Des étoiles
De ma voix intérieur

Dans cette nuit
Je suis um homme triste
Sans une parole
Sans un pensé

Dans cette nuit
Je suis seul
Je n'aimerai pas rien
Je sentirai la mort

Je m'enchanterai
Pour la magnificence de la nuit
La douce musique de l'âme
L'innocense d'un enfant

Et rien plus


DETETIVES - Hamilton Alves


Não fui nem sou adepto da literatura policial, mas tenho uma boa quilometragem de leitura de algumas obras, consideradas até primas, de grandes autores do gênero, como Agatha Christie, com seu Hercule Poirot (um homem pequenino, agasalhado até as orelhas, e do qual tudo que se podia ver era a ponta avermelhada do nariz e as pontas de um bigode curvo, voltados para cima), Simenon com seu Maigret, de Dashiell Hammett com seu Samuel Spade, que tinha o maxilar longo e ossudo, seu queixo em V proeminente sob o V mais flexível da boca. Os olhos amarelos pardos eram horizontais. O motivo V era retomado por espessas sobrancelhas saindo de duas rugas gêmeas sobre o nariz adunco e o cabelo castanho claro descia das têmporas altas e achatadas, em ponta sobre a testa.
Essa descrição de Sam é feita logo no início do clássico “Falcão Maltês”, que deu origem a outro clássico, esse do cinema, “Relíquia Macabra”, com Humprhrey Bogart à frente, no papel de Sam Spade. Obviamente que um sujeito com esses traços está longe de ser bonito. Mas isso, para o fim desta crônica, não vem ao caso. Um detetive não é, a rigor, um homem bonito. Como não o é Poirot, tal como o descreve Agatha Christie também no início do clássico “Assassinato no Expresso Oriente”. Conan Doyle, ao que sei, não descreveu fisicamente o personagem Sherlock Holmes, a não ser quanto à forma de se trajar e ao uso do cachimbo. Assim como não se sabe (ao menos não sei) de que Edgar Allan Poe tivesse dado nome a um personagem único de suas novelas policiais, gênero que criou. Chesterton criou Padre Brown, um detetive literariamente muito conhecido, embora tivesse particularmente pouca ou nenhuma convivência com ele. Borges e Byoi Casares também escreveram novelas policiais, mas segundo sei não criaram um personagem definido e característico como os citados.
Refiro-me a alguns detetives notórios que me vêm à lembrança; há outros, como se sabe.
Mas por que, afinal, essa referência a alguns dos personagens clássicos da literatura policial?

Leonardo DiCaprio banca o detetive num filme que está em cartaz no momento nos cinemas de todo o país, “Ilha do Medo” (Shutter Island), dirigido por Martin Scorcese, um grande cineasta, que já produziu tantos clássicos em seu “tour” pelo cinema.
Num jornal recente, o ator fala de sua participação nesse filme, de como o encarou, do que trata e outras questões, que o levam ao mistério do desaparecimento de uma mulher e de seu próprio mistério. Passa de investigá-la à investigação de si mesmo.
Sam Spade tem a cara que Deus lhe deu, como vimos pela descrição de seu criador, que Humprhey Bogart está longe de representar. Tem traços bem diferentes do personagem da novela.
Poderia imaginar DiCaprio fazendo qualquer papel, menos o de detetive.
Não tem o que os franceses chamam de “physique du role” (físico do papel).
Ou será um detetive bem fora da linha tradicional (se é que há tradição nessa linhagem).
Ou em outras palavras: não convence como tal. Ou estarei muito enganado.
Em todo o caso, porei, até ver o filme, as barbas de molho.

(março/10).               
                                                

                                                                                                

Monday, October 28, 2013

CARNELUTTI, ASDRÚBAL, MEIRELLES - Hamilton Alves


Hoje, foi o dia em que choveu a troca de meu nome ou a confusão de minha pessoa com outras. Ou fez-se isso de brincadeira ou a sério. De nenhum deles sou conhecido de agora ou de outra época qualquer, a não ser um único que me pareceu de fisionomia familiar. Foi o que, com mais efusão, quando me encontrou ao sair de uma livraria, com um livro de Cesare Pavese debaixo do braço, me saudou:
- Olá, Carnelutti, você por aqui?!...
Deixei correr a confusão (se confusão), como se não tivesse me dado por achado. Ou se aceitasse a identidade que acabara de me pespegar.
Mas depois que apressadamente desceu rua abaixo – a Jerônimo Coelho – numa tarde de sol escaldante, fiquei ruminando com os meus botões:
- Quem será esse Carnelutti?
Ocorreu-me que Carnelutti foi um grande jurista italiano. Mas isso evidentemente não mudava nada o fato de ter me sentido contrafeito de ser assim chamado.
Também confundo pessoas. Isso é freqüente me ocorrer.
Quando me aproximava da garagem onde deixara estacionado o carro, um sujeito alto, que vinha sobraçando uma pasta, me perguntou sobre a localização de um hotel.
Expliquei-lhe que devia descer a Álvaro de Carvalho, entrar à direita na Felipe Schmidt, o hotel procurado ficava duas ou três quadras adiante.
- Obrigado, seu Asdrúbal!
- Asdrúbal? – me perguntei. Quase estive na iminência de lhe dizer que Asdrúbal era ... mas me contive.           
Lembrava-me que tinha que fazer umas compras, que me foram recomendadas. Para isso recebi um telefonema me refrescando a memória.
Entro no supermercado. Há um reboliço de gente. As filas se encompridam nos caixas.
Um sujeito calvo me olha fixo, me conta sua desdita, que tivera uns problemas nas duas pernas, mas agora se sente melhor, andou uns tempos de bengala, ainda a trazia numa das mãos, mas que estava enfrentando tudo com muita galhardia e ânimo forte.
- Pra que fraquejar, né, Meirelles?
- Só me faltava mais essa!...
O cara sorriu-me, abraçou-me, disse que, se até o natal não nos encontrássemos, me desejava boas festas e um feliz ano novo.
Fiquei esperando que acabassem os abraços para lhe dizer que estava havendo um pequeno engano: eu não era o Meirelles de modo algum.
Mas para remate ainda disse:
- Bons tempos aqueles, hein, Meirelles?!...
Asdrúbal, Carnelutti, Meirelles, durma-se com um barulho desses!

(dez/09).                                            


                                               

Sunday, October 27, 2013

ENCONTROS FORTUITOS - Hamilton Alves

  
Estava num café quando sem mais nem menos entrou Hemingway, com seu corpanzil enorme, seus cabelos grisalhos, seu sorriso inigualável, me cumprimentando afetuosamente.
Dirigiu-se à balconista, pediu uma xícara de café com leite com um sanduíche de queijo. Aboletou-se numa cadeira. Deixou suas coisas em cima da mesa.
Hemingway usava um casaco preto enorme, umas calças jeans, uma sacola não sei de que material estranho onde certamente levava seus pertences.
Tive ímpetos de me erguer de onde estava comodamente instalado para lhe perguntar que final triste e trágico foi aquele de quando, sabedor da morte da mulher, Henri saiu pela noite sob a chuva, curtindo uma terrível dor em “Adeus às armas”, que Otto Maria Carpeaux descreveu como sendo a cena mais pungente que já vira descrita numa novela.
Antes de mim, Hemingway se levantara. Fora ao caixa. Pagara sua conta. Saíra tão neutro como entrara, sem ninguém dar por sua presença insólita, a não ser eu, que já me familiarizara com sua obra.
Depois dele entrou Drummond, autor de um poema que Hélio Pelegrino disse que, quando aluno de ginásio, percebeu claramente que ali se dava o rompimento da poesia moderna com a tradicional – “No meio do caminho”.
Drummond parecia neutro. Ou, digamos, alheio a tudo. Mal se comparando, era o tipo de quem comeu e não gostou ou a imagem da indiferença por tudo e por todos.
Não olhou nem cumprimentou ninguém. Sério entrou, sério ficou e sério abalou-se rua afora, logo depois que sorveu uma xícara de chá.
- Chá!... Que coisa estranha tomar chá a essa hora! – disse de mim para mim.
Sempre lhe admirei o poema ”José”, que, a meu ver, merecia se situar entre os dez melhores poemas do século XX em âmbito mundial, mas que a vesguice de uma comissão julgadora, constituída pela Folha de S. Paulo, em 2000, houve por bem de relegar para os dez melhores nacionais.
Drummond, semelhante a Hemingway, sem dar a mínima aos circunstantes, sumiu dentro de um carro que o aguardava.
Por minha vez, a garçonete do café me trouxe um pacote de pães e a conta para pagar.
Fiquei ruminando comigo mesmo como subitamente haviam aparecido ali (ao mesmo tempo) esses dois nomes consagrados das letras.
Até que ouvi lá fora o ruído de uma carroça barulhenta, puxada por um cavalo magricela. O que me alarmou um pouco no fim da madrugada. Uma chuva rala despencava.


(julho/10).        

Saturday, October 26, 2013

MANEZINHOS - Hamilton Alves

  
Manezinhos, sempre existimos. Mas quem inventou oficialmente essa categoria foi Aldírio Simões, que nos deixou de uma maneira triste e inesperada, quando estava no auge de sua performance como animador de eventos e jornalista.
Entrei para o time dos “Manés” eleitos pelo Aldírio, indicado pelo Chico Pereira, recebendo a gaiola simbólica, já faz algum tempo.
Meu padrinho foi Roberto Carvalho, filho do Ilmar. Não poderia ter tido melhor padrinho para tal ocasião. Uma foto marcou o fato histórico.
Certa feita, ouvi de um de nossos “Manés” mais típicos o comentário de que o apelido de “Manezinho” que se põe a nossa gente tem um teor pejorativo.
Não entendeu nada do que seja um “Manezinho” autêntico. Claro, tem os falsos e verdadeiros “Manés”. Os falsos são gente como eu; os verdadeiros estão sumindo no ralo do tempo. Mas ainda há bastante sobrando por aí. É só dar uma volta pelo interior da Ilha. O “Mané” típico tem fala própria, açoriana, custa-se a entender, tão rápido emite suas frases curtíssimas, como um código verbal muito próprio. O “Mané ” verdadeiro tem um tipo que o distingue de qualquer outra criatura. A culinária do “Mané” é outra revelação de sua índole, em que predomina o peixe frito com pirão de jacuba e outras iguarias semelhantes.
Os falsos “Manés” têm tiques semelhantes ao do autêntico. Por exemplo, sotaque parecido. Falamos, como se diz, cantado. Têm uma cara reveladora de nossa “manezice”. Um estilo de vida. Nossa preguiça ou indolência ou nosso jeitinho para tornar ainda mais simples a vida. Nosso gosto pelo mar e todos os seus seres.
Dizer-se (ou como disse esse amigo, que é “Mané” falso também) que a palavra guarda um sentido pejorativo é puro engano.
O que se quer, no fundo, segundo essa opinião, é tornar nosso ilhéu um caipira, um bocó ou coisa parecida.
“Manezinho” é, sobretudo, um estilo ou uma postura ou uma forma de conceber a vida. Ou hábitos arraigados de longa data que marcam o ilhéu.
No meio de mil pessoas é possível destacar o “manezinho”, pertença ele a qualquer das duas categorias.
Tais são sua distinção, sua fala, seu tipo, sua maneira pessoal de ser e existir.
O último remanescente dos “Manés” puro sangue, aqui pelas redondezas de Santo Antonio, o Agostinho, era, antes de tudo, um santo homem, de uma pureza sem igual.
Agostinho era o “manezinho” cinco estrelas.
Encantava-me quando o recebia em minha casa.
Essas pessoas lindas estão sumindo para dar lugar aos “manezinhos” que menos o são ou que não têm o direito de ostentar esse título com a mesma qualificação.
A concepção de vida do verdadeiro “manezinho” é outra história, digna de figurar num tratado de sociologia.
Mas quem se habilitará a empreender esse resgate da figura do “manezinho”?
Cada vez que, pelas esquinas da vida, cai um desses grandes e legítimos “manezinhos”, a Ilha vai se descaracterizando de um dos seus grandes valores culturais.

(julho/08).

Friday, October 25, 2013

DUBLINENSES - Hamilton Alves


A iniciativa de um grupo paulista, tendo os irmãos Campos (Haroldo e Augusto) à frente, de comemorar o Bloomsday (dia de Bloom), personagem de James Joyce, em Ulisses, romance que foi escrito para acabar com todos os romances (ou esse epíteto vale para Finnegans Wake? – agora balanço na dúvida), contagiou o pessoal da Ilha, com a longa programação para o próximo 16 de julho, que é o dia em que Joyce conheceu sua mulher, em Dublin, e com ela se casou de modo não oficial, que, na pia batismal, recebeu o nome de Norma Barnacle.
Joyce teve que sair de Dublin, que, no dizer dele, era a cidade da infelicidade, tal era, na sua visão, o espírito reacionário que dominava tudo por aquelas bandas.
Diz-se que Ulisses foi recusado em Dublin. Recusou-o uma das potestades das letras irlandesas, ninguém menos que o dramaturgo muito conhecido, Bernard Shaw, com essas duras palavras:
“Ulisses é um registro repulsivo de uma fase repugnante da civilização”.
Essas palavras foram colhidas de uma carta que Shaw enviou à editora de Ulisses, Sylvia Beach. O único livro que editou. Ela era dona da livraria Shakespeare & Company, na rue de l’Odeon, em Paris, que era muito frequentada por Joyce nos maus tempos de argola total. Pequeno detalhe sobre a obra: Sylvia diz, no livro em que narrou esses fatos, que Joyce acrescentou vários trechos a “Ulisses” na medida em que ali mesmo na livraria fazia sua revisão.
Sylvia (que tinha um caso com Adrienne Monnier) adorava Joyce, nas suas próprias palavras: “eu idolatrava James Joyce”.
Voltando às palavras de Shaw, o que parece incrível ter um homem de sua estatura intelectual dito uma tolice dessas sobre a obra máxima de Joyce (consideremos Finnegans Wake também), pode-se imaginar o que um escritor, com a independência intelectual de Joyce, sofria em sua própria terra. Daí ter dito sobre ela o que disse.
Mas queria me reportar, afinal de contas, aos contos “Dublinenses”, que nada mais que vinte editoras recusaram-se a publicar (todas de Dublin). O livro contém quinze contos apenas. Constitui toda a obra, no gênero, de Joyce. São quinze contos que deve ter escolhido a dedo de outros que jogou no lixo ou dos quais não gostou, certamente. O melhor para o senhor qual é? O senhor me retrucaria: e para você?
Pois lhe digo sem rebuços: para mim é “Contrapartida”, não obstante “Os mortos” ser apontado pela maioria das pessoas (ou da crítica) como o melhor de todos. É, inegavelmente, um excelente conto, que não nos esquecemos mais.  Mas em “Contrapartida” gosto muito de seu personagem, Farrington, um empregado de escritório, que tem um conflito com o chefe. Diz-lhe na lata umas boas palavras, muito francas e duras, que, depois, quando bêbado nos bares, fica repetindo para os amigos, como se fora a grande proeza de sua vida. Pega um adiantamento em dinheiro para fazer seu “trottoir” pelos bares e, no fim da noite, nem mesmo consegue se embebedar, que era tudo que mais desejava. Chega em casa, com um buraco na alma (ou vários buracos). Quem paga o pato é o filho, a quem pergunta se a comida está quente.
- Ah, não está quente! Então você vai me prestar contas.
Apronta-se para surrar o filho por essa ninharia quando este, em pânico, lhe diz: “não me bata, papai. Não me bata; eu rezo uma Ave Maria pro senhor; eu rezo...”.
Farrington, de certo modo, somos todos nós, que devemos cada qual ter vivido situação semelhante.
Joyce poderia ter escrito somente “Dublinenses”. E teria sido certamente um escritor bem realizado e famoso.


(Junho/08).                                                    
                       



Thursday, October 24, 2013

CORDOLINA - Hamilton Alves

  
Em “O Castelo”, uma das obras mestras da bibliografia de Franz Kafka, há uma passagem em que uma pessoa fala pelos cotovelos e isso diverte o espírito de K, que está pronto para pegar no sono (cap. 23). E ele pensa:

“Gira, moinho, gira,
Gira só para mim”.

Acho que esse fenômeno alcança (ou deve alcançar) um número grande de pessoas, enfeitiçadas pelas mais diversas circunstâncias em que alguém, a certa hora inesperada, inicia uma conversa, podendo ser a mais tediosa.
Do mesmo encanto sofro eu desde tenra idade. Há pessoas que me enfeitiçam com seu desfile de tolices. Ou me expresso mal o que quero dizer: não chegam a ser tolices. É dessas coisas que o comum das pessoas discorre como seu tema primordial de conversa, sem pé nem cabeça, sem nexo, mas que têm esse fascínio por isso mesmo, ou não dizem nada e por tantas vezes constituem o retrato da vida como ela é (tomando a frase de Nelson Rodrigues).
Conheci uma negra velha, amiga de minha mãe, que tinha um time de amigas do nível de Cordolina (como se chamava).
Cordolina primava por ser uma espécie de moinho que girava, girava, girava, sem parar, emendando um assunto no outro, os mais díspares e desencontrados.
Deitado num sofá, meio sonolento, em dias de chuva, especialmente, adorava ouvi-la narrando coisas trivialíssimas. Como me seduziam seus relatos de tudo que  acontecia em torno de sua vida pacata, de mulher pobre, curtida pela vida, sentindo-se feliz a seu modo, sem grande queixa de nada, suportando seu fardo sem consciência de que se tratava de um fardo, como se tudo fosse a cota natural que a sorte lhe havia reservado.             
Ficava tempos ouvindo-a sem entendê-la (o que era para mim o de menos). A forma como contava os fatos (e eram tantos), envolvendo uma série de acontecimentos em cadeia, isso é que produzia um bom efeito em meu espírito, atraído por sua voz em tom uniforme. Nada me era tão benfazejo quanto o eco dessa voz reboando pelos quatro cantos da sala.
Ficava preso ou, a bem dizer, suspenso em só ouvi-la.
Quando, tempos depois, despedia-se de nós, voltando a sua modesta e trabalhosa existência, era como se acabasse de nos deixar uma feiticeira, que tivesse nos legado os dons de seus prodígios, que ainda enchiam o ar de sua presença mágica.


(set/10).

Wednesday, October 23, 2013

CENTENÁRIO DE MACHADO - Hamilton Alves


Há um livro circulando nas livrarias, organizado por Rinaldo de Fernandes, editado por Geração Editorial, que envolve críticas ou análises de alguns contos de Machado de Assis, no decurso de seu centenário de morte.
Desfilam vários autores que assinam esses trabalhos, uns conhecidos, outros pouco conhecidos e outros tantos, para mim pelo menos, absolutamente desconhecidos.
Não vou, evidentemente, mencionar uns e outros. Além dos contos referidos são incluídos também os romances Don Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas como objeto desses estudos.
Mas o fato que me chamou a atenção foi a escolha ou a seleção dos contos escolhidos para esse trabalho de pesquisa ou de comentário. Cito-os: 1) Missa do galo; 2) A cartomante; 3) O espelho; 4) Noite de almirante; 5) A causa secreta; 6) Pai contra Mãe; 7) O alienista; 8) Uns braços; 9) O enfermeiro; e, finalmente, 10) Teoria do medalhão.
Logo me ocorre verificar que contos superiores a alguns dos mencionados nessa lista ficaram incompreensivelmente de fora, o que deve, certamente, ter sido objeto de estranheza de machadianos respeitáveis ou admiradores da obra do eminente escritor. Reporto-me, por exemplo, a três excluídos e que, obviamente, por sua qualidade excepcional, de modo algum se justifica que o tivessem sido: 1) A igreja do diabo, 2) Idéias de Canário e 3) Eterno, que eu sem pestanejar poria no lugar de alguns dos acima mencionados.
Sei bem que as escolhas nem sempre podem seguir um critério de valor único ou de um só padrão de gosto ou preferência. Isso varia, certamente, de pessoa para pessoa. Mas dois desses contos que mencionei (A igreja do diabo e Idéias de canário) são de teor tão especial (ou até especialíssimo), de uma grandeza tal, que o fato causa, sem dúvida, estranheza, tratando-se de uma obra seleta, que primou por convocar os críticos mais ilustres e mais credenciados para prestarem essa homenagem justíssima a um dos maiores vultos de nossas letras.
Na verdade, no caso de “Idéias de canário”, que li numa idade já de certa madureza (aquisição: 26 de junho de 1959), que foi publicado com a antologia “Páginas Recolhidas”, que reúne talvez seus melhores contos, não se explica o motivo pelo qual esse conto não tenha merecido destaque dos estudiosos e conhecedores da  obra de Machado. Diria, sem vacilar, que pode figurar ao lado de Missa do galo, Teoria do Medalhão e A igreja do diabo, que são os meus preferidos, sendo que, como se pode ver, esse último não está entre os que constam da dita antologia ora publicada em homenagem ao centenário do (não, não vou dizer do bruxo de Cosme Velho) fundador da ABL.
Não tem explicação sequer razoável tal exclusão.
Deixo no ar esse registro com certo intuito provocativo.
Há pouco, causou-me estranheza que um homem com o cabedal de leitura (sendo um dos maiores bibliófilos do país) de João Mindlin, perguntado sobre qual o melhor conto de Machado, numa entrevista há pouco concedida ao Estadão,  disse ser “A cartomante”.
Dir-se-á que a escolha é livre.
Acho que não é tão livre assim. Há que se ter critério.
De modo algum se pode aceitar que esse conto rivalize com os melhores produzidos por Machado. Não se pode deixar de considerar Missa do galo, Teoria do medalhão, A igreja do diabo e Idéias de canário, que têm lugar de honra assegurado na galeria machadiana de contos.        

                                    

Tuesday, October 22, 2013

ESPELUNCA - Hamilton Alves


Há quem possa considerar isso anormal, mas adoro uma espelunca. Tal preferência demandaria uma análise psicanalítica? Em primeiro lugar, não acredito em psicanálise. Acho as teorias psicanalistas meio furadas. Posso viver bem sem essa muleta. Ou prescindindo dela. As pessoas acabam escravas das receitas impostas ou descritas por ela. É uma servidão interminável.
Minhas raízes, digamos, sociais são de um garoto que conviveu bem de perto com a pobreza. Se é que isso possa ser um dado sobre o qual a psicanálise poderia abrir alguma luz.
As coisas simples sempre me encantaram mais do que as sofisticadas. Tudo que é simples é mais belo. Ou tem um encanto próprio ou todo especial. Uma espelunca é uma coisa inteiramente desprovida de artifícios.
Não faz muitos anos, fui a Curitiba com a família, que embarcou num ônibus de volta. Fiquei retido por lá mais um dia (nem me lembro o motivo).  Escolhi para pernoitar uma espelunca próxima à rodoviária, sob os protestos de todos.
- O senhor pode perfeitamente se hospedar num hotel mais decente.
- Por uma noite, ficarei aqui nessa espelunca mesmo.
Nem a rigor se tratava de uma espelunca. Era um hotelzinho modesto, mas longe de ser uma espelunca nos moldes em que a conhecemos (ou concebemos).
O quarto que me foi destinado tinha uma cama de casal, um guarda-roupa velhíssimo, com três cabides, dois travesseiros e um cobertor. Era uma peça exígua, em torno de uns vinte metros quadrados. Tinha um espaço sanitário anexo.  Levei jornais, revistas, li-os até adormecer. Consultei os filmes nos cinemas para ver se valia a pena ver algum naquela noite. Mas resolvi mesmo entregar-me aos braços de morfeu.
Houve um episódio curioso. A certa hora, por debaixo da porta de entrada, entrou uma barata. Preocupado que, durante o sono, me molestasse, resolvi matá-la. Armei-me de uma toalha dobrada e fui a sua caça. Dei-lhe três ou quatro bordoadas, mas escapou ilesa de todas. Voou não sei para onde. Ficamos quites. Mas houve, antes, um gato preto, que, à entrada do quarto, enroscou-se-me às pernas.
- Um gato preto? Isso pode ser mau presságio. – disse de mim para mim.
Na verdade, um gato preto, àquela altura, não era nem de longe mau presságio. Quando menos, solitário no quarto, uma presença simpática. Ou amiga.
Fiquei bem instalado.
Na manhã seguinte, vi uma senhora carregando uma trouxa à cabeça.
O gato estava trepado em cima de um cesto, provavelmente de roupa suja. Olhava-me do jeito que olham os gatos.
Paguei a conta do pernoite, dirigi-me à rodoviária. Instalei-me no ônibus. Logo me assaltou o sonho horrível que tive com uma barata gigante, que ameaçava devorar-me.
Noutra crônica, disse que qualquer dia vou passar umas boas horas escondido do mundo no “Hotel” (espelunca ilhoa), na Rua Padre Roma, que tanto fascínio exerce sobre mim.                           

(julho/08)


Monday, October 21, 2013

A NARRAÇÃO ACABOU? - Hamilton Alves

  
Há uma idéia corrente entre professores de literatura ou críticos literários segundo a qual a narração convencional de início, meio e fim acabou.
Há dias, precisei consultar a novela de Balzac, “O Pai Goriot”, e me deliciei com a leitura de uma dezena de páginas, pronto para reencetá-la, tratando-se de um dos grandes momentos das letras do século XIX e de Honoré de Balzac como escritor.
Que delícia rever ou reencontrar os pensionistas da sra.Vauquer, na rue Sainte Genovève, entre o Quartier Latin  e o Faubourg Saint-Marceau, com os inesquecíveis personagens, Vautrin, Poiret, Rastignac, o próprio Goriot, cujo quarto é amplamente descrito por Balzac. Quanto daria para morar num quarto assim!
Os especialistas em literatura aludem que a descrição de ambientes ou de personagens acabou na modernidade literária.
Exatamente por isso, por essa específica qualidade dessa obra de Balzac e de outras tantas de sua autoria, é que recorri a ela num desses dias para me certificar de cada detalhe da pensão Vauquer, das pessoas que ocupavam o primeiro, o segundo e o terceiro pisos e dos pensionistas eventuais, como era o caso de Bianchon, que a esse tempo era estudante de medicina, e que veio a ser um dos figurantes de maior projeção da obra balzaquiana.
Dizer-se, por isso, que essa literatura narrativa e descritiva não tem mais lugar em nosso tempo é uma tolice. Quem gostaria ou sequer admitiria que Balzac contasse sua história - a de “O Pai Goriot” - diferente do que é?
Faça-se essa pergunta para qualquer ledor contumaz, aos amantes de literatura, aos seus apaixonados, para ver-se a opinião de cada qual. Notar-se-á que será predominante ou quase unânime a opinião de que não haverá um só dentre os admiradores da obra balzaquiana ou dessa novela, em especial, que jamais admitirá que tenha seguido a linha ou os moldes da atual literatura, que abandonou a descrição ou os detalhes necessários para que o leitor entre na intimidade ou até mesmo no convívio de personagens e ambientes de uma história.
No meu caso, me sentiria profundamente descontente que fossem de tratamento diferente as novelas consagradas, entre as quais se inclui essa, ou ainda outras como “Madame Bovary”, “Ana Karenina”, para citar-se as maiores e de maior projeção nas letras universais, que seguem o mesmo padrão descritivo ou narrativo.
A descrição é elemento altamente de valor em “O Pai Goriot”, sem o que como se entrar naquele mundo único e extraordinário em que conviviam esses personagens que marcaram para sempre a literatura mundial?
Os escritores modernos primam pela escassez de descrição e de narração, entendendo que a literatura deva seguir por uma linha de abstração ou predominantemente literária, no sentido de que a história ou narração ou mesmo a descrição não tenham mais lugar. Quem é que tem idéia de como era, por exemplo, Leopold Bloom, personagem de Joyce, em “Ulissses”?
“Não se pode mais regredir no tempo, à literatura passadista, de séculos atrás” – é o refrão que constantemente se ouve.                 
Como Balzac desmente essa teoria, atendendo aos pormenores, às coisas miúdas, de como era a pensão da sra. Vauquer ou desenhando as figuras de um Vautrin, de um Rastignac, de um Poiret e outros!
É de tal forma fascinante o início dessa novela que me considero de novo convocado a repassar essas mais de duzentas páginas de meu exemplar já tão castigado pelo uso. E que a crítica vá plantar batata.


(agosto/08)

Sunday, October 20, 2013

LÁGRIMAS - Hamilton Alves

o vento escorrega levemente
na tarde que murcha
por teu rosto
inverossímil

aranhas estranhas
enquanto isso
rasgam o tecido
da aurora

não antes
que tuas lágrimas
inundem minha
alma.

(Poema publicado no livro "Canto do Vento" - Bernúncia Editora/2005).

Saturday, October 19, 2013

LEGENDA - Hamilton Alves

(evocação a Borges)

não me nego
nem o meu destino
que não lastimo
de cer cego;

a cada qual
sua dura cruz
nada neste mundo
me seduz;

não sou estóico
nem herói sou
mas há uma legenda

que é meu lema
embora todas as penas:
sou quem sou.

Friday, October 18, 2013

AS HORAS - Hamilton Alves

não convém mexer
com o pão no forno
o sol talvez não
esteja propício

e as horas talvez
não aconselhem
nesta fase em 
que os ponteiros

se mostram intolerantes
com o decurso desigual
do tempo

e as matronas
vêm exaustas dos açougues
e o gato sorri
à soleira da porta

nem te atrevas
a olhar a rua
pois os duendes
as enxameiam

ah, queria te dizer
que tudo é muito
complicado neste
vasto mundo.

(poema publicado no livro "Canto do Vento" - Bernúncia Editora/2005).

Thursday, October 17, 2013

ALDEMIR - Hamilton Alves


Em algum lugar suponho que já escrevi a história que segue. Nem é, a rigor, história, a bem dizer, é um fato desses corriqueiros que vive um jornalista ou um homem interessado em arte.
Acompanhei a uma viagem a São Paulo, faz uns poucos anos, um velho amigo. Não vou me referir ao ônibus que nos levou até lá, que cheirava mal por todos os cantos. Nem muito menos sobre a conversa molesta que me foi proporcionada por dois casais, meus vizinhos de banco, que, além disso, fumaram todo o estoque dos cigarros que traziam para o meu infortúnio de não fumante. Pouco se lhes dava que, bem à frente deles, houvesse uma recomendação impressa de que era proibido fumar.
Quando chegamos a São Paulo, olhei à rua e a primeira cena vista foi de um sujeito bêbedo, sob a bruma do amanhecer, que falava ao vento.
Além dos propósitos que levara meu amigo à Paulicéia, incumbia-lhe comprar um sapato especial, com certas características de forma e cor, recomendado pelo filho.
Percorremos algumas sapatarias do centro de São Paulo com esse fim. Já me dava por vencido de tanta andança feita em busca do tal sapato.
Até que entramos na Rua 15 de Março, muito conhecida (ou não será esse o nome da tal rua?), em que, na vitrine, me deparei com um mural de um desenho magnífico de um sapateiro, que batia o salto de um sapato numa forma.
Logo de cara identifiquei o pintor. Tratava-se de uma obra belíssima de Aldemir Martins, que se especializou em desenhar gatos, que andou ganhando prêmio até na bienal de Veneza.
Havia o detalhe, não explicado, que metade do mural era coberto com um pano. Por isso, chamei o gerente (ou uma pessoa que circulava no local) e lhe pedi informações por que tal acontecia.
Disse-me que me entendesse com outra pessoa, esta presumivelmente o gerente. Perguntei-lhe por que se encobria metade do mural.
Disse que não tinha a menor ideia. O proprietário da loja não estava presente, que podia me esclarecer sobre o caso.
Indaguei-lhe se saiba quem era o autor do mural. Também nada sabia sobre isso.
Foi quando lhe informei:
- Esse pintor é Aldemir Martins, um dos principais artistas visuais conhecidos e muito premiado.
Fez uma cara de espanto.
Dois meses depois, voltei a São Paulo com o mesmo amigo e para o mesmo fim que ali o levara da primeira vez. Passamos na dita sapataria onde estava exposto o mural de Aldemir. Só que agora todo o mural estava a descoberto. O que me levou a crer que valera minha referência de que a obra pertencia a um grande pintor.


(ago/10)

Wednesday, October 16, 2013

BECKETT - Hamilton Alves


Que é que sei de Beckett? Pouco, muito pouco. Sei que formou na resistência francesa, na segunda guerra mundial, quando da invasão nazista na França. Hitler, quando se deparou com Paris, deve ter achado uma grande petulância se meter lá dentro. Não tinha suficiente estofo para tamanha grandeza. Ou talvez nem olhasse a coisa desse ângulo.
Mas voltemos a Beckett.
Sei que conheceu a mulher com quem veio a casar por ter sofrido um acidente de bicicleta (Paris deve ser a cidade ideal para se andar de bicicleta por ser inteiramente plana), que o ajudou a erguer-se e a recuperar-se. Desde então não se separaram mais.
Que ganhou o Nobel de literatura não é novidade para ninguém.
Talvez não tenha sabido que a atriz Cacilda Becker, que interpretou o papel de Estragon, na peça de sua autoria, “Esperando Godot”, ao lado de seu marido Walmor Chagas, tenha morrido, em pleno palco, de aneurisma.
Descobri uma foto de Beckett andando sozinho pelas ruas de Paris, carregando às costas uma sacola enorme. Era um de seus prazeres confessos – andar.
Como dizia outro escritor de nomeada, Patrick Suskind, andar envolve uma atividade de teor sedativo ou lúdico (di-lo em The Pidgeon ou A Pomba) – uma das melhores novelas que li.
Fui assistir “Fim de Partida”, um texto que tentei ler em espanhol, mas me enjoou de saída. Fui ver a peça bem mais tarde, com Edson Celulari e Cacá Carvalho nos papéis de Hamm e Clov, revezando-se em um e outro. Saíram-se às mil maravilhas tanto num quanto noutro. Nunca esperei que pudessem produzir um espetáculo majestoso de teatro.
Fui ao teatro nessa ocasião sem nutrir grande esperança de ver algo que me encantasse.
Beckett (todo mundo que o conhece ou já leu algo a seu respeito o sabe) era absolutamente cético. Mas era atormentado pela idéia tenaz da existência de Deus, de que nunca conseguiu se libertar inteiramente.  Sua peça “Esperando Godot” bem o reflete. A palavra Godot é uma corruptela de “God”, que significa Deus em inglês. Ou ainda em alemão “Got”.
Beckett revolucionou a cena mundial com suas peças absurdas. E isso parece que é o bastante para colocá-lo no panteão dos grandes dramaturgos de todos os tempos.

(set/10).


Tuesday, October 15, 2013

BOUTADES DE NELSON - Hamilton Alves

  
Nelson Rodrigues talvez seja um dos maiores frasistas da literatura brasileira, honra que divide com Machado de Assis, embora as célebres cunhadas por este soem mais profundas.
A expressão ‘óbvio ululante’ é repetida de quando em vez por toda parte. “Ululante” é bem típico da adjetivação colhida do bolso do colete de Nelson, o gênio do achado linguístico, que acaba se consagrando no uso de todos.
Além dessa virtude rara em nossos dias e mesmo até em seu tempo, em que escrevia diariamente uma pequena novela (verdadeiro dramalhão), no jornal “Zero Hora”, de Samuel Wainer, no rodapé da última página, que o jornalista Ruy Castro ouvia sua mãe ler para ele quando ainda um garoto e, mais tarde, organizou um punhado delas, que fez grande sucesso de bilheteria, Nelson é um humorista de primeira linha. Basta ler, para comprová-lo, seu livro “A cabra vadia”, que é um repertório de histórias de grande hilaridade.
Quanto às frases, de lembrar duas pela forma inédita como foram formuladas. Na novela “O casamento”, que é uma boa xaropada do começo ao fim, que fiz duas ou três tentativas de ler infrutíferas, tem uma frase assim: “Todo o velhaco é magro”. Essa definição de velhaco é eminentemente nelsonrodrigueana. Ninguém diria isso não fosse ele. Cultivou a arte de dizer as coisas originalissimamente.
Há outra do mesmo padrão: “A negação de Garricha é de uma aridez de três desertos”. Disse-a quando estava no auge o aproveitamento de Garrincha na seleção brasileira com suas famosas pernas tortas.
Há dias um amigo acercou-se de mim para protestar, até com certo azedume, contra outra frase dele: “O que toda a mulher precisa é de um tanque”.
“Isso não é politicamente correto” – disse-me, reprovando Nelson.
Ora, quem é que vai impugnar os ditos chistosos de Nelson considerando o politicamente correto?
Dane-se o politicamente correto. Outra que lhe pareceu fora de propósito foi Nelson ter dito, abordando o tema do marxismo, a respeito do qual era visceralmente contra, a seguinte e lapidar sentença:
- Marx é uma besta!
Com uma frase apenas desmontou Marx e todo o marxismo.
Já ouço os filósofos de botequim protestar que não se pode comparar a erudição de Marx, afamado no mundo todo, a um simples homem de letras brasileiro.
A erudição sempre é ouvida com grande respeito e fascinação, mas a galhofa ou a mordacidade não contam para o comum das pessoas.
Um homem de cultura popular, como Nelson, não pode, por isso mesmo, se insurgir contra uma sumidade igual a Marx.
Pois sou mais aberto aos pregões dos arautos do popular do que do erudito.
Sou mais Nelson do que Marx. Desconfio de toda a erudição.
            Assino embaixo: “Marx é uma besta”.


(dez/10).                                                                    

Monday, October 14, 2013

A DESVENTURA DE JIRKOV - Hamilton Alves

  
Tchecov continua sendo o grande contista a empolgar leitores de todo o mundo com suas histórias curtas, que têm sempre um conteúdo exemplar ou de singular humanismo. Ou engraçadas ou bem humoradas, como é o caso da que se recolhe num volume de contos, editado pela LP&M, que tem o título “Um Homem Extraordinário”. Poucos escritores o igualam na arte do conto; nenhum o supera.
Num conto de oito páginas nesse livro de bolso – “História desagradável” – o personagem Jirkov vai de caleça à casa da amante, esperando por uma noite que o pague de enfrentar uma estrada lamacenta e de muita chuva. Troca umas palavras com o cocheiro.
- Foste algum dia amante? Certo não és poeta para avaliar o quanto isso importa na vida.
A seguir, pede-lhe que deixe à frente da casa de sua amada o vestido empacotado, com um buquê de flores e um queijo, que lhe deverá entregar. Isso é feito por ele com um pouco de má vontade, enfiando os sapatos no lamaçal.
O cocheiro parte e o deixa entregue à contingência de bater à porta da amante. Ela o vê encharcado pela chuva, com frio, e avisa-lhe que o marido, caixeiro-viajante, inesperadamente, voltou de viagem.
- Ora, que maçada! – diz.
Diante de tal situação que fazer?                 
Ele bem conhecia o marido, um francês, de nome Boiseau, bigodudo, com amplas suíças. Senta-se no vestíbulo da casa sem saber que atitude tomar. Até que se resolve a pressionar a sineta para entregar o vestido, caso contrário se perderia exposto ao aguaceiro. 
Vem atendê-lo o marido, que, arrastando um sotaque francês, pergunta-lhe:
- O que querrr a senhorrr?
Jirkov inventa uma história de ter sido encarregado de trazer o vestido a sua esposa. Entrementes, lamenta-se de estar ensopado pela chuva, com frio, e o pior é que a caleça que o trouxe foi-se embora e por ali não existe à vista nenhuma forma de conseguir outra para voltar. O marido manda que entre, acolhe-o por alguns momentos, chama a mulher, que recebe o vestido, as flores e o queijo, e diz-lhe que nada se pode fazer diante do fato de o marido ter voltado de viagem. Jirkov é devolvido à rua. Vai passar a noite num coreto, único lugar que o impedirá de não ficar exposto ao mau tempo.
Lembra-se que, no dia seguinte, muito terão que rir dele os amigos quando lhes contar a sua malograda visita à amante.
Chapinhando na lama com suas galochas, sob a chuva inclemente, Jirkov recorda-se que tanto alimentava a ideia de passar bons momentos sob o calor da amante, depois de uma viagem tão longa.
Na sombra da noite sua figura vai pouco a pouco se desvanecendo, evocando seu escritório em que poderia estar agora bem instalado e agasalhado. Um sentimento misto de ridículo e malogro invade-lhe a alma.
É um conto literariamente perfeito, revelador da arte desse escritor incomparável.


(abr/10).

Sunday, October 13, 2013

AS PLATITUDES DE SARAMAGO - Hamilton Alves

  
O prêmio Nobel deve dar ao seu ganhador uma espécie de aura que o faz julgar-se acima do pensamento corrente e que pode perfeitamente arrogar-se o direito de ditar o último conceito sobre tudo, desde o tema mais complexo que se refere, por exemplo, à existência ou não de Deus, tema, aliás, que tem atravessado sem solução até os dias atuais, envolvendo coisas mais corriqueiras, como a política corrente nos países, a moda de vestir ou o destino do planeta ou teorias sobre o triunfo das ideologias ou seu rotundo fracasso.
Foi assim que num dia desses o escritor José Saramago foi chamado a um auditório, cercado de jornalistas, quatro ou cinco, de críticos de literatura, e de não sei mais quem, para ser interpelado.
Alguns assuntos foram feridos por ele, de preferência os que dizem respeito a Deus. Ele dá, a esse respeito, uma no cravo, outra na ferradura, com dizer-se que nem sempre acerta (ou nunca acerta). Até hoje, que se saiba, ninguém descobriu se Deus existe ou não. De modo que se trata de assunto, de começo, inabordável, que nem mesmo um prêmio Nobel, por mais avisado, deveria arriscar sua opinião, sob pena de cobrir-se de ridículo. Mas Saramago, quando provocado, foi em frente e sapecou que não devia a cura de sua doença a Deus. Quem o salvou foram os médicos e os remédios que lhe foram ministrados.
Quanto a ser comunista, por que sê-lo ou por que não sê-lo? Antes sê-lo. Mesmo depois da fragorosa derrota do comunismo no país que fez uma revolução histórica para adotá-lo, continua firme na idéia de que tudo pode se resolver com a formação de uma sociedade do tipo da preconizada por Marx.
“Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal”. Essa categoria de comuna não fora ainda catalogada. “Assim como tenho no corpo um hormônio que faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista”. De modo que se deduz que, para ser comunista, não precisa mais da razão; os hormônios é que lhe ditam a norma de pensar. No caso, de mal pensar, porque o comunismo obviamente não se sustenta mais; caiu de podre. Mas segue fiel a Marx (embora tenha rompido com Castro), afirmando que “Marx nunca teve tanta razão como agora”. Mas no fim, não se mostrou tão convencido das razões do filósofo alemão: “Vejamos se Marx tem ou não razão”.
“A Bíblia é um livro (diz ele) que não se pode deixar nas mãos de um inocente, só tem maus conselhos, assassinatos, incestos...” Que Bíblia terá lido Saramago? Deve ser alguma que ninguém conhece. Ou ninguém leu.
No fim, falando da literatura brasileira, diz alguma coisa curiosa: ”Há algum tempo os escritores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns casos podemos dizer que conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a portuguesa. Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral, Manuel Bandeira, essa gente era lida com paixão (não citou, por estranho, nem Machado nem João Guimarães Rosa, justamente os maiores). Agora que eu saiba não há nenhum escritor brasileiro que seja lido com paixão em Portugal. Não temos obrigação de descobrir o que nem sabemos se existe”. Saramago, como se vê, entrou de sola na falta de escritores brasileiros ou em escritores brasileiros que não constituem mais a paixão do leitor português. Alguma coisa deve estar dando errado com o leitor do outro lado do Atlântico para desconhecer um dos maiores escritores da literatura universal, Guimarães Rosa, cuja obra deveria ter precedido à de Saramago com o Nobel, disparadamente.
No fim da entrevista, uma pessoa, no recinto, ergueu-se nos calcanhares e saudou o escritor com essas palavras: “Em nome de todos os brasileiros, obrigado por existir”.
Até que não lhe calharam de todo mal.


(Nov/08).