Total Pageviews

Saturday, July 30, 2016

A FALTA QUE JOSÉ CARLOS OLIVEIRA FAZ - Hamilton Alves


Não falo de Rubem Braga, de Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antonio Maria, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, como cronistas (estes dois últimos grandes poetas, talvez os maiores deste país), aos quais há uns anos passados costumava ler em jornais, revistas, em livros exclusivos ou antologias (guardo algumas dessa época e desses autores, como relíquias literárias, e às quais sempre recorro para matar saudades ou para rememorar páginas que me são muito caras) mas especialmente de José Carlos Oliveira, que não tive a felicidade de conhecer em tantas vezes em que estive no Rio, na mesma época em que tinha uma coluna permanente no Diário Carioca, que era um dos jornais mais simpáticos que por lá se editava e do qual, por causa de Carlinhos, era eu ledor.
Carlinhos deixou alguns livros de crônicas. Tinha um único, "Os Olhos Dourados do Ódio", que não sei até hoje onde foi parar ou se o emprestei e não mo devolveram, essas coisas que acontecem com livros preciosos que se emprestam e que não nos voltam nunca mais às mãos.
Nesse livro, havia uma crônica que particularmente me tocou. Creio já Ter referido em outra oportunidade essa história. Carlinhos falava de um apartamento em que morava no Rio e que, a partir de certo momento, tem que se mudar dele. As mudanças às vezes se tornam dramáticas. Em geral, a pessoa se liga muito por vários motivos ao local onde mora, onde se acostumou a Ter seu canto predileto, até sua rua ou aspectos da paisagem pelos quais se familiariza ou se torna íntima ou se habitua e, por causa desse enraizamento, as mudanças são sofridas.
Pois no dia em que se viu compelido a mudar-se para outro lugar, Carlinhos já havia reunido todos os seus pertences, melhor dizendo, suas bugigangas. E, no derradeiro momento de fechar a porta atrás de si, lembrou-se de Ivone. Este, no dizer dele, foi o momento mais emocionante. Ivone? Quem era Ivone? Pois Ivone era ninguém mais nem menos que uma baratinha, à qual o cronista se afeiçoara durante todo o tempo em que morou nesse local, a quem estava acostumado encontrar quando, em madrugadas seguidas, chegava ali às vezes bêbado, cansado, decepcionado e tantos outros estados semelhantes - e a baratinha sempre o recebia ou o acolhia em seu canto.
Pois, antes de deixar o apartamento, Carlinhos voltara-se para dentro dele, na intenção de descobrir por onde andava Ivone para despedir-se condignamente dela. A partir daquele momento, a separação seria irremediável. E isso lhe trazia um pouco de tristeza. Não a achou por mais que fiscalizasse os cantos do apartamento.
Mas quando de novo voltou-se à porta, de malas à mão, sabedor que era seu último momento de convívio com todas as coisas que ali tinham existido, teve uma última palavra de despedida: "adeus Ivone".
O fato de, hoje, reconhecer que não há mais como ler José Carlos Oliveira, que nunca mais encontrarei em qualquer órgão da imprensa uma crônica escrita por ele, me dá a íntima convicção de que o mundo, sem dúvida, se empobreceu. Só me resta ainda um único livro dele, que me foi dado de presente por um amigo, Iaponam Araújo. O que me permite um reencontro com as belas crônicas do Carlinhos.



Setembro/02.

Thursday, July 28, 2016

A ESTRELA - Hamilton Alves


Vi uma estrela separada de outras
No infinito do céu
Na última madrugada;
Perguntei-lhe:
Por que brilhas tanto?
Brilhar é meu ofício – disse;
Por que estás tão só?
Não estou só,
Estou comigo mesma;
Por que estás tão longe?
Longe é um lugar que não existe –
Depois, com seu brilho,
Na sua solidão,
Na distância em que se achava,
Apagou-se.



(poema de Hamilton Alves escrito sob o pseudônimo de Otto Nul em dezembro de 2006).

Wednesday, July 27, 2016

A ESPERA - Hamilton Alves


Sentei num banco de praça
E longamente refleti

Ou esperei por algo
Que ignorava o que fosse

Fosse o que fosse
Pouco me importava

Fosse um amigo
Fosse um inimigo

Fosse nada
Fosse tudo

Fosse um abraço
Ou uma palavra má

Estava ali resoluto
Para o que desse e viesse.


(poema de Hamilton Alves  escrito em novembro de 2008 sob o pseudônimo de Otto Nul).



Monday, July 25, 2016

A ESFINGE - Hamilton Alves


            Quando adolescente, nunca fui dado a abordar moças. Cheguei à puberdade sem dominar a arte de envolvimento do sexo feminino. Tive tentativas malogradas. Sofri desde cedo o problema da rejeição das meninas pelas quais tomava-me de paixão. O primeiro amor, por exemplo, foi um fracasso e alguns outros também. Não era dotado de beleza física. Esta qualidade prepondera para a escolha de parceiros ou namorados que as moças fazem. Mas também houve casos, poucos, em que a rejeição partiu de mim. Algumas delas eram até moças bonitas.
            Nas lembranças de minhas aventuras e desventuras amorosas há um episódio que me marcou por toda a vida. Não era sócio de clubes e, por isso, só de quando em quando, com a ajuda de outros amigos, conseguia frequentá-los. Foi assim numa noite de uma “soirée” num clube local, levado por um velho amigo, que conversou o porteiro e ambos conseguimos ingresso.
            Meu amigo era mais voltado ao bar, onde rapidamente se embebedava com a ingestão de cuba-libres, do que propriamente a dançar. Eu também não era ainda perito em dança. Estava dando meus primeiros passos muito a medo. Encostado à parede, ficava observando os pares saindo ao salão. Meu medo era invencível de não saber dançar, de não encontrar uma parceira com paciência de me ensinar os passos.
            Quando todos haviam saído para o espaço de dança, quando só uma moçoila sobrava a uma mesa, triste, como se sofresse o problema de não Ter recebido um convite para dançar, disse de mim para mim:
- Eis aí uma oportunidade que não devo perder.
Tratava-se de uma menina feinha, baixinha, magrela, metida num vestidinho azul. Morena, de cabelos encaracolados. Havia a dificuldade de sua mesa se localizar do outro lado do salão. Teria que atravessá-lo de lado a lado, à vista de todos, para propor-lhe a dança. E isso eqüivaleria, para mim, uma espécie de travessia do “Rubicão”.
Mas enchi-me de ânimo e dei a partida. Naquele momento em que me encorajava a essa suprema aventura, me sentia o alvo de todos. Já meio caminho, senti um calafrio dominar-me dos pés à cabeça.
- Agora não há como voltar.
Segui impávido, desse no que desse.
Quando me aproximava das cercanias onde a moça estava instalada, olhou-me com um olhar frio, como se dissesse consigo mesma:
- Lá vem um chato.
Percebi seu olhar gélido e tive ímpetos de mudar de direção, simulando que ia a outro qualquer lugar e não a sua mesa.
Mas alguma coisa, mais forte do que eu, fez-me prosseguir e avançar. Não estava só; havia mais outra moçoila à mesa, mais magra e mais feia do que ela.
Quando parti para tirá-la, considerei a circunstância de que só ela não merecera de ninguém o convite para dançar. Deduzi que, por isso mesmo, meu empreendimento estaria a salvo de qualquer fracasso. Se ninguém saíra para dançar com ela era sinal evidente de que não era tão requisitada, que era, na minha visão, um refugo. E, como tal, era bem o que para um dançarino neófito servia.
Já diante dela, arrostando a sua fisionomia onde se desenhava uma expressão pouco simpática e acolhedora, disse:
- Vamos dançar?
A princípio, ela me olhou bem nos olhos como se me analisasse a alma, como se primeiro julgasse se eu a merecia. A seguir, notei que ela olhou para a companheira de mesa e deu um risinho mofento.
Enquanto isso acontecia, eu ficara feito uma esfinge silenciosa diante dela.
Fez uma cara de poucos amigos, franziu a boca num muxoxo e proferiu a sentença acachapante:
- Não, não posso.
Fiquei paralisado, sem saber que rumo tomar, se voltava sobre meus próprios pés, se permanecia feito idiota diante dela ou se seguia outro qualquer caminho. Fiquei assim indeciso por alguns momentos. Atrás de mim, ouvi espoucarem risos.
Como não havia outro jeito e desde que senti que já podia despregar os pés do chão, com força suficiente para me mover, enfiei em direção à porta de saída do clube, desci três ou quatro lances de escada com a celeridade de um raio e, quando me vi lá fora, por fim livre do vexame, tomei fôlego e saí feito louco pelas ruas.

Sunday, July 24, 2016

A ENTREVISTA DE KARL - Hamilton Alves


                                    Fernando Karl apresentou uma entrevista que é digna de figurar neste blog Lesma-Lerda, do Vinícius, (ia dizer que é digna de figurar nas grandes revistas e jornais, mas que diabo!, que diferença abismal existe entre um e outros?). A imprensa convencional tem suas regras. Lesma-Lerda (não sei se vocês já notaram) segue outro caminho, abrindo espaço para gente de talento, que, em geral, está fora de circuito ou das ditas regras.
                                   Karl entrevistou em 2002, como ele conta a escritora Hilda Hilst, detentora de vários prêmios literários. Mas danem-se os prêmios, que nem sempre contemplam os bons escritores. Não vou falar da qualidade da entrevista. Seria supérfluo dizer que se trata de uma entrevista dessas que se guarda num relicário para  a ler sempre, que levanta em cada um de nós, leitores, algo que jaz fenecido ou que nos faz de alguma forma estremecer ou deslumbrar pelas palavras que se captam aqui e ali, cheias de alguma coisa nova e luminosa, que uma mulher com sua experiência de vida (e a liberdade pessoal de viver) consegue nos tocar, como o fato, por exemplo, de ter procurado Marlon Brando em Paris para conhecê-lo. Bem, depois de “O último tango em Paris”, de Bertolucci, em que Brando excedeu-se na arte de representar, com uma espontaneidade incomparável, quem não desejaria encontrá-lo um dia ao acaso para lhe apertar a mão simplesmente ou lhe dar um abraço ou idiotamente ficar admirando-o a sua passagem, com aquele jeito meio moleque de andar?
                                   Talvez não tivesse sido a melhor resposta, mas registrei a seguinte a uma pergunta do Karl: “Há momentos que você viveu a perfeição, a beleza, e existe uma nostalgia dentro de cada um de nós, que seria Deus, o inominado. Penso que o homem tem a nostalgia da santidade, da perfeição, da luz”.
                                   Não digo que essas palavras soem novas aos meus ouvidos, pois esse tema tem sido objeto de minha busca no significado das coisas todas que nos cercam, numa flor, num por de sol, na sombra, numa folha, num pássaro, num peixe, enfim, em tudo que compõe a vida para apurar minha percepção do mundo, numa espécie de culto à noese.
                                   Agora mesmo, leio esse homem também perseguido por essa obsessão de procurar a beleza que se entranha em tudo, que é um reflexo de uma beleza original, a beleza suprema – Ernesto Sábato, com seu livro há pouco lançado  – “Resistência” – em que, em certos momentos, algo parecido com o que Hilst diz descobre-se em alguns trechos dessa pequena obra.
                                   Qual é a criatura despojada de ânimo e de sentimentos, como Hilst o revela que ouse dizer que, quando encontrou Brando, em Paris (recebeu-a muito bem, trocaram algumas poucas palavras), pretendia dormir com ele. Marlon (diz ela muito frustrada) teve outra opção, estranha para ela, mas afinal era uma opção e opções não se discutem, por mais absurdas que possam nos parecer.
                                   Como Fernando deixa perceber nessa entrevista, Hilst era uma mulher belíssima a esse tempo. Era mais uma no vasto acervo de Brando. E mais uma, menos uma pouca diferença fazem.
                                   Nunca a li, o que sem dúvida é uma perda para mim.
                                   Uma que outra vez me defronto com seu rosto envelhecidamente bonito, que revela uma vida interior intensa.
                                   Nas poucas coisas que diz nessa entrevista descobre-se com muita clareza o ser humano Hilda Hilst, que pauta sua vida por padrões e códigos que, no primeiro momento, surpreendem, mas que revelam sua distinção. 
                                   O que se sente é que procura acender uma luz para que sintamos “a nostalgia da santidade e da perfeição”.
                                                                      
   (maio/08)


Friday, July 22, 2016

DESCOBERTA DE UM POETA - Hamilton Alves


                                               A esse tempo, morava em Camboriú. Sempre fui frequentador de bancas de jornal (principalmente de bancas de jornal com livros). Em geral, visitava-as à noite. Saía para espairecer e meu destino, por invencível atração, eram esses locais.
                                               Lembro-me da ocasião em que me ardia o desejo de ler alguma coisa que me despertasse vivo interesse. Ou concentrasse minha atenção, Sentia-me exaurido pelos estudos específicos da profissão. Havia necessidade de alimentar o espírito com coisas abstratas, que não me exigissem aprofundamento maior. Que me permitissem, enfim, uma fuga de mim mesmo. Só a poesia poderia me proporcionar tal estado. O poema traz a chave da libertação. Dá asas à mente.
                                               Mas não tinha ilusões: a maioria das obras que via diariamente entulhadas às estantes era de conteúdo pouco atraente.
                                               Mas nessa noite minha busca foi mais bem sucedida. Mexi, remexi, vasculhei, procurei, devassei todos os escaninhos das numerosas estantes e, súbito, encontrara uma jóia, com o título de “Poemas”, de autoria de Wallace Stevens, sobre quem nunca ouvira sequer uma única referência.
                                               Dessa coleção havia já adquirido obras de outros poetas.       
                                               Embrulhado o livro, efetuado o pagamento, saí com ele sem ter a mínima idéia da qualidade da aquisição que fizera. Bastava-me saber que se tratava de um poeta, que iria conhecer e avaliar o conteúdo de seu trabalho. Mas me pesava a crença de que não me agradariam os poemas de Stevens. O nome (tudo às vezes é uma questão de nome) não me impressionara bem. Não era um nome que me convencesse de se tratar de um bom poeta.
                                               - Wallace pode ser nome de cientista, mas não de poeta. - dizia-me com meus botões.
                                               Não dei logo trato ao livro de Stevens.
                                               Joguei-o num canto com o jornal que comprara. E ali ficou até o dia seguinte. Para ser mais exato, ficou uma semana sem lhe botar a mão. Ou sequer abri-lo por curiosidade.
                                               No dia em que resolvi, por fim, tirá-lo do papel em que estava embrulhado, nessa operação que tanto me agrada, semelhante ao ato de se desvestir uma mulher, a primeira coisa seguinte que fiz foi ler o excelente prefácio do tradutor Paulo Henriques Britto, que bem mais tarde vim, a saber, que era também poeta.
                                               O prefácio de Britto é uma verdadeira aula de poesia.
                                               De certo modo, guia o leitor para conhecer o caminho que vai percorrer na leitura dos poemas de Stevens. É uma espécie de “overture”. Ou itinerário.
                                               Quase sem perceber (ou percebendo mal e mal) cheguei ao poema máximo de Stevens, que me inundou de beleza instantaneamente: “O homem do violão azul”, que passou, desde então, a ser uma espécie farol na neblina de meus dias insípidos e incolores, no modorrento exercício de ir de casa para o trabalho, do trabalho para casa.  Esse poema passou a atuar, em meu espírito, como uma bússola estética. Ou provocou-me uma revolução no âmbito de minha visão de beleza.
                                               Foi um renascimento.
                                               Comecei a mandá-lo a amigos e nem sempre recebi destes (só raríssimas vezes) a contrapartida da impressão fortíssima que me causara.
                                               Desde então, procurei me informar sobre o homem Wallace Stevens. Descobri, resumidamente, que era um simples diretor de banco, extremamente reservado, levando uma vida pacatíssima.
                                               Como convém a um grande poeta.
                                                                            

Thursday, July 21, 2016

A CRÔNICA, ESSE GÊNERO MALDITO - Hamilton Alves

                                   Há pouco, remetendo à crítica de um de nossos articulistas (não cronista) - no que há uma fundamental diferença - que dizia ser a crônica um gênero não literário e, no dizer, ainda, de outro cronista, que renegou a raça, Carlos Heitor Cony, datado, e que, por isso mesmo, não se presta mais a ser publicada em jornal que, em nosso tempo, só admite a informação e nada mais (como se enganou!), voltei à defesa desse gênero polêmico, que considero (não apenas eu) gênero literário por excelência.
                                   Quanto à pecha de ser datada (segundo Cony), lembro algumas crônicas (para citar apenas essas) que perduram e haverão de perdurar pelos tempos a fora. A primeira delas é a famosa de Rubem Braga, o sabiá da crônica, como era chamado, com o título “O conde e o passarinho”. Foi Joel Silveira que disse que, quando leu esse livro de Braga, desceu de sua cidade natal, em Aracaju (Sergipe), ao Rio, para conhecê-lo e não apenas para tal fim, mas compor com ele um grupo de jornalistas que, à época, produziram o que houve de melhor no jornalismo daqueles tempos (cite-se “O comício”, que era dirigido por Braga, Joel e um terceiro que não lembro). “O comício” era do mesmo teor revolucionário de jornalismo de “O Pasquim”, que apareceu no cenário da imprensa brasileira, como sabido, após a “redentora” (por volta de 1964).
                                   Editou-se um livro de crônicas do Braga há pouco, com o título “200 crônicas escolhidas”. Encadernei meu exemplar e lhe pus o título (bem mais condizente) de “O conde e o passarinho”. Essa crônica, quem a lê ainda agora, constata que nada perdeu de seu encanto com esse mais de meio século decorrido desde quando foi escrita.
                                   Citaria uma crônica de Paulo Mendes Campos sobre “Alice no país das maravilhas”, com que presenteou a filha no dia de seu aniversário, em que Paulo se propõe a lhe passar os grandes ensinamentos de Alice em alguns momentos culminantes dessa insuperável história de Lewis Carrol.
                                   “O homem nu”, de Fernando Sabino, é outro momento imortal da crônica, que igualmente desafia o passar dos anos.
                                   Drummond é autor também de algumas crônicas antológicas. Há uma que compôs para uma antologia, editada pela editora Sabiá, de que eram donos o  Braga e Sabino, que é dessas que postulam a perenidade - “Caso de canário”.
                                   Manuel Bandeira é outro que se situa, ao lado desses eminentes homens de letras, com uma sobre uma passagem de ano no bar da Brahma, que existia no extinto Hotel Avenida, no Rio, que não há nada de mais engraçado e perfeito.
                                   Entre nós, cito Silveira de Souza, Flávio Cardozo e Ilmar Carvalho, como sendo autores de crônicas que ganharam também foros de imortais pelo ineditismo ou pelo tema tratado: a do Silveira é um misto de crônica e conto, “Para a rodoviária”. A do Ilmar é igualmente digna de figurar entre as melhores escritas em todos os tempos, publicada numa antologia universal da crônica, “Da vantagem de ser jovem no Estreito”. Há pouca coisa, no gênero, que tenha sido concebida de forma tão leve, tão verdadeira, tão bonita. A do Flávio, que me deu de presente, com afetuosa dedicatória, traz o título “Bem aventurados os que andaram de trem”, que é dessas coisas de se colocar numa moldura e ler toda a manhã ao se iniciar uma nova jornada pela vida.
                                   Pode-se, diante de tais exemplos, inquinar-se de datado esse gênero insubstituível da literatura?



(agosto/08)

Tuesday, July 19, 2016

A CRÔNICA É... - Hamilton Alves


                                   Num fim de semana desses recebi a visita de um amigo. Também ele escritor. Também ele poeta.Também ele um aficionado da arte.
                                   A certa altura, disse-me:
                                   - Olha, cara, se não fossem a literatura e a música, o que restaria para mim neste mundo.
                                   Estive a pique de lhe dar uma resposta. Diria mais ou menos o seguinte:
                                   - O que seria de mim se dependesse da literatura e da música?
                                   Com essa antítese queria lhe explicar que o homem não deve depender de nada para garantir sua paz ou sua acomodação neste planeta.
                                   Mas não cheguei a externar tal pensamento.
                                   Deixei que viajasse na maionese, ou seja, que fizesse depender sua ligação com o mundo da literatura e da música.
                                   Logo depois, tentei expressar o que pensava de outro modo.
                                   - Para mim, a melhor música é o silêncio. Não há sinfonia que o supere.
                                   Ergueu-me os olhos grandes como os de um índio (no que me parecia que era um pouco) e revelou-se meio admirado do que acabara de dizer. Ou intimamente poderia não concordar comigo.
                                   Música, para ele, era música tal como tradicionalmente se concebe. Essa história de silêncio ser também música não batia muito bem com sua visão das coisas, certamente.
                                   Mantínhamos, em nossa conversa, canais abertos de comunicação, de modo tal a nos permitir conceitos de todo o tipo. Ou fórmulas das mais variadas a respeito de todas as coisas.
                                   Mesmo porque não há outra atitude mais correta a ser adotada com respeito a um visitante.
                                   Faz parte da cortesia que lhe é devida.
                                   Mas ele mostrava-se suficientemente apto em seus comentários para criar um conflito insanável de qualquer natureza.
                                   Até que chegou, em dado momento, num ponto crucial, quando quis definir o que era crônica.
                                   Lançou no ar a frase:
                                   “A crônica é...”, mas não a concluiu.
                                   Percebi que esbarrava na definição, que é, em si mesma, indefinível.
                                   Olhei um pássaro num galho de uma árvore, muito próximo de onde estava. E ao pássaro quase lancei a pergunta:
                                   - O que é a crônica?
                                   O pássaro o saberia?
                                   Poderia achar a definição na qual o meu amigo se mostrava  bloqueado?
                                   Mas o pássaro, nem bem ousara lhe propor tal indagação, voou para outras bandas.
                                   O meu amigo continuava a tartamudear, indeciso:
                                   - A crônica é...
                                   Quem é que, na verdade, saberá dizer o que a crônica é?                              

(set/08)
                                              

                                   

Monday, July 18, 2016

A COISA - Hamilton Alves

A COISA


A coisa se mexe
Tem cor
Tem forma
Tem expressão

A coisa vai
E vem como algo
Com vida própria
Distinta de tudo

A coisa não fala
Mas diz de si
Como objeto mudo
E silente

A coisa arde
Se metamorfoseia
Se abre
E se fecha

A coisa brilha
E escurece
O espírito da coisa
Permeia tudo


(poema de Hamilton Alves publicado sob o pseudônimo de Otto Nul em novembro de 2008). 

Friday, July 15, 2016

A BONECA - Hamilton Alves

                                   De meus contos há um que me agrada mais que todos por causa do personagem, que não é nomeado nem muito menos identificado pela outra, Clara, uma prostituta que, na noite do Natal ou véspera, ficara em casa sozinha. As demais colegas tinham ido para as suas cidades ou locais onde tinham família passar a data natalícia. Clara, sem ninguém no mundo que se lembrasse de ter alguma ligação, ainda que longínqua, com ela, teve por isso que amargar a solidão na noite natalina.
                                   Mas qual não foi sua surpresa quando, na noite anterior ao Natal,  um sujeito bate à porta, sob um aguaceiro muito forte.
                                   Abre-a. Nota que está todo encharcado.
                                   Entra.Vai desvestindo a capa gabardine, que coloca no encosto de uma poltrona, na mesma em que Clara estivera sentada. Inicia-se entre ambos um diálogo, que marca bem a condição de dois solitários, mais ou menos extraviados no mundo, sem nenhum ente a quem recorrer ou procurar contato para obtenção do mínimo de calor humano.
                                   Clara lhe pergunta, de saída, se quer beber alguma coisa quente.
                                   - Quente? – pergunta ele.
                                   - Sim, você está todo molhado, isso pode lhe causar um resfriado.
                                   - Tem uisque?
                                   - Tem.
                                   - Então sirva-me uma boa dose com duas pedrinhas de gelo.
                                   - Clara se afasta até a uma cômoda de onde traz um litro de uísque com um pequeno balde de gelo para que o homem se sirva à vontade.
                                   - Não tem ninguém em casa, só eu. - diz Clara.                      
                                   - Curioso (diz o homem) só nós dois numa noite dessas reunidos aqui. Onde foram as outras?
                                   - Foram passar o Natal com as famílias.
                                   - Por que não fez o mesmo?
                                   À pergunta reage com um muxoxo.
                                   - E você tem uma família?
                                   - Boa pergunta? E você?
                                   - Todos de alguma maneira temos uma família. Todos nascemos de uma mulher.
                                   - Sim, você tem razão.
                                   - Como descobriu esta casa? – quer saber Clara.
                                   - O gerente do hotel me disse que aqui poderia encontrar uma garota.
                                   - Ah, sim, compreendo.
                                   A seguir, o homem a convida para dançar. Mas Clara não sabe dançar. Convida-a para sair sob a noite tempestuosa. Alude ao fato de que, àquela hora, com a chuva, difícil encontrar algum lugar aberto.
                                   O homem já ingerira, segundo Clara o notara, quase meio litro de uísque. Por isso, revelava-se meio bêbado.
                                   - Que presente você gostaria de ganhar no dia de Natal? -pergunta-lhe mudando o tom da conversa.
                                   Clara lhe responde quase sem muito refletir:
                                   - Uma boneca?
                                   Aprontando-se para sair, colocando a gabardine, o homem diz-lhe:
                                   - Amanhã você estará aqui?
                                   - Sim.
                                   - Pois amanhã lhe trarei uma boneca de presente.
                                   No dia seguinte, Clara o espera longa e inutilmente. Pega o mesmo litro de uisque deixado pelo homem a meio e o ingere de um só gole. Adormece na poltrona. De manhã, acorda-se, estremunhando. Vai ferver água para o café. Liga o rádio. O noticiário informa que num hotel da cidade fora encontrado um homem morto, suspeitando-se que se suicidara.

(agosto/08)

                                               

Thursday, July 14, 2016

A BELA EXPOSIÇÃO DE TÉRCIO DA GAMA - Hamilton Alves

voltando a expor uma série de quadros de sua última produção, o maior “fauvista” catarinense revela um momento apoteótico de sua arte. 

   


        Antes que os trinta (serão trinta ou mais?) quadros que estão sendo apresentados ao público no saguão do Banco do Desenvolvimento do Extremo Sul aparecessem, Tércio me convidou para vê-los numa preliminar, em sua casa, no Caminho dos Açores. Alguns ainda estavam em fase de acabamento. Um deles quis adquirir mas disse que não podia vendê-lo, primeiro porque o lançaria nessa exposição e, segundo, porque não se encontrava ainda concluso.
Foi então que, admirado, lhe indaguei:
- O que falta para concluí-lo?
- Alguns detalhes. – disse-me ele.
- Esse quadro está pronto, não precisa que se acrescente mais nada nele. Se você fizer isso acabará por estragá-lo.
Mas Tércio riu e o fato é que, voltando a ver o quadro na exposição agora, notei que, em grande parte, tinha razão. Não há dúvida que o melhorou bastante.
Tércio sempre seguiu uma linha “fauve” (fera em francês). Mas por que “fera”? Porque os “fauvistas” são exuberantes nas cores. Tércio é o maior colorista dentre todos os pintores catarinenses. Quem o afirma não sou apenas eu. Harry Laus, que foi um dos mais catagorizados críticos de arte na imprensa brasileira (militou por vários anos nos jornais do Rio, mantendo uma coluna apreciadíssima no extinto “Correio da Manhã”), dizia-o muitas vezes.
A pintura de Tércio é característica. Ninguém pinta igual a ele, ou seja, no seu estilo pessoalíssimo. Tem uma marca própria. Ou seria o mesmo que dizer: tem uma luz só dele.
O que surpreende nos quadros que ora expõe são os detalhes “supérfluos” e que não prejudicam, antes tornam-nos mais originais ainda. Por exemplo: a fixação em reproduzir a imagem na maioria dos seus quadros da “Ponte Hercílio Luz”, que é a mais bela imagem da ilha. Em sua casa, no primeiro contato com esses mesmos quadros, lhe disse francamente:
- Tércio, tira a ponte. Para que essa ponte?
Aí me deu uma explicação em torno de incluir a ponte em suas telas. E agora, percebendo-a na mostra, dou-me por convencido que é um detalhe que se casa muito bem ao restante das imagens, configurando um cenário tipicamente ilhéu.
Cito o caso, por exemplo, de que nenhum pintor ousaria reproduzir um “surfista” num quadro. Seria de pronto taxado de superado, obsoleto, decadente, coisas desse tipo. Pois numa das telas das trinta expostas no BRDE há uma em que reproduziu essa imagem que muitos haverão de considerar imprópria. Mas até mesmo “o surfista”, na atitude característica de surfar uma onda, não prejudicou essa tela; pelo contrário, para repetir um lugar comum, inseriu-se bem no contexto.
Venho acompanhando há anos a atividade artística de Tércio.
Dir-se-á que se repete ou que não evoluiu ou que pinta sempre o mesmo quadro.
Digamos que essa crítica possa Ter alguma procedência. Mas no caso específico de Tércio, a repetição só prova que não abandona sua linha tradicional, do mesmo modo como os grandes nomes da pintura brasileira o faziam: Guignard, Pancetti, Volpi, Di Cavalcanti, Tarsila, etc. Quem olhar para uma tela de um desses pintores será levado a dizer a mesma coisa. Contudo, em cada quadro, vê-se o mesmo quadro, sem dúvida, mas outro. Ou seja, uma nova concepção do mesmo trabalho precedente.
Como ocorreu com um artista da marca de Aldemir Martins. Certa vez, em São Paulo, quando entrei numa sapataria na Barão de Itapetininga, vi numa vitrine um quadro de Aldemir. Tratava-se de um “croquis” figurando uma sapataria, mostrando o sapateiro com um martelinho batendo no salto de um sapato, com outros detalhes.
De pronto, identifiquei-o.
Trazia, infelizmente, uma parte coberta, (mas transparente) com um pano. E, no rodapé da tela, lia-se a assinatura do pintor.
Há outros detalhes envolvendo esse episódio mas não é hora de narrá-los. Atenho-me ao fato de, com Tércio, a mesma coisa ocorre: para reconhecer-lhe a autoria de um quadro é simples. É a tal luz própria a que me referi.
Comparecendo a sua “vernissage”, disse-me que tem um convite para levar essa exposição a “Manhattan”, em Nova York. Acredito que é hora de os pintores cantarem noutra freguesia. Em geral, as pessoas aqui não têm cacife para bancar a aquisição de uma obra de arte. Os americanos são apaixonados por arte. E, além disso, têm dinheiro. Em geral, o investem na aquisição de quadros. Basquiat, um pintor modesto, fez furor nos EUA. Basquiat, quando estava no auge, com o nome projetado internacionalmente, vendendo bem, morreu de overdose de cocaína. A pintura dele não tem condições de se comparar à do Tércio. Por que Tércio não poderá ser igualmente bem sucedido nos “states”?
Comentei para amigos, sobre a prometida exposição do Tércio em “Manhattan” (desses quadros que ora exibe no BRDE), que voltará de lá, provavelmente, forrado de dólares e sem um único quadro desse acervo de trinta. Tivesse mais trinta desse nível, vende-los-ía todos.
A pintura, de todas as atividades artísticas, entre nós, sempre se alçou a um nível de grande importância. Temos pintores do nível de Vitor Meirelles, consagrado mundialmente, de Martinho de Haro, de Hassis, de Eduardo Dias, de Hely Heil, cujas obras já há muito romperam nossas fronteiras.
Temos ainda Rodrigo de Haro, seguindo também uma linha muito própria, Vera Sabino, Semy Braga, Juarez Machado, Pléticos, muito bons, Vecchietti, outro artista plástico de extraordinário talento, Janga, Mayer Filho, com seus galos exuberantes, Jair Platt, grande nome, e outros.
A pintura, portanto, tem esses grandes cultores.
A literatura catarinense, sem dúvida, disputa um grande páreo com a pintura. Difícil, neste momento de nosso desenvolvimento cultural, dizer qual das duas desponta à frente.
Precisamos comemorar (ou bememorar), Tércio, a tua belíssima mostra.


Tuesday, July 12, 2016

A BARATA - Hamilton Alves

           Da última vez que estive em Curitiba, fiquei hospedado num hotel barato, próximo da rodoviária, tornando-se fácil me mover no dia seguinte para pegar o ônibus de volta. Embora o protesto de familiares, alegando que poderia ficar num hotel melhor, com mais conforto, fiquei naquele mesmo. 
           Os familiares voltaram de carro enquanto retornaria de ônibus. 
           Já não me lembro porque isso aconteceu assim.
Para ter com que passar o tempo (me instalei no hotel bem cedo, em torno de umas nove horas, consultei se passava algum filme interessante nos cinemas próximos, mas nenhuma referência houve nesse sentido, em razão de que achei preferível me recolher à cama), dei início à leitura de jornais e revistas.
            Mas bem depressa me dei conta que nada do que continham os jornais e revistas me interessava, razão pela qual fiquei olhando o quartinho exíguo que me fora destinado a passar aquela noite. Ruminava alguns pensamentos que não me levavam à concentração em nenhum deles. Apenas me lembrava o motivo porque ficara retido em Curitiba. Por que não o resolvera naquele mesmo dia depois da chegada? 
            Antes de entrar no quarto, vi uma faxineira arrecadando umas roupas. Um gato preto veio se enroscar as minhas pernas quando enfiava a chave na fechadura da porta para abri-la.
            - Um gato preto pode ser mau agouro! – disse com os meus botões.
            Mas não me liguei mais no gato quando comecei a ler os jornais.
            Quando me pus a olhar o vazio, a reparar no encardido das paredes do quarto, no guarda-roupa velho, com dois ou três cabides, cheirando a mofo, uma barata surgiu debaixo da porta e correu o espaço do quarto em diagonal.
            Logo imaginei que teria de liquidá-la para minha tranqüilidade, caso contrário podia fazer suas peraltices, a ponto de percorrer meu rosto enquanto estivesse dormindo.
            Seguiu até a porta do banheiro. E ali hesitou, como se não soubesse mais que destino tomar.
            - Antes que ela entre no banheiro, mato-a. – pensei.
Fiquei curioso de saber quais eram seus planos e a acompanhei em sua trajetória.
            Enfiou-se por baixo da porta do banheiro.
            Resolvi apagar a luz e dar o caso por encerrado. Mas ficou-me a preocupação de a barata me molestar.
            Abri a porta do banheiro. Vi-a trepada à parede.
            - É agora ou nunca. - disse-me.
            Peguei a toalha e lhe dei uma pancada, mas rapidamente escapou ao ataque. Travamos uma luta, eu a persegui-la, ela a escapar-se.
            Até que sumiu numa fresta, sob o bacio, no que me dei por vencido.
            Mas essa história não termina aqui.
            Tive um pesadelo terrível. Uma barata enorme, tomando a forma humana, seguiu-me por uma rua deserta e escura, com uma foice, disposta a tudo. Corri feito um louco por várias quadras, tentando escapar a essa atroz perseguição. Entrei num pardieiro velho, desabitado, crente que tinha lhe escapado. Subi várias escadas. No fim, quando alcançava o topo do prédio, eis que me deparo com ela, olhando-me com olhos  em brasa, fumegantes.  
            - Agora não tenho mais saída. – pensei.
            Foi só então que, banhado em suor, despertei. Abri a janela, olhei lá fora. Um cão solitário percorria a rua.                                    

                                                                        

Monday, July 11, 2016

A ASTRÓLOGA - Hamilton Alves

                                   Num jornal em que trabalhei há muitos anos, o “Diário da Manhã,” dirigido pelo meu querido e saudoso amigo escritor Zedar Perfeito da Silva, havia uma seção de astrologia. Conheci a astróloga, que era uma pessoa amável, que só fazia aquela coluninha prevendo o destino zodiacal das pessoas e nada mais.
                                   Num de nossos papos diários, pois frequentava a redação a horas regulares para entregar sua matéria, púnhamo-nos a conversar sobre os mais diferentes assuntos.
                                   Foi exatamente numa dessas ocasiões que sugeriu que grafasse meu nome “Hamilton” sem o “H”.
                                   Claro que não adotei a sugestão, embora também me parecesse que grafar meu nome sem “H” o tornaria mais simples ou menos sofisticado ou menos parecido com nome de americano ou com a pronúncia em inglês que a grafia sugere.
                                   De vez em quando, tenho a tentação de aderir à mudança por ela proposta faz tantos anos. Não acho simpático grafar meu nome com “H”. Parece meio pedante. Mas não tenho, obviamente, nenhuma culpa por isso.
                                   Minha mãe, certa vez, falando sobre a escolha de meu nome, me contou a história, que, por ser muito íntima e pertencer ao acervo de dados secretos da família, não revelarei. Pode ser coisa banal (de fato o é), mas há coisas sobre as quais se deve guardar o devido sigilo e não se expor assim publicamente.
                                   Venho agüentando esse nome (agüentando é modo de dizer). Não tenho nada contra meu nom. Há até quem o considere bonito. Conheço vários xarás que o grafam como eu o faço. E nem por isso vivem às turras com seu nome. Até pelo contrário. Honram-se muito de usá-lo. Embora concordem que a eliminação do “H” poderia trazê-lo para mais próximo de nosso espírito de brasilidade. E menos americanidade.
                                   Nada disse à astróloga quando me recomendou a supressão do “H”. De mim para comigo disse que levaria por diante meu “H” ainda que, como ela previsse, isso poderia me levar a não ter boa sorte na vida.
                                   - Com “Amilton”, sem o “H”, você irá de vento em popa na vida.
                                   Não levei tal prognóstico, claro, minimamente a sério.
                                   Estava disposto a arrostar todas as dificuldades e adversidades com o meu “H” de batismo.
                                   Não é o nome que faz a pessoa (pensei sempre), mas o contrário.
                                   Veja-se, por exemplo, um nome como “Juscelino”. Quem poderia crer que o detentor de um nome desses se tornaria o maior Presidente que nosso país já teve?
                                   Vou abrir levemente a cortina em torno de minha privacidade: quando vejo meu nome nos jornais ou impresso (confesso-o) desagrada-me o “H”.
                                   Por que então conservá-lo?
                                   Por que não acolher o conselho da astróloga?
                                   Não o faço por uma única razão: não posso alterá-lo juridicamente. Não há fundamento legal para fazê-lo. Caso contrário, poderia até tentá-lo.
                                   Mas a essa altura da vida tenho que conviver com o “H”, para o bem ou para o mal.
                                  

.(abosto/08)



Sunday, July 10, 2016

A ARTE DE MAYER FILHO - Hamilton Alves

                                    Na galeria Fretta, de minha prezada amiga dona Helena Fretta, descobri três quadros de Mayer Filho, homem de percepção rara da beleza e sem  dúvida alguma um dos nossos melhores pintores. Em vida, Mayer nunca foi um artista muito considerado, como ocorre em geral. Quando viva, a pessoa priva conosco no dia a dia e, por maior gênio que tenha, nunca lhe damos a devida dimensão ou a importância que tem.
                                   Mayer Filho era um cabotino assumido. Comprazia-se em auto-elogiar-se. É indiscutível o fato de que Aldemir foi também um grande artista. Tive chance há pouco (não consumada) de comprar um gato pintado por ele por preço módico que era uma beleza. Mas Mayer não lhe deve nada. Os dois se equivalem ou têm a mesma grandeza. Pode ser que, em matéria de “galo”, no que Mayer se especializou, ninguém lhe leva a palma. É o maior “galista” brasileiro, se é que posso idenficá-lo assim.
                                   Certa vez, numa sapataria de São Paulo, vi um painel de Aldemir retratando um sapateiro batendo a sola de um sapato num formão. Uma parte do painel  estava coberta por um pano branco. Adivinhei logo que o autor do painel era Aldemir. Sua marca registrada estava muito visível.
                                   Curioso de saber o motivo porque se cobria uma boa parte do quadro, chamei o gerente.
                                   - Por que cobriram parcialmente a tela?
                                   - Não sei explicar, senhor. Talvez meu colega saiba.
                                   Chamou o colega, que também não me deu maiores explicações.
                                   - Sabem quem é o autor desse quadro?
                                   - Não. – responderam um e outro.
                                   - É de Aldemir Martins, um dos pintores mais conceituados do país.
                                   Calculo que o preço da tela, pelo nome que Aldemir já tinha feito, com prêmios em bienais na Europa, devia ser considerável.
                                   Notei que ambos ficaram pasmos quando me referi ao prestígio de Aldemir. Ocorreu-me de ir a São Paulo, pelo mesmo motivo, pouco tempo depois. Passei na tal sapataria de novo. E agora vi a tela de Aldemir exposta por inteiro. De alguma forma a minha crítica ou minha referência à importância de Aldemir valera de alguma coisa.
                                   Mas estou me referindo especificamente a Mayer Filho. Aldemir só entrou secundariamente nesta conversa.
                                   Lembro-me que Mayer, por volta da década de 50, lançou uma exposição no saguão de um prédio central. Escandalizou todo o mundo porque seguia uma linha rigorosamente surrealista. Ninguém, à época, sabia nada de surrealismo.
                                   Agora, vejo três obras suas, a preço ainda barato, na galeria Fretta.
                                   Em outra praça, esses quadros teriam já sido adquiridos.
                                   Não vou revelar qual deles me atrai mais.
                                   Prometi à da. Helena que assim que minhas finanças melhorarem um pouquinho vou lá pegar o quadro de Mayer que reservou para mim. Trata-se de uma das melhores coisas que produziu. Registro, ainda, que na galeria do d,Acampora, morto há pouco, deixei de adquirir uma tela dele de 1 m por 80 cm que talvez tivesse sido o melhor quadro que já pintou: dois galos brigando, de pé, com o sol de fundo. Andei à cata desse quadro. Mas tudo que soube, pelo filho de Mayer, meu amigo também, é que a família o recolheu (em boa hora) ao acervo do artista.
                                   Mayer, como disse, era cabotino, mas desses cabotinos que se aceitam com simpatia.


(abril/08)

Saturday, July 9, 2016

A ALMA DE ODETTE - Hamilton Alves

                                    Há uma frase de Edmund White, que escreveu uma pequena biografia de Proust, que diz o seguinte: “O amor de Swann por Odette não era um tributo à alma dela; a alma dela era banal”.
                                   Acho que Proust não endossaria essa frase.
                                   À margem desse pensamento, anotei: “a grande paixão é uma doença, ignora tudo, passa por cima de tudo. Dane-se a alma; que seja banal pouco importa”.
                                   Quando uma pessoa ama ou se apaixona, não há outra consideração a fazer ou outra qualquer coisa a ser levada em linha de conta                         que não seja exclusivamente o objeto dessa paixão (ou a pessoa envolvida).
                                   Psicólogos já o afirmaram, com muita razão, que a paixão é uma espécie de patologia da alma, que cega, a tal ponto que tudo é deixado de lado, seja o que for, para dar lugar unicamente a esse sentimento avassalador.
                                   O caso de Swann em relação a Odette de Crécy não é único nem mesmo em termos literários. A paixão mais obsessiva de um homem por uma mulher foi de Phillip por Mildred na magnífica novela “Servidão Humana”, de Sommerset Maughan, em que um homem altamente qualificado, estudante de medicina, amante das artes, de uma alta linhagem, empolga-se por uma balconista de um “pub” londrino. No primeiro encontro que teve com ela, admirou-se que um amigo, que o levara a esse “pub”, tivesse enamorado dela. Ou revelasse simpatia por ela. Achou-a sem encanto algum que justificasse o interesse do amigo por ela. Pouco tempo depois, cai no mesmo alçapão, atraído não por Mildred, mas pelo local, que lhe pareceu aprazível. Nessa ocasião é ela que lhe vem atender. A partir de então se estabelece uma relação com Mildred da qual Phillip consegue se desvencilhar, mas a que preço!
                                   Os atos de baixeza moral que Phillip incorre nessa relação são incompatíveis com qualquer criatura que tenha o mínimo senso de dignidade. Ou de amor próprio. Mas se submete a todas as exigências, a todas as provas de vilania de Mildred. Sentia que, sem ela, não era capaz de continuar a existir. Chegou a ponto de querer se suicidar, como forma de escapar aos seus tormentos.
                                   Submeteu-se até ao patrocínio de uma viagem que faria com outro amante, sabendo que não sentia nada por ele. Esse amante (ou presumido tal) vinha a ser amigo de Phillip. Fora por intermédio deste que veio a ter contato com Mildred.
                                   Quem é que vai cogitar se Mildred ou Odette eram portadoras de almas banais?
                                   Que fossem banais. E daí?
                                   Até o detalhe de uma mulher ser possuidora de uma alma banal piora o quadro do homem que se apaixonou por ela. A paixão torna-se, parece, ainda mais incontrolável.
                                   Ao apaixonado o aspecto da banalidade de uma mulher lhe é tão indiferente quanto sua própria sombra.
                                   Odette de Crécy e Mildred retratam bem até onde uma mulher pode levar um homem à loucura.

(maio/08)