Li há pouco, em “As obras primas que poucos leram”, que vem sendo editado
pela Record com bastante sucesso, um trabalho de Otto Maria Carpeaux,
envolvendo o teatro de Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês, em que faz a
apologia desse teatro, entendendo que
não está assim tão fora de época como quer uma certa crítica, tanto é que, só
para citar um exemplo, “Casa de Bonecas” marcou época no teatro mundial e,
neste país, consagrou-se com a interpretação de Tônia Carrero da personagem
Nora, o que também marcou grande êxito na carreira dessa atriz.
Por coincidência, foi a única peça de Ibsen que li. Sua obra prima teria
sido “Hedda Glaber” e, também, com igual repercussão, “Peer Gynt”. Ibsen, em
seu tempo, foi um autor que atingiu o maior destaque internacional, seguindo de
perto a linha das tragédias shakespeareanas. Embora, evidentemente, o teatro de
Shakespeare esteja, em múltiplos sentidos, num nível de maior grandeza em
relação ao de Ibsen.
A história de “Casa de Bonecas” foi um despertar da consciência feminina
de uma espécie de condição de serva do lar ou doméstica, no desempenho estrito
desse papel, submetida às ordens tirânicas do marido, na forma como até então
era (e é) concebido o casamento de tipo burguês. Nora casou-se e foi infeliz.
Essa história pretende ser uma repetição de muitos outros casos semelhantes de
mulheres que não conseguiram se realizar no casamento ou para as quais a vida
conjugal, a partir de certo momento, começa a ser um pesadelo, não restando
outra saída, devido à pressão social (reinante naquela época), do que a sujeição
à ordem das coisas.
Foi a partir dessa consciência que se iniciou, em toda parte, o “Women
Lib” (ou o movimento de libertação da mulher), que preconizava e preconiza,
ainda agora, a insubmissão da mulher a um estado de coisas que não mais se
compraz com seus sonhos de ser emancipada.
Carpeaux cita que, num bar de Munique, na Alemanha, para onde se mudou,
depois de viver um largo período em seu país natal, onde só colheu fracassos no
início de sua carreira de dramaturgo, Ibsen se recolhia a um canto e ali ficava
a colher o noticiário dos jornais, notoriamente o que se referia a problemas de
toda ordem no âmbito da sociedade,
colhendo farto material para compor suas peças. Morto Ibsen, o lugar passou a
se constituir atração turística. Um velhinho muito parecido com ele fora
contratado para ficar no mesmo canto por quatro horas diárias para atrair a atenção
de curiosos.
O repertório de peças de Ibsen é bastante numeroso, destacando-se a que
Carpeaux refere com um dos seus grandes momentos, “Espectros”, que, no dizer
dele, se constitui de personagens secundárias, que aparecem imprevistamente no
palco e muitas vezes representam o traço de suas tragédias, trazendo à tona seu
passado terrível, que se projetam como sombras macabras em suas vidas.
De Ibsen vi uma única peça encenada: “O construtor Solness”, que Carpeaux
diz ser um título equívoco, pois o correto é “O arquiteto Solness”. Não vejo
grande diferença entre “Construtor” e “Arquiteto”. Daí não entender muito o
motivo porque destacou o fato. O personagem principal foi interpretado por
Paulo Autran. Não gostei da peça. Pareceu-me monótona, tendo Autran se
esforçado para torná-la interessante.
Passado por essa experiência com o teatro de Ibsen, com uma peça lida e
outra assistida, adquiri um livro contendo suas peças, com exceção das mais
famosas, “Edda Glaber” e “Peer Gynt”. Mas as duas conhecidas me foram
suficientes para concluir que o teatro de Ibsen não corresponde mais à estética
destes tempos. É um teatro que é feito em cima da realidade social, daí chamar-se
de realista, que Carpeaux considera que “não é tão realista assim”.
Um pouco depois do desaparecimento de Ibsen, cuja morte ocorreu em 1906,
quando já se esboçava na Europa o movimento modernista, surgiu o teatro do
absurdo (como consequência da guerra de 40), com nomes de vanguarda no teatro,
como Albert Camus, Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Harold Pinter (este um pouco
mais tarde), entre outros, que mudaram completamente o estilo e as
características do teatro.
A partir de então, embora surjam aqui e ali (ou ainda apareçam ainda hoje
em alguns palcos do mundo), as peças de Ibsen contêm, como não poderia deixar
de ser, um teor meio bolorento ou francamente superado. Para alguns diretores
tem sido um verdadeiro suplício encená-las. Mesmo tratando-se de uma obra
consagrada em todos os tempos como “Casa de bonecas”. Apesar de tudo, conserva
um bom traço de reflexão sobre a tragédia da família moderna, ainda agora
atingida pelos mesmos problemas que são ali retratados. Os dramas conjugais
continuam praticamente os mesmos da época em que Ibsen criou seus
personagens.
Particularmente, achei o tema de “Casa de bonecas” meio insípido ou
inverossímil. Carpeaux tem, por essa peça, ao que parece, especial simpatia,
tendo sido ele, na sua performance na imprensa, um indisfarçável adepto de
todos os movimentos libertários.
Mas mesmo esse valor emancipatório, que empreende Nora (a personagem de “Casa
de bonecas”), me parece meio ilusório e até superficial, pois afinal de contas
não se descobriu a fórmula da felicidade absoluta. Dizia Tolstoi – no romance
Ana Karenina, que trata de questão semelhante – que “é um eterno equívoco se
julgar que a felicidade é a satisfação
de todos os desejos”. Embora seja válida a forma pela qual Nora se bate pelos
direitos da mulher. Porém, no plano filosófico puro, a discussão fica em aberto. Toda a peça,
em suma, repousa, a meu ver, em falsas premissas e acaba, no fim, se tornando
uma expectativa fraudada para quem espera colher dela uma receita infalível
para vencer todas as dificuldades da existência, mesmo que tais dificuldades se
restrinjam especificamente ao âmbito da família.
Não pretendo dizer que o teatro de Ibsen (como qualquer outro autor de
seu ou de outros tempos, Bernard Shaw, Gorki, Pirandello, Gogol, Tennessee
Williams, Arthur Miller e outros de escolas parecidas), esteja acabado. Há
público para tudo.
Quem não gostaria de ver, nos palcos, novamente, Tonia Carrero
interpretando Nora com sua classe, maestria e versatilidade de grande atriz?
Não se perderia um tal espetáculo, embora as restrições que se lhe pudessem
fazer de ser datado ou de não corresponder mais à linha desta época.
O teatro do absurdo, por sua vez, vai caminhando para o mesmo destino,
não obstante Ionesco e Beckett serem ainda sucesso em qualquer palco do mundo,
com foi o caso recente da encenação de “Fim de partida”, no teatro do CIC, com
Edson Celulari e Cacá Carvalho revezando-se no papel de Clov e Hamm, num
espetáculo de rara beleza cênica.
Há quem pense que, dentro de mais algum tempo, o teatro será uma
linguagem esgotada (como, de resto, a de outras expressões de arte). Ou a
profecia da morte da arte é dada como certa. Mas a arte reagirá a todas as
crises, renascendo das próprias cinzas como uma nova fênix.