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Wednesday, August 31, 2016

AS COISAS - Hamilton Alves



cada coisa tem seu particular
mistério de ser,
há coisas animadas
e inanimadas
mas nem por isso deixam
de ter relação entre si
ligadas pelo mesmo
fenômeno de se constituírem coisas;
cada coisa tem sua peculiaridade,
seu tamanho, sua cor, sua forma,
seu jeito próprio;
cada coisa guarda em si
uma destinação específica,
exige de quem a olha
uma atenção ou
uma compreensão;
uma cadeira, por exemplo,
é um tipo de coisa
mas assume aos nossos olhos
variada forma,
não, porém, com o fim específico
conhecido mas também
com o de se oferecer
a nossa contemplação
gozosa pois  tem
mais do que o sentido
puramente prático de acolher um corpo,
alcança também a sensibilidade
por seu desenho concebido
dentro de uma idéia estética,
o que não difere se se tratasse
de uma simples folha de árvore;
o universo está cheio de coisas
e cada coisa é um universo.


(poema de Hamilton Alves escrito em dezembro de 2006 sob o pseudônimo de Otto Nul).


Tuesday, August 30, 2016

EM “A UMA SOMBRA” JAYRO SCHMIDT FAZ LUZ SOBRE VÁRIOS TEMAS - Editado em 1998, o livro do escritor e professor de arte marca um momento importante na ensaística deste Estado - por Hamilton Alves

 

            Dentre os devotos da arte (ou aqueles que têm se dedicado à atividade cultural) não se pode deixar de mencionar o nome do professor Jayro Schmidt, que, com seu livro “A uma sombra” (Bernúncia Editora, 208 págs.), contendo pequenas resenhas publicadas no “Anexo”, encarte do jornal “A notícia”, entre 95 e 98, deu uma contribuição bastante significativa à ensaística neste Estado, enfocando vários temas, alguns deles pouco ou raramente abordados.
            Logo após o lançamento desse livro, lendo-o atentamente, pude perceber que Jayro tocava em alguns problemas capitais, que, alguns de nós, ainda que por eles mostrássemos interesse, nunca avançáramos, porém, uma percepção mais ampla e percuciente como ele o fez, na esteira do entendimento revelado por autores e até filósofos de renome internacional.
            Não é apenas o tratamento dado aos temas, isto é, sua abordagem direta ou no plano do intelecto, mas principalmente a linguagem colocada a serviço de tal abordagem me pareceu de uma propriedade ou de uma qualidade que pouquíssimos outros escritores, mesmo a nível nacional, alcançaram. Estarei dizendo, por acaso, algum disparate? Convido o leitor a tirar, por si mesmo, a prova dos nove lendo-o.
            O que mais espanta e admira é que o autor nunca passou pelos bancos de uma escola universitária, sendo um autodidata puro, que, em um dos seus trabalhos (fora do livro) declarou, certa vez, que, para aprender, teve que se afastar da escola, querendo dizer, com isso, numa crítica velada ao ensino que se adota nas universidades, que o sistema de educar, nas academias, chegou a um ponto tal de deterioração, que não sugere nem incita, a quem quer aprofundar-se na ciência ou em qualquer ramo da ciência, o desejo de freqüentar  o mofento currículo de uma escola dessas.
            A bem de tal posição (ou colocação) é bom lembrar que o maior escritor deste país continua sendo um autodidata, Machado de Assis.
            Não vai nisso nenhum desejo de defender a opinião de que o autodidatismo é o único caminho a ser trilhado para quem deseja adquirir conhecimentos em qualquer área científica. Mas para uma espécie de talentos (que é o caso típico de Jayro), a escola regular ou a freqüência a um curso regular parece ser, a princípio, um entrave ao aprofundamento de conhecimentos.
            Mas à parte tais questões, absolutamente irrelevantes para o que, a seguir, se vai tratar, a obra de Jayro, antes de tudo, ou antes de ser o que já foi dito, ou seja, a abordagem de temas referentes às artes e até, muitos deles, de caráter puramente filosófico, prima, a meu ver, por ser um manancial precioso de informações desses mesmos temas, de cujas páginas o leitor sai mais enriquecido.
            Tive ocasião de dizer isso ao Jayro num encontro casual que tivemos, pegando-o, pelo que senti, um pouco de surpresa, pois acredito que ele próprio talvez não reconhecesse que seu livro pudesse ter ou conter assuntos ou o tratamento de questões tão importantes. Ou colocações às vezes desconcertantes pelas quais outros passaram de uma forma mais ou menos superficial e nem sempre com a necessária precisão.
            Seria difícil senão quase impossível fazer um relato completo e detalhado de todos os bons momentos desse livro. Se o fizéssemos, certamente não o lograríamos com êxito no modesto espaço de uma resenha. Ou desta, especificamente.
            Para esta breve análise da obra, valho-me de um outro exemplar, não do meu, que me foi dedicado pelo escritor, onde pacientemente anotei tudo o que me interessava. Daí que, agora, essa pesquisa do que para mim se destacou, entre tudo, torna-se mais trabalhosa.
            Mas mesmo assim, com essa dificuldade considerável, vou tentar fazer uma amostragem de alguns enfoques nela contidos.
            Quem se propor a percorrer as páginas de “A uma sombra” carece de fazê-lo munido de alguma erudição para bem assimilar colocações rarefeitas, como é, por exemplo, o caso de uma das referências iniciais, envolvendo o exame do Cânone Ocidental, de Harold Bloom, em que Shakespeare e Dante são colocados no centro desse Cânone, além do conflito do ser e consciência de Kafka. Referindo-se a este, diz: “A seus personagens estão reservados o não lugar, o nada. Não se sabe o que são e o que representam” (pág. 15).
            Detém-se em Vechietti, nosso grande artista plástico, diria um dos mais importantes tapeceiros, tão bom quanto o famoso Luçart, cultuado por muitos colecionadores, um dos quais foi o ex-ministro das Relações Exteriores Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Referindo-se ao artista, Jayro considera a posição ímpar que manteve a vida toda em relação as suas opiniões estéticas. Ou a uma espécie de independência intelectual solitária, muito precoce para a época em que viveu. Ou em que apareceu como artista plástico.
            Uma das poucas abordagens ao filme “Limite”, de Mário Peixoto, descobri ou vim a ler nesse livro, a partir da qual fiz todas as tentativas de vê-lo até agora inúteis. Um filme que, como anota Jayro, foi visto e muito apreciado por ninguém menos que Orson Welles, Eisenstein e Pudovkine. “Limite – diz Jayro – foi taxado como arte pura, inacessível ao grande público. Para entendê-lo, na opinião de Octávio de Faria, é preciso um certo hábito de ver cinema, como arte, - o cinema autêntico, que vem sendo perdido com o vozerio e o catastrofismo do cinema falado. A percepção da singularidade estética das coisas faz de “Limite” uma realização isolada”.
            Não calculo, ao repassar novamente os artigos/ensaios desse livro, o que se pode ainda colher que não provoque de imediato uma espécie de visão renovadora, que nos desperta para o sentimento de que uma coisa vista ou percebida pode ser revista de um ângulo mais profundo. A cada passo, é esse sentimento que vai se apossando do leitor, que tem muitas vezes de exigir muito de si para acompanhar a altura rarefeita a que o autor nos arrasta.
            Jayro Schmidt desenvolve uma abordagem intelectual múltipla, tanto é que seu livro vai desde a crítica (ou seria melhor dizer comentário) a pintores, campo em que é um especialista como professor de arte do CIC (Centro Integrado de Cultura), até o exame de questões que dizem respeito à filosofia e às letras, de passagem pelo cinema, uma espécie assim de enciclopedista da cultura.
            Há uns poucos anos, mantivemos uma polêmica epistolar sobre a obra de Picasso “As senhoritas d’Avignon”, que pretendemos oportunamente editar com cerca de trinta cartas de cada qual. Seguramente suas opiniões, como pude constatá-lo, são muito técnicas e especializadas. Medir forças com ele, em qualquer área das artes em geral, é uma parada difícil. Mantém invariavelmente um entendimento muito particular e avançado.
            Alongar-me em considerações sobre seu livro, como disse, não é tarefa para uma mera resenha de jornal, e, sim, para uma análise mais metódica e que incorpore todos os aspectos que ali vêm muito bem considerados.
            Mas há uma pequena colocação de Jayro quando ele diz que Cèzanne é o pintor básico, querendo dizer que teria sido uma espécie de precursor da arte moderna que se seguiu após ele, o cubismo, notoriamente. Até hoje (posso estar redondamente enganado), não consegui gostar da pintura de Cèzanne. Não estou solitário nessa opinião. O escritor francês Émile Zola não a apreciava também. Ambos amigos e originários da mesma cidade, Aix –au-Provence.
            Jayro diz precisamente que “Cèzanne foi a base irradiadora” (pág. 23).
            Suponho que deve ter fortíssimos argumentos para ter Cèzanne em tal conta. Seu livro do começo ao fim é um convite a um banquete cultural imperdível, envolvendo esse e mais outros assuntos fascinantes.
           
           
           

            

Monday, August 29, 2016

ARANHA - Hamilton Alves



no fio de seda
que longamente tecera
ao centro da teia
lá estava ela

era dominante
dentro daquela
estruturada armação
inexpugnável

contra ela nada podiam
os elementos:
o vento ou a chuva
tão bem defendida

num salto mortal
passou-se a outro fio
quando em perigo
de soçobrar

primeira arquiteta
do universo
deve-se-lhe a maestria
do alto engenho.


(poema de Hamilton Alves escrito em dezembro de 2006 sob o pseudônimo de Otto Nul).






Friday, August 26, 2016

ALTERNATIVAS - Hamilton Alves



Entre o dia e a noite
Amanhece minha alma;

Entre a rua e a esquina
Se perde minha calma;

Entre o antes e o depois
Trilho um caminho perdido;

Entre o sim e o não,
Ah, mundo bandido!

Entre a paixão e a dor
Estiola-se uma flor;

Entre a lágrima e o riso
Desponta o paraíso;

Entre a vida e a morte
Há um duelo de fortes;

Entre ti e mim
Põe-se um fim.


(poema de Hamilton Alves escrito em outubro de 2008 sob o pseudônimo de Otto Nul).





Wednesday, August 24, 2016

ALGO NOVO NO AR - Hamilton Alves



caminho à rua
entro no bar

compro um jornal
troco palavras com o jornaleiro

nada mudou particularmente
na paisagem ou nas pessoas

mas há algo que sinto
diferente e único

é como se o novo  
se revelasse em tudo

que não tem precedente
ou que nunca se produziu

que fala em outra dimensão
com se viesse revestido          

de alguma coisa
que balouça no ar

e o de que se trata
não posso explicar.



(poema de Hamilton Alves escrito em outubro de 2006 sob o pseudônimo de Max Hohl).

Tuesday, August 23, 2016

AH, AS PALAVRAS! - Hamilton Alves



A luz das estrelas
Por mais que brilhe
Não me é estimulante

Um trecho de Bach
Vale por todo o panorama
Desta tarde estival

Não vejo que instrumento
Musical possa substituir
O canto do sabiá

O marulho do mar
Faz-me bem
Mas o vento não me alcança

Por canoa entendo
Um pedaço de pau lançado
Ao mar para uma aventura

Tenho que falar
Com um pouco de cuidado
Desta sexta-feira

Tudo resulta vão
Se não se descobre
O rumor da madrugada.


(poema de Hamilton Alves escrito em janeiro de 2007 sob o pseudônimo de Otto Nul).




F. Monteiro, escritor, poeta e crítico de arte de Recife, PE, disse desse poema o seguinte:
“este poema é o melhor que v. enviou desde a remessa de “nem dei pela noite” – o qual permanecia insuperado dentre os novos, e agora jaz empatado com esse surpreendente “ah, as palavras!”. a deusa da poesia - com a mão de sistros suaves – sem dúvida passou sobre a sua cabeça, Alves, nessa madrugada. E lhe inspirou um poema irretocável (parabéns!) constituído com música de surpresa, observação de comum transcendência das coisas. Os cortes internos que ele apresenta me agradam muito. Poesia - da melhor – costuma ser assim, modernamente, e não alguma coisa que se desdobra  como um lençol manchado diante dos olhos do leitor que aspirava ver alvuras brancusianas com não mais que alguns traços travertinos do mármore disfarçando falhas. Sinto falta (eu, pelo menos) dos “escapes” inesperados nos poemas que não abrem as portas do inesperado como que escondidos entre as dobras da palavra – que saltam para nos lançar no cosmos desconhecido. sem isso, para mim, a poesia é (apenas) prosa.”


Monday, August 22, 2016

O ABSOLUTO - Hamilton Alves



sobre a superfície do mar
flutua o absoluto

no canto do pássaro
distingue-se o absoluto

da pequena flor silvestre
colhe-se o absoluto

nas nuvens brancas
o absoluto canta

na luz do sol
o absoluto se mostra

na cintilação das estrelas
lá está o absoluto

os homens carregam
consigo o absoluto

A vida é um hino
de consagração ao absoluto

o absoluto permeia
o mundo

o absoluto é Deus
infinitamente.


(poema de Hamilton Alves escrito em outubro de 2006 sob o pseudônimo de Max Hohl).


Friday, August 19, 2016

AGARRO-ME À FLOR - Hamilton Alves


Agarro-me à flor,
A este pássaro,
A esta quimera,
A esta esquina,

A esta rua,
A este momento,
A esta palavra,
A este poema,

Alguma coisa de eterno
Ou permanente há
De me sustentar –
Ou me esborôo no ar.



(poema de Hamilton Alves escrito em outubro de 2008 sob o pseudônimo de Otto Nul). 

Wednesday, August 17, 2016

A VOZ DO VENTO - Hamilton Alves


Percebo claramente
A mudez das horas,

A agonia dos minutos
Enquanto vai e vem

Minh’alma batendo
No coração das coisas;

Secretos sentidos
Se espalham nas nuvens;

Que voz é essa
Que vem do vento?

Nada de concreto
Nem de abstrato

Quando nas trevas
Uma luz se acende

Sem promessas
Apenas esperanças;

Tudo isso chora
Nas brenhas da saudade.


(poema de Hamilton Alves escrito em fevereiro de 2007 sob o pseudônimo de Otto Nul).







Tuesday, August 16, 2016

VEM, NOITE - Hamilton Alves



Vem, noite,
Agora que o dia
Se finda.

E, com ele,
Findam-se
As canseiras.

Vem, noite,
Estende-nos
Teu manto.

Como um bálsamo,
Cobre-nos as feridas
Do dia que se foi.

Traze-nos a paz,
A alegria,
A esperança.

Vem, noite,
Doce amiga,
Dá-nos teu alento.

Deixa-nos deitar
Em teu manso
Regaço.

Vem, noite,
Infunde-nos
Tua beleza.


(poema de Hamilton Alves escrito em outubro de 2006 sob o pseudônimo de Max Hohl)





Monday, August 15, 2016

A TRAJETÓRIA DE UM ESCRITOR QUE NÃO CONHECEU AINDA A FAMA (com uma obra já considerável, o escritor Silveira de Souza continua sendo, mesmo em seu Estado, um ilustre desconhecido) - Hamilton Alves



                                                           Outro dia, Salim Miguel, trocando comigo opinião sobre literatura, muito de passagem, colocou a seguinte e enigmática questão:
                                                           - Não dá para entender o Silveira, não é?
                                                           Com essa pergunta pretendia insinuar
ser incompreensível que um contista do nível de Silveira de Souza continue ainda um ilustre desconhecido nas letras pátrias, sendo considerado dentre os melhores. Da altura, por exemplo, de Dalton Trevisan ou Sérgio Faraco ou Moacyr Scliar, para situar o problema ao sul do país. Ou ainda de Rubem Fonseca.
                                                           À colocação do Salim respondi com idêntica perplexidade, pois se tantos, de menor envergadura, alçaram-se no cenário nacional, conquistando as grandes editoras, por que não ele?
                                                           O caso é que Silveira de Souza, a depender dele, não dará um passo na sua promoção. Certa feita mencionei alguns de seus contos como sendo expoentes entre os demais escritores consagrados. Fechou-se como um caramujo.
                                                           Agora, vem de editar mais um livro, “Janela de Varrer”, (Editora Bernúncia, l50 pgs.), título de um dos cinqüenta contos desse livro e um dos melhores.
                                                           Ocorre com Silveira um fato pouco comum: alguns contos desse livro já os editou em outros. Dentre a meia centena há alguns poucos inéditos. Dito por ele mesmo, quando lhe falei há pouco sobre isso, “Stela” e “Caga Lume Cego” são dois deles.”Para a rodoviária”, que é um dos melhores contos que já produziu (o de minha preferência, já o li inúmeras vezes,  não vou parar nunca de lê-lo, tenho dele um recorte de  jornal onde foi publicado na gaveta da mesa de meu escritório), publicou em quase todos os livros editados, inclusive nesse último.
                                                           Vê-se por aí que não é muito prolífero. Outro dado a respeito de sua atividade literária é que leva tempo para concluir um trabalho, mesmo que seja uma crônica banal. Já pertencemos em priscas eras à mesma redação de um jornal local, em que ambos dividíamos o espaço da crônica. Certa tarde (ou manhã), na redação, encontrei o Silveira empacado no início de uma crônica ou no seu desenvolvimento, pedindo-me para socorrê-lo, o que aceitei, mas de minha vez também não consegui ir adiante. Demos a essa histórica crônica o título de “Inês e os pardais”, com cujo título pretendemos editar um livro de crônicas. Podia citar um outro conto que é igualmente impactante, ou tão bom quanto o precedente citado, para o meu gosto, curtíssimo, de uma página e meia, se tanto, com o título ”Fuga”.
                                                           Um único conto ou um único poema é suficiente para consagrar um escritor ou um poeta. Esses dois contos bastariam para colocá-lo no “podium”. O teor de ”Para a rodoviária” é de tal natureza que seria capaz de fazer sobre ele uma conferência, tão sortida e variada é a forma pela qual se compõe. Ou tão múltiplas são suas nuances. Ou os lances que se podem extrair dele. Além de seu conteúdo poético.
                                               Quando escrevi há tempos um artigo para a revista da Academia Catarinense de Letras sobre esses dois contos de Silveira, sob os auspícios de meu amigo Apóstolo Psíquica, pediu-me que escrevesse um outro trabalho alcançando mais profundamente sua obra. Não cabe, aqui, esmiuçar o conteúdo desses contos, por mais que valesse a pena, dada a beleza de que se revestem, mas em resumo, “Para a rodoviária” envolve o drama de dois amantes, que vêm de uma noitada de amor e que, por ninharia, se desentendem. Ele carrega a bagagem dela, que seguirá para Porto Alegre. Em dado momento, ele tem uma iluminação e percebe toda a artimanha ardilosa da mulher. Por isso, encosta-a à parede e a  beija.  Segue-se a reconciliação. Mesmo assim, ela embarca no ônibus. Orgulhoso, deixa-a ir, sem pretender alterar o rumo dos acontecimentos. Em seguida, sai a passos “pelas ruas desertas, com suas casas baixas, com seus bares conhecidos e árvores fiscalizadas, a testemunhar mais um dia na vida desses estranhos seres humanos”.
                                               Em “Fuga”, o personagem aluga um carrinho de cavalo, que estacionava na Praça XV, em velhos tempos. O boleeiro pergunta ao passageiro para onde quer ir. Responde:
                                               - Para qualquer lugar.
                                               A caleça segue pelas ruas estreitas da cidade.
                                               - Mais rápido – diz o passageiro – tão rápido que eu esqueça de mim mesmo.
                                               Numa área aberta, defrontando-se com o mar, o carrinho pára. O personagem, como tomado de um transe, salta e segue na direção do mar.                                                          São esses os dois grandes momentos de Silveira no conto, embora, claro, haja outros iguais. Cito, por exemplo, os seguintes: “He, he, he!”. “Canário de Assobio”, “Ilha das Vinhas”, ”Nuvens”, “Janela de Varrer”, que dá título ao último livro, já referido aqui, e outros.
                                               Houve um episódio curioso ocorrido há alguns anos com Silveira, quando ele, embora jovem, tinha já percorrido um bom caminho nas letras e  escrito alguns de seus melhores contos. Numa das vezes que foi ao Rio, envolvido sempre com os meios literários, encontrou-se com Jorge Amado, um escritor que apreciava e que, àquela altura, era detentor de fama nacional. A certa altura, dado o rumo que a conversa tomou, Silveira identificou-se. Foi quando, para sua surpresa, viu que Jorge tirou do bolso o recorte de um jornal com um conto de sua autoria (do Silveira) e lhe disse:
                                               - Colhi esse conto de um jornal, “O Charadista”, de sua autoria, não é? Gosto muito dele.
                                               Silveira, com isso, ficou paralisado. Não esperava que um escritor do prestígio de Jorge Amado tivesse revelado interesse por um de seus contos.                               
                                               Alguns de nossos escritores já alcançaram a façanha de ultrapassar fronteiras. É o caso de Salim Miguel, tendo sido duas ou três vezes editado por grandes editoras. Outro é Flávio Cardozo, que recentemente teve seu livro de contos, “Guatá”, publicado pela Record. E também há pouco teve um conto publicado numa antologia da Ediouro. Parece que são apenas esses dois que conseguiram esse feito. Desconheço que outros o tenham logrado.
                                               Silveira continua feito caramujo, encolhido em seu canto de Itaguaçu, “o melhor lugar do mundo para se morar”, como costuma dizer a amigos, confirmado por seu vizinho Hassis, que já nos deixou faz um tempo.
                                               A estranheza manifestada por Salim Miguel      quanto ao fato de Silveira não ter ainda alcançado audiência nacional é compartilhada por muitas outras pessoas, inclusive por gente do mesmo ofício.
                                               Se Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Faraco, Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar são, hoje, celebrados como nomes de realce do panorama literário brasileiro, porque negar-se a Silveira, igual a eles, o mesmo direito? Ou a mesma consideração?  Ou não será o caso de negar-se, mas de reconhecer-se, embora esse reconhecimento não seja traduzido na divulgação de sua obra ou de seu trabalho.
                                               Silveira não faz, ao que parece, o menor empenho em conquistar as grandes editoras. Se um dia lhe baterem à porta, tudo bem; franqueá-la-á. Mas até que isso seja feito, não demonstra o menor sinal de querer insistir em que as coisas aconteçam no sentido de sua difusão. Com seu temperamento simples e esquivo, contenta-se com as editoras locais, que vêm publicando seus contos faz anos, tão boas em qualidade (menos em distribuição) como as demais conhecidas dos grandes centros.
                                               Como Borges, que vivia anônimo e ignorado em Buenos Aires, espera a vez de aparecer alguém que o descubra e lhe destine o lugar merecido nas letras deste país.


                                                                                 

Sunday, August 14, 2016

"À LA RECHERCHE II" - Hamilton Alves



                                               Voltando às páginas de “No caminho de Swann”, o primeiro volume de “À la recherche...”, à margem, registrei que, a certa altura, o narrador define Swann como um neuropata. Tal designação lhe concerne ou lhe diz respeito ou casa-se a sua complicada personalidade?
                                               Bem, se uma paixão por uma mulher  pode ser considerada uma neuropatia (Freud dizia que era um fetiche) , então não há dúvida que era  um neuropata.
                                               No decorrer desse primeiro tomo da obra de Proust há muitos momentos em que tal neuropatia aflora nas relações nem sempre bem definidas entre os dois amantes. Ela parecia pairar olimpicamente acima de tal paixão, como lhe fosse algo que cultivasse sem muito entusiasmo ou nutria por Swann não mais que certa admiração provinda de seu inegável talento para viver a boa vida, um homem ligado à nobreza, às artes, e, ao mesmo tempo, ser capaz de conviver com um garçom do primeiro bar de bas-fond que, a certas horas, se permitisse frequentar.
                                               Swann tinha essa característica de refinamento, mas velada por ele mesmo, que não a exibia, que até, em certas circunstâncias, a reprimia, escondendo-a dos olhos dos amigos que não suspeitavam nele essa qualidade fundamental de viver vidas de diferentes padrões ou características, ou de, por exemplo, coexistir em lugares tão diferentes um do outro que não levasse ninguém a supor que, antes de unir-se a um grupo social menos qualificado, estivera em contato com nobres. Sem falar em sua aptidão de comentar obras de arte como um profundo conhecedor e de ter assistido às últimas exposições sem que ninguém desse por isso.
                                               Odete andava bem afastada desse mundo galante ou o freqüentava de raspão, levada por ele; não por iniciativa própria. Até porque, em tais meios, e nos de menor expressão social também, era vista como uma pessoa vulgar, mas que a beleza inigualável a fazia alvo de todas as atenções.
                                               Um neuropata da paixão pode-se, sim, dizer de Swann. A paixão por Odette era a cruz que carregava sem que ela mesma se desse conta provavelmente disso. Ou, se desse, lhe era tão indiferente com as nuvens que via passar no céu.
                                               Odette pode ser descrita como tendo uma dessas personalidades muito peculiares, ao mesmo tempo em que fascinam deixam um sabor amargo naqueles que dela se aproximam. Era ao mesmo tempo bela e inacessível – até mesmo para o amante.
                                               Sua inacessibilidade podia decorrer de saber-se encantadora e despertar nos homens desejos inconfessos. A neuropatia de Swann (ou fetiche) era de reconhecer que ocupava, na vida dela, não mais que um espaço marginal. Ela o acolhia, cortejava-o às vezes, mas tudo isso vinha revestido, na percepção dele, de um alto grau de frieza.
                                               Muitas vezes, em horas perdidas da noite, andava à procura dela nos possíveis locais onde pudesse encontrá-la. De cada vez que isso se tornava inútil punha-se a refletir, como um possesso, com quem passava àquelas horas ou em que lugar insuspeitado podia estar a divertir-se e a desfrutar aqueles momentos tormentosos para ele.
                                               Razão teve, sim, o narrador para defini-lo como um neuropata.


(maio/08).

Saturday, August 13, 2016

A PRIMEIRA MISSA - Hamilton Alves

                                   Fui ver uma quarta vez a obra monumental de Vitor Meirelles “A Primeira Missa do Brasil”. É dessas obras que não se cansa de ver.
                                   Quem a observa atentamente, nos menores detalhes, chega à clara conclusão que não há muitas iguais no mundo em grandeza.
                                   Mesmo para quem não seja um especialista em arte essa dedução é natural. Ou se torna fácil fazer-se.
                                   Citei como obras paralelas à de Vitor ‘Guernica” e “As Senhoritas d'Avignon”, de Picasso.
                                   Há quem possa alegar que faço comparação entre coisas desiguais ou de escolas diametralmente opostas. Isso não impede de compará-las. Posso comparar, por exemplo, uma banana com uma laranja e nem por isso estarei incorrendo num absurdo. O que é que comparo? A beleza entre ambas. Qual a que passa maior expressão estética. Claríssimo, torna-se difícil senão impossível dizê-lo. Tanto a banana quanto a laranja esteticamente têm seus próprios valores.
                                   Assim com respeito às obras referidas de Picasso e Meirelles.
                                   São fundamentalmente diferentes por pertencerem a épocas e escolas distintas. Mas no que se refere a sua qualidade como obra de arte, independentemente de qualquer outro fator, pode-se compará-las. Ambas têm, sem dúvida, altíssimo poder de expressão artística. São obras primas diante das quais tem-se a clara percepção de sua grandiosidade. Estão acima de qualquer juízo de valor.
                                   Mesmo em se tratando de apuro técnico difícil é estabelecer qualquer distinção, embora me pareça que, no caso da tela de Vitor, lhe tenha exigido maior empenho. Quanto tempo levou para concluí-la?
                                   Não foi certamente em um dia, um mês ou mesmo um ano. Exigiu-se mais tempo.
                                   Uma proposta interessante seria de saber o que Picasso diria de “A Primeira Missa” e o que Meirelles acharia de “Guernica”, tendo diferentes visões de arte ou pertencendo a escolas distintas.
                                   Creio que Picasso faria grandes elogios à tela de Meirelles e este outro tanto diria da de Picasso. Picasso deveria ser um artista que via a arte como um todo, não apenas como representação de uma escola. Do mesmo passo, suponho que Meirelles teria idêntica postura. Nada de limitações. O artista, em geral, tem um espírito aberto à criação. Ou para o belo. Lembremo-nos que Picasso aplaudiu um quadro de Modigliani, o retrato de sua mulher, Jeane Hébuterne, que, grávida, se matou logo depois que ele morreu. Modigliani não pertencia a sua escola. Era figurativo, muito próximo do expressionismo.
                                   Picasso e Meirelles, dois renomados artistas, que dividem igualmente o panteão dos gênios.

(maio/08)

                                   

Friday, August 12, 2016

A POESIA DE C. RONALD - Hamilton Alves


                                   Numa resenha que escrevi para um jornal local sobre a poesia de C. Ronald, com base em alguns poemas que publicou com seu livro “Ocasional Glup”, do qual recolhi um poema que considero meu preferido, entre todos, que logo a seguir o transcreverei aqui, disse que sua poesia é uma espécie de delírio. Acho que essa palavra a define bem.
                                   Também me lembro de ter dito que, esgotado o repertório do dizer (ou dos dizeres), em poesia, parece ter optado por uma via em que todas as coisas são ditas num verso só, numa abrangência (digamos assim) cósmica. Como se pretendesse encerrar tudo nele. Ou todas as coisas dizíveis ou indizíveis.
                                   Para se ter uma idéia dessa linguagem (ou nova linguagem) poética, segue o poema a que me referi:

                                   “o destino deve encontrar o homem
                                     para ser a alegria da festa
                                     o banquete é servido
                                    e dessa cena conhecida
                                    o repetitivo alimento às vezes
                                    concentra o inesperado
                                    o sabor quebra a boca
                                    e torna-se arrependimento
                                    na noite que nos condena
                                    mas nem tudo é 
                                    erro da cozinheira”.

                                    Mandei esse poema (o Carlinhos não sabe disso), junto com o de outro poeta pouco conhecido, de cujo poema gosto muito também, para um crítico de arte, em Recife (Fernando Monteiro), com um senso agudíssimo para crítica de poesia. Respondeu-me assim: “há duendes nesse poema” (referindo-se a esse ora transcrito de Ronald).
                                    Em seu mais recente livro, “Um lugar para os dias” (título condigno de uma obra poética), Carlinhos volta a bisar (aliás, não é novidade nenhuma) essa fórmula de abarcar um universo de coisas num só poema e às vezes num único verso, como nesse que segue:

                                      “Com mágica não se desmonta um camelo.
                                      Reservei o sentido mais liso que possuo       
                                      para o teu sonho descer, tu que és leve,
                                      que rejeitas o sinal da cruz na  minha
                                      maré, tu, sobra de arroz lançada
                                      sobre Febo.
                                                                      
                                      Na casa velha, apostando
                                      na surpresa de muitas direções,
                                      o sonho na pele de um astro mais ousado
                                      estoura a sombra com pompa.

                                      Tudo fica atrás do meu humor;
                                      ele traz as labaredas se ficarem acesas, hoje
                                      rio ou choro nas paredes brancas do luar.
                                      Há turno de esquecimento,
                                      é preciso tirar a vida das gavetas.”

                                      Quem se arrisca a uma fórmula poética tão ousada, na tentativa de alcançar, através de sucessivas abstrações, níveis de dizeres que estão inteiramente fora do alcance da lógica ou da razão?
                                      Se o objeto do poema é justamente o de devassar novos mundos de significados (ou de não significados), C. Ronald é um dos poucos poetas que, sem dúvida, está (ou segue) nesse caminho desbravador.

(set/08)                                                                                                                                                         

                                                                                                                                                           







Thursday, August 11, 2016

A OPINIÃO DE IVONE - Hamilton Alves



Vim de conhecer, por circunstâncias relacionada à pintura de Jair Platt, Ivone. Não fiquei sabendo seu nome de família. Um dia, apareceu em minha casa, dizendo-me que soube que Eli Heil tinha começado a pintar inspirada num trabalho de Platt. E que, por isso mesmo, interessava-se em conhecer a obra de Platt. Soubera que eu tinha conhecido Jair Platt de perto, convivido com ele, e que tinha também, por isso mesmo, um bom acervo de quadros dele.
Esteve em minha casa há uns tempos passados e ficamos amigos. Quando lhe mostrei a obra de Jair, ela pasmou-se. Não adivinhava que era tão bonita e tão importante. Em seguida, fez o comentário de como é possível admitir que a Universidade Federal de Santa Catarina, tendo que passar para seus alunos, ligados às atividades artísticas ou que estudam esse assunto, não se importa de transmitir-lhes esse acervo de tantos artistas que, em outras plagas, ou culturas, seriam, hoje, certamente, celebrizados (ou celebridades).
O comentário crítico que fez de "Auto-retrato", de Platt, me impressionou muito. Disse coisas a respeito dessa obra inesperadas e ao mesmo surpreendentes. Até então não ouvira tais observações de quem quer que tivesse também visto esse quadro, que é um dos melhores do legado de Platt.
Ivone se propôs (com a minha licença) a colher umas fotos de todos os trabalhos de Platt para fazer um vídeo, o qual exibiria depois aos seus alunos de curso secundário. Coloquei-me à disposição dela para difundir a obra de Jair, sabedor de que por estas bandas se faz muito pouco ou não se faz nada para a divulgação de nossos artistas.  Um ou outro ganhou já notoriedade, à própria custa,  independentemente do que por eles possa fazer os órgãos ligados à cultura. Como é o caso, só para citar alguns, de Eduardo dias, Vitor Meirelles, de nome internacional, Martinho de Haro, Eli Heil, Hassis e alguns outros.
Entrando em contato mais recentemente com Ivone, interessado em saber como vão os entendimentos que se propôs fazer para divulgar a obra de Jair Platt, soube que para o mês próximo de agosto organiza uma mostra, em vídeo, dos quadros de meu acervo. E isso me deixa feliz. Voltei a colocar-me à sua disposição para que seja bem sucedida sua empreitada de divulgar um dos maiores artistas plásticos deste Estado.

Ivone, é preciso que se diga, é uma mulher de grande sensibilidade crítica para pintura. Pode-se esperar dela, com seu entusiasmo, que muito se faça pelo resgate das obras de nossos pintores.    

Monday, August 8, 2016

A NOITE - Hamilton Alves



quando chegar a noite
poderei descobri-la
de olhos abertos
em toda sua nudez;

poderei admirá-la,
senti-la, medi-la,
chegar a  conclusões,
quando a noite chegar;

não terei mais dúvidas,
as ilusões se dissiparão,
terei uma perspectiva
de todo o conjunto;

quando chegar a noite,
estarei mais atento,
mais aberto à vida –
tudo  se definirá;

não terei mais receio,
serei mais confiante,
abrirei as janelas de par em par
para ver claramente a noite.

            x x x

(poema de Hamilton Alves escrito em julho de 2006 sob o pseudônimo de Otto Nul).




Sunday, August 7, 2016

A NARRAÇÃO ACABOU? - Hamilton Alves



                        Há uma idéia corrente entre professores de literatura ou críticos literários segundo a qual a narração convencional de início, meio e fim acabou.
Há dias, precisei consultar a novela de Balzac, “O Pai Goriot”, e me deliciei com a leitura de uma dezena de páginas, pronto para reencetá-la, tratando-se de um dos grandes momentos das letras do século XIX e de Honoré de Balzac como escritor.
                        Que delícia rever ou reencontrar os pensionistas da sra.Vauquer, na rue Sainte Genovève, entre o Quartier Latin  e o Faubourg Saint-Marceau, com os inesquecíveis personagens, Vautrin, Poiret, Rastignac, o próprio Goriot, cujo quarto é amplamente descrito por Balzac. Quanto daria para morar num quarto assim!
                        Os especialistas em literatura aludem que a descrição de ambientes ou de personagens acabou na modernidade literária.
                        Exatamente por isso, por essa específica qualidade dessa obra de Balzac e de outras tantas de sua autoria, é que recorri a ela num desses dias para me certificar de cada detalhe da pensão Vauquer, das pessoas que ocupavam o primeiro, o segundo e o terceiro pisos e dos pensionistas eventuais, como era o caso de Bianchon, que a esse tempo era estudante de medicina, e que veio a ser um dos figurantes de maior projeção da obra balzaquiana.
                        Dizer-se, por isso, que essa literatura narrativa e descritiva não tem mais lugar em nosso tempo é uma tolice. Quem gostaria ou sequer admitiria que Balzac contasse sua história - a de “O Pai Goriot” - diferente do que é?
                        Faça-se essa pergunta para qualquer ledor contumaz, aos amantes de literatura, aos seus apaixonados, para ver-se a opinião de cada qual. Notar-se-á que será predominante ou quase unânime a opinião de que não haverá um só dentre os admiradores da obra balzaquiana ou dessa novela, em especial, que jamais admitirá que tivesse seguido a linha ou os moldes da atual literatura, que abandonou a descrição ou os detalhes necessários para que o leitor entre na intimidade ou até mesmo no convívio de personagens e ambientes de uma história.
                        No meu caso, me sentiria profundamente descontente que fossem de tratamento diferente as novelas consagradas, entre as quais se inclui essa, ou ainda outras como “Madame Bovary”, “Ana Karenina”, para citar-se as maiores e de maior projeção nas letras universais, que seguem o mesmo padrão descritivo ou narrativo.
                        A descrição é elemento altamente de valor em “O Pai Goriot”, sem o que como se entrar naquele mundo único e extraordinário em que conviviam esses personagens que marcaram para sempre a literatura mundial?
                        Os escritores modernos primam pela escassez de descrição e de narração, entendendo que a literatura deva seguir por uma linha de abstração ou predominantemente literária, no sentido de que a história ou narração ou mesmo a descrição não tenham mais lugar. Quem é que tem idéia de como era, por exemplo, Leopold Bloom, personagem de Joyce, em “Ulissses”?
                        “Não se pode mais regredir no tempo, à literatura passadista, de séculos atrás” – é o refrão que constantemente se ouve.                     
                        Como Balzac desmente essa teoria, atendendo aos pormenores, às coisas miúdas, de como era a pensão da sra. Vauquer ou desenhando as figuras de um Vautrin, de um Rastignac, de um Poiret e outros!
                        É de tal forma fascinante o início dessa novela que me considero de novo convocado a repassar essas mais de duzentas páginas de meu exemplar já tão castigado pelo uso. E que a crítica vá plantar batata.


(agosto/08)

Thursday, August 4, 2016

A MORTE DE DEUS - Hamilton Alves





            Numa sexta-feira de abril de um ano de que nãoregistro, num hotel da rua Conselheiro Mafra, em que durante uma semana ocupou uma água-furtada, de onde se tinha uma bela visão da baía sul, Deus morreu.
            Quando se deu pelo fato, houve um alarido no pequeno hotel. O gerente ficou feito barata tonta quando a camareira lhe pôs a par do ocorrido.
-         Mas por que Deus está morto? – perguntou ele muito tenso à camareira.
-         Sabe-se lá porque! Hoje, à tarde, quando fui arrumar o quarto, o corpo estava caído do lado da cama.
Imediatamente, depois de constatar o fato, temeroso do escândalo que a morte de Deus poderia provocar, o gerente, com toda a cautela, dirigiu-se à Delegacia de Polícia, onde manteve contato com o comissário de plantão, que foi encontrado sentado numa cadeira rolante, lendo um gibi, com as pernas repousando em cima da mesa.
-         Boa tarde.
-         Boa tarde. – respondeu o comissário. O que é que manda?
-         Um homicídio!... E logo no hotel em que trabalho.
-         O que é que aconteceu?
-         Deus morreu hoje de tarde.
-         Deus morreu?!... Você deve estar brincando. A morte de Deus foi anunciada pelo filósofo Nietzche, mas nem por isso se deu ao caso maior importância; Deus continua vivo e bem vivo. Você enlouqueceu!
-         Não se trata do Deus bíblico.
-         De quem se trata então?
-         Este Deus a que me refiro é outro Deus. É um homem como eu e você, de carne e osso.
-         Mas como ousa chamá-lo de Deus?
-         Nós o chamávamos de Deus. Era corriqueiro no hotel, desde o dia em que lá se hospedou.
-         Tem outro nome então?
-         Sim.
-         Como se chama?
-         José de Deus.
-         Então está explicado. Começo a entender melhor as coisas.
O policial mexeu nuns papéis, pegou um cigarro, acendeu-o, empertigou-se, olhou de frente seu interlocutor e lançou-lhe a pergunta.
-         Mas afinal, de que ele morreu?
-         Pois é... isto é que convém saber.
-         Estava há muito tempo hospedado no hotel?
-         Fazia já uma semana.
-         Como foi que souberam do fato?
-         A camareira hoje à tarde foi entrar no quarto para a faxina de rotina e viu o corpo caído ao lado da cama.
-         Estava morto?
-         Sim, ela disse que o encontrou morto.
-         Ele tinha algum tipo de relacionamento com alguém conhecido?
-         Não, ninguém o visitara durante esse tempo no hotel.
-         Quem poderia tê-lo matado?
-         Quem é que sabe!
-         Ele costumava ir a algum local conhecido, recebia telefonemas ou coisas desse tipo?
-         Nada se sabe em torno de sua vida. Era uma pessoa esquisita, de pouca fala.
-         Isso torna tudo difícil. Bem, providenciarei a remoção do corpo para fazer-se a autópsia. Em seguida, será aberto o inquérito. É tudo o que nos cabe, no caso, fazer.
O policial, seguido do gerente, dirigiu-se à garagem da Chefatura de Polícia. Embarcaram num carro. Foram até o hotel. Uma ambulância retirou o corpo de onde se encontrava e o levou ao Instituto Médico Legal, onde se veio a constatar a morte de Deus por ter feito ingestão excessiva de barbitúricos.
Ao tomar conhecimento do fato, alguns repórteres estiveram na Delegacia.
-         Soube-se que Deus morreu. Ou matou-se, comissário. Que pode adiantar sobre o fato?
-         Tudo se resume à ingestão de dose letal de barbitúricos.
-         Não foi crime, então?
-         Não havia vestígio de luta corporal no local em que foi encontrado o corpo.
-         Por que Deus teria se matado?
-         Quem sabe?!...
-         De onde teria vindo?
-         O gerente me disse que ele era caixeiro-viajante.
-         Não é um ofício muito condigno a Deus.
-         Não brinque. Não seja sacrílego.
-         Mas não é conhecido por esse nome?
-         Sim, todos o conheciam por Deus. O nome dele é José de Deus
-         A polícia não fará nenhuma diligência além da que já fez para apurar outros fatos ligados à morte de Deus?
-         O que é que você espera que a polícia faça?
-         É possível que alguém lhe tenha servido algum líquido envenenado ou uma garrafa de bebida contendo dose excessiva de alguma droga. Deus não se mataria á-toa.
-         Por que não?
-         O senhor sabe alguma coisa a respeito da sua vida pregressa? Acaba de me dizer que não se sabe de onde veio.
-         Quem é que teria motivos para matá-lo?
-         Há tanta gente interessada em matá-lo.
-         Quem?
-         Isso não é pergunta que o senhor me faça. O senhor mesmo deve fazê-la a si mesmo.
-         Vocês, jornalistas, sempre pretendem bisbilhotar em torno de razões às vezes imponderáveis.
-         Mas o caso não se encerrou com a simples constatação da morte de Deus. Há que ir até o fim.
-         O gerente me disse que ele deixou apenas o nome no registro de hóspedes e quando foi perguntado de onde tinha vindo não disse nada. Disse apenas que acabara de chegar à cidade e, ao declinar sua profissão, disse ser caixeiro-viajante.
-         O que é que ele vendia?
-         Livros.
-         Procurou-se saber se tinha visitado alguma livraria ou biblioteca?
-         O gerente nada disse a tal respeito.
-         O caso, então, a seu ver, está encerrado. A morte de Deus fica por isso mesmo?
-         Não temos até agora nenhuma pista.
-         Não se procurou algum documento que revele sua identidade ou o lugar de onde teria vindo?
-         Nada constava numa pequena maleta que o acompanhava, nada nos bolsos de sua roupa, que, aliás, se resumia a duas calças, três camisas, dois pares de meia, duas ou três cuecas e um casaco pendurado num cabide atrás da porta do quarto que ocupou.
-         Isto é tudo?
-         Sim.
-         Nada mais?
-         Nada.
Houve um longo silêncio. O comissário puxou novamente um cigarro do bolso, acendeu-o, deu algumas baforadas, olhou por uma janela por onde se via uma nesga do mar. Àquela hora, transitavam por ali alguns barcos.
-         Deus tinha que escolher logo esta Ilha para morrer. – disse, entre dentes, o comissário.
Parecia ter pensado em voz alta, dando azo a que o jornalista perguntasse:
-         Não seria o caso de checar as livrarias da cidade ou a biblioteca pública? Pode ser que tivesse mantido contato com elas
-         Já foi tudo devidamente checado. Ninguém sabe informar nada sobre a existência de Deus.
-         Isso dá o que pensar... – disse o repórter.
-         O que é que você pretende dizer?
-         Mas se ninguém sabe da existência de Deus... isso é muito curioso.
-         Por que?
-         Ora, se ele era caixeiro-viajante, algum contato devia manter com o comércio de livros. Não acha?
-         Mas o que se apurou até agora é que ninguém o viu. Ninguém sabe dizer nada. Nada se prova. O que é que você quer?
-         É estranho!...
-         Por mais estranho que lhe possa parecer, os fatos são estes - declarou peremptório o comissário como querendo pôr uma pá de cal no assunto.
-         A polícia não tomará mais nenhuma iniciativa?
-         Estamos coletando dados, mas não creio que esse caso envolva algum crime.
-         Por que o senhor está tão certo disso?
-         O gerente informou que Deus não foi visitado por ninguém no dia dos fatos. Não manteve também nenhuma ligação telefônica com qualquer pessoa. Que conclusão tirar disso?
-         Alguém poderia ter se infiltrado no quarto e lhe servido o líquido contendo a droga. Havia uma jarra de água em sua mesinha de cabeceira.
-         Quem foi que lhe disse que tinha uma jarra de água na cabeceira dele?
-         O gerente.
-         Você o entrevistou também?
-         Antes de vir aqui, estive com ele.
-         Nada me disse a tal respeito.
-         São dados importantes.
-         Você tem razão. Voltarei a entrevistar o gerente para que confirme esses detalhes.
Na entrevista mantida com o gerente, este repetiu tudo o que o policial já sabia e confirmou a existência de uma jarra d’água à cabeceira da cama de Deus.
Teria tomado da água da jarra onde poderia ter sido colocada a dose fatal de barbitúricos.
A polícia, apesar de todo o levantamento feito, não chegou a nenhuma conclusão de ter havido crime.
Nunca se soube nada a respeito da morte de Deus. E muito menos da sua vida pregressa. O mistério envolveu para sempre este rumoroso caso. Até hoje.



(fim)