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Friday, September 30, 2016

CEM ANOS DO POETA MÁRIO QUINTANA (vivendo sempre em Porto Alegre, Quintana firmou-se como um dos poetas mais apreciados do país) (por Hamilton Alves)


            Tive a felicidade de conhecer Mário Quintana, já bastante idoso, num apartamento em Porto Alegre, no Hotel Royal, no centro da cidade, que Roberto Falcão, o ex-craque da seleção brasileira e ora comentarista da Globo, lhe emprestou para morar enquanto vivesse.  Pouco antes fora despejado de um imóvel pertencente à prefeitura.
            Foi ali numa certa tarde que o procurei, com um livro de crônicas à mão, em busca de editor. Não cheguei a mostrar-lho. Recebeu-me afavelmente. Era uma figura simpaticíssima, vivendo sozinho nesse apartamento, assistido por uma secretária que, quando cheguei ao local, lhe preparava um lanche.
            As paredes desse apartamento eram forradas de livros. Junto a uma delas uma cama, sobre a qual notei um quadro de muito mau gosto. Talvez a pintura não fosse uma eleição de Quintana. Ou ele nem ligava para isso.
            Conversamos cerca de uma hora.
            Quando lhe falei de meu livro e da dificuldade de editá-lo, comentou:
            - Os editores sempre criam dificuldades para editar livros, mas no fim acabam editando.
            Antes de conhecê-lo ouvira muitas histórias a seu respeito, uma das quais contada por um amigo, que morou com ele numa pensão em Porto Alegre. Quintana sempre chegava tarde à pensão e, em geral, embriagado. Numa dessas noites, os hóspedes da pensão tiveram sua atenção despertada para um cheiro de fumaça.  Quando deram pelo motivo da fumaceira, constataram que um cigarro esquecido por Quintana em sua cama incendiara o colchão e, por pouco, não morrera sufocado.
            O convívio com Quintana nessa pensão, na versão desse amigo, era muito ameno. Quintana era um homem de pouca fala, solitário. Durante o dia ninguém o via. Vinha à pensão para dormir. No resto do dia, ficava no jornal onde era redator. Na editora Globo marcou época como tradutor. Foi essa editora, por obra de Quintana, uma das primeiras (se não foi a primeira) a divulgar os grandes clássicos da literatura mundial, como, por exemplo, “Em busca do tempo perdido”, de Proust, que tem três dos sete volumes traduzidos por ele.
            No jornal onde trabalhou por muitos anos, Correio do Povo, que hoje não é nem a sombra do que foi, um dos melhores do país então, mantinha aos domingos uma página, o famoso Caderno H, onde publicava seus poemas.
            Perto do fim da vida (morreu com oitenta e oito anos), ele que sempre fora esquivo ao ingresso em academias, como fora igualmente seu velho amigo Érico Veríssimo, que até o fim resistiu à tentação de vestir o fardão, aceitou concorrer a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, disputando-a com ninguém menos que José Sarney, que, claro, não tinha dado a contribuição de Quintana à cultura brasileira. E, como poeta, produzira um único livro, com o título “Marimbondos de Fogo”, com uma bagagem pequena e modesta. Mas foi o ungido dos acadêmicos para surpresa geral. Prevaleceu a diferença de projeção política entre um e outro. Sarney, pouco antes, fora Presidente da República, graças à fatídica morte de Tancredo Neves.
            Foi convidado a participar de nova eleição, mas dessa vez, escarmentado com a decepção do primeiro revés, Quintana considerou que a academia não era propriamente um lugar que lhe fosse condizente com sua vida simples, apanágio de toda a sua vida.
            Claro, Quintana não perdeu nada em não ter ingressado na Academia, esta, sim, ficou mais pobre por não tê-lo entre seus pares.
            Travou amizade com os poetas mais notáveis de seu tempo, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, que lhe dedicou um poema e, ainda, Paulo Mendes Campos, que, quando morou por uns tempos em Porto Alegre, fez uma entrevista com ele, publicada na revista Manchete.
            No encontro que tivemos em Porto Alegre me dedicou um de seus livros, que até a pouco ainda conservava, mas que sumiu como tantos outros. Havia ali um poema muito bem estruturado que, certa vez, ouvi declamado pelo ator Lima Duarte num programa da  Globo.
            Quintana era um homem de porte franzino, baixinho, meio calvo ou com uma calvície acentuada pela idade. Parecia um passarinho. Movia-se com facilidade de um lado para outro em seu apartamento.
            Nossa entrevista foi parca.
            Fiz-lhe poucas perguntas. Respondia sempre com muita simpatia, sem dar-se a menor importância.
            Não lhe falei da minha condição de jornalista nem lhe comuniquei que podia algum dia transformar os dados daquele encontro numa resenha de jornal, como o faço agora. Tudo que lhe confessei foi que levava comigo um livro de crônicas para encontrar editor em Porto Alegre, já que, por aqui, à época, isso era difícil.
            Não falou de si, de sua obra nem de nada que de longe transpirasse literatura ou poesia.
            Tudo se resumiu a coisas do momento ou assuntos do dia-a-dia.
            Nem sei como abriu as portas de seu apartamento para receber-me. Não me conhecia, nada sabia de mim. Apresentei-me como um escritor que queria conversar um pouco com ele. Esse foi meu abra-te sésamo.
            Também não sentamos um em frente do outro para conversar. O diálogo pouco e seco se fazia enquanto rodopiava pelo espaço modesto do apartamento, com a secretária de permeio.
            Não houve também despedida.
            Nem me formulou convite para voltar. Nem houve qualquer outro tipo de etiqueta. Tudo se passou de forma muito simples, como ocorre em geral entre duas pessoas que pouco ou nada se conhecem.
            A única nota calorosa foi a dedicatória que me fez no livro de poemas com que me presenteou.
            Do encontro com Quintana fui procurar Moacyr Scliar, numa repartição do governo, onde exercia o cargo de médico sanitarista. Mostrei-lhe os originais do livro. Fez boa referência da crônica/título, “A mosca azul”.
            Não sou grande conhecedor da poesia de Quintana. Mas tudo que conheço dele (ou desse pouco) leva-me a crer que tem uma boa bagagem de poemas, que justifica seu prestígio de poeta e a admiração dos poetas já referidos (Bandeira, Drummond e Paulo Mendes Campos).
            Há pouco, voltei às páginas de “Baú de Espantos”, uma antologia de seus poemas editada pela “Record/Altaya”.
            Segue-se um dos poemas mais fortes dele:
            “O sono é uma viagem noturna:
            o corpo – horizontal – no escuro
            e no silêncio do trem, avança,
            imperceptivelmente avança...Apenas
            o relógio picota a passagem do tempo.
            Sonha a alma deitada no seu ataúde:
            lá longe
            lá fora
            no fundo do túnel,
            há uma estação de chegada
            (anunciam-na os galos agora)
            há uma estação de chegada com sua tabuleta ainda
            toda orvalhada...
            Há uma estação chamada...
            AURORA!”

Wednesday, September 28, 2016

CEM ANOS DE MACHADO - Hamilton Alves



                                   Por ocasião do centenário da morte de Machado de Assis, um jornal abriu coluna para ouvir a opinião de especialistas ou conhecedores da obra do grande escritor. Tais opiniões sempre coincidem (e nem seria para menos) na grandeza de Machado, atribuindo-lhe, ao lado de Guimarães Rosa (como o ressaltou José Mindlin, o homem que possui a maior biblioteca privada deste país), a condição de ser o maior escritor brasileiro do século XIX, enquanto igual atributo cabe a Guimarães com referência ao século XX. Concordo plenamente com Mindlin. Refere-se o bibliófilo a quatro romances de Machado que lhe parecem os que ocupam lugar preeminente em sua obra, “Quincas Borba”, “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que contém um capítulo – “O delírio” – que Eca de Queiroz sabia de cor. E, ainda, “Memorial de Aires”. Desses quatro só não li o último. Reportou-se também ao conto de sua preferência. De certo modo me surpreendeu quando mencionou “A cartomante”, que considero menor frente, por exemplo, a três dos que me parecem de maior importância ou mais bem construídos ou clássicos, que são em linha de importância e grandeza “Missa do galo”, (superior a todos os outros, a meu ver), “A igreja do diabo” e o majestoso “Teoria do medalhão”. Nenhum outro conto, na obra de Machado, sobreleva a esses três, que atingiram um nível de qualidade que os colocam ao lado dos melhores contos universais, como os de Tchecov, Joyce, Hemingway e outros desse naipe.
                                   Pode haver admiradores de Machado que entendam que “A cartomante” se enfileira entre esses citados. Respeito tal opinião, mas não a endosso. Em vez desse conto, citaria um outro para ser colocado ao lado dos três que prefiro, “Idéias de canário”, que é um primor e que tem uma elaboração ou uma estrutura muito forte como conto.
                                   Mindlin mencionou as crônicas de Machado, no que foi, inegavelmente, um mestre. Já citei noutra ocasião que tinham um grande admirador na pessoa de Gustavo Corção. Confessou em “Desconcerto do mundo” (Ed. Vozes) que sempre lia uma crônica de Machado todos os dias para desfrutar de sua ração de beleza. Como Corção e Mindlin, Machado tem outros admiradores que o apreciam como cronista. Como poeta Machado tem só um grande poema - o que escreveu dedicado a sua mulher, Carolina, que o arcebispo Domingues de Oliveira dizia, entre amigos, que esse poema se igualava aos maiores da língua portuguesa.
                                   Mindlin se refere ao adultério de Capitu. Aceita-o ou o admite. Alude ao fato de que o casamento de Capitu com Bentinho foi um erro de pessoa, pois ainda que dúvidas existam sobre o tema, na verdade, com o adultério, procurou se libertar de um casamento infeliz.
                                   Textualmente, Mindlin diz o seguinte: “À pergunta se traiu ou não Bentinho, a resposta sempre me pareceu óbvia: qualquer um faria o que ela fez porque Bentinho não estava a sua altura”.  Nem todos pensam assim. Há quem não se arrisque a opinar num sentido ou noutro. A escritora americana Helen Caldwell, numa obra em que procura se aprofundar nesse assunto, defende intransigentemente Capitu, entendendo que não houve adultério.
                                   Nunca se chegará a um acordo sobre a questão.
                                   A obra de Machado resiste a mais de cem anos, prevalecendo, ainda agora, como o maior monumento das letras brasileiras.
                                   É provável que atravesse mais um século sem encontrar quem  rivalize com ela. A não ser Guimarães Rosa (como o destaca o próprio Mindlin) que passou a ocupar o pódio com ele na mesma consideração da crítica.


(julho/08).

Tuesday, September 27, 2016

CANTO DO PÁSSARO ESTRANHO - Hamilton Alves


Este canto do pássaro estranho
Me faz levitar

Me põe entre a manhã
E a tarde

Entre o dia
E a noite

Entre o sol
E a lua

Entre a alegria
E a tristeza

Entre o sonho
E a vigília

Entre o bem
E o mal

Entre o nada
E o tudo

Entre o começo
E o fim.



(poema de Hamilton Alves escrito em janeiro de 2007 sob o pseudônimo de Otto Nul).

Monday, September 26, 2016

CANTO DO OCASO - Hamilton Alves



Nuvem cor de rosa,
Poupa-te tal esbanjamento;

Nem de ti, vento,
Peço teu leve roçagar;

Cigarra, não te desgastes
Com teu canto;

Nem de ti, pássaro fugidio,
Espero teu rítmico bater de asas;

Nem, noite, soe o hino
Que Novalis te consagrou;

Sombras noturnas, cuidado,
Provém de vós a tristeza;

Ó, estrelas, vagai pelos céus,
Os bêbados vos esperam às esquinas;

Mar, que ora mergulhas nas trevas,
Acolhe-me como teu filho;

Augusto silêncio, põe teu remate
À luz do ocaso que se apaga.



 (poema de Hamilton Alves escrito em janeiro de 2007 sob o pseudônimo de Otto Nul).

Sunday, September 25, 2016

CANTALÍCIO - Hamilton Alves




                                   Cantalício foi um dos grandes amigos que fiz num lugarejo do interior da Ilha onde tive durante tempos uma casa de passar férias e fins de semana – agora tornou-se moradia.
A princípio, quando nos aproximamos, causou-me estranheza o
modo como vivia, sem uma casa para morar (hoje aqui, amanhã ali, em abrigos precários e provisórios). Isso me tocava ou preocupava. De alguma maneira procurei minimizar-lhe os efeitos da miséria.
                                   O que me chamava mais a atenção nele era sua religiosidade, não que fosse um fenômeno igual ao de outras pessoas que seguiam a mesma linha de religiões. A religião nele era uma coisa mais visível, no sentido de que levava por toda parte um rosário de contas enormes.
                                   - Quem lhe deu esse rosário, Cantalício?
                                   - Foi uma senhora.
                                   Vezes sem conta encontrei-o lendo a bíblia nos lugares mais diferentes.
                                   - Qual a parte da bíblia que mais lhe interessa? – perguntei-lhe sem esperar resposta muito pronta.
                                   - É o Novo Testamento.
                                   Em algumas ocasiões, encontrando-o ao acaso, tinha o hábito de repetir-me:
                                   - Tem muito pecado no mundo.
                                   Parecia-me que essa era uma forma de crítica que fazia ao mundo ou à sociedade como um todo ou da omissão dos homens face aos problemas humanos.
                                   Para mim, tal reflexão me chamava à razão para o modo de vida que levava. A lição contida nessas simples palavras funcionava em mim como um aguilhão.
                                   Talvez mal tivesse senso de que era fortemente atingido pelos “pecados do mundo”, representados pela corrupção, pelos desmandos, pelos desregramentos de quem detinha o poder.
                                   Haveria um santo no mundo comparável aos grandes santos? – diante de Cantalício costumava me perguntar.
                                   Não seria esse homem um santo?
                                   Vivia como tal, metido com seu rosário, na leitura da bíblia, morando de forma miserável, se alimentando de forma irregular, despojado de todas as coisas que davam conforto à maioria das pessoas. Dizia-me que fazia uma lata de café e o bebia frio ou quente durante o dia.
                                   Ninguém queria saber dele. Não lhe davam atenção. Só dois ou três cachorros o seguiam por toda parte.
                                   Um outro vizinho disse-me um dia de forma que me pareceu  injusta:
                                   - Isso é um malandro; não quer trabalhar.
                                   - Cantalício é um homem doente. – disse-lhe.
                                   Calou-se.
                                   De tanto que me empenhei, construí um pequeno barraco onde Cantalício, por fim, poderia se abrigar. Durou pouco. Três dias depois sumiu, levado por membros de uma congregação existente em Ribeirão da Ilha.
                                   A última notícia que soube dele é que está internado no Orianópolis, uma casa que recolhe idosos e pessoas que vivem ao Deus dará.
                                   Deu-me a bíblia de presente, deixando-a com um vizinho incumbido de me entregá-la, com a seguinte dedicatória:
                                   - Ao irmão Hamilton, com o abraço do Cantalício.



(junho/08).                    

Friday, September 23, 2016

CAMINITO - Hamilton Alves




                                   Caminito foi o bairro de Buenos Aires, próximo de La Boca, lugar originalíssimo, com casas semelhando iglús (habitação de esquimós), de uma cor terracota, que mais me encantou. Sempre trouxera essa música que o celebrizou na memória. O nome do autor vem reproduzido em alto relevo numa das paredes daquelas casas parecendo colhidas de histórias de fantasia. Uma pessoa me disse que a pintura das casas é de tinta de pintar navio.
                                   A música me penetrou os ouvidos desde a infância. No lugar em que morava ecoava de um modo encantatório. E me fascinava. Algum dia teria que conhecer Caminito. Ter a chance de visitar esse bairro foi um dos momentos altos da minha apoucada existência.
                                   Buenos Aires me pareceu uma cidade pouco interessante, ampla, de uma amplidão desmesurada e plana. Ruas intermináveis, que parecem não ter fim. Tem-se a impressão de que se está num lugar onde não há saídas. É o fim do mundo (não no mau sentido, mas no de que se chega a alguma termo do planeta).
                                   Se tivesse que escolher um lugar para morar seria em La Boca. Por que? Ali se está diante de coisas autênticas ou verdadeiras. Uma paisagem real ou tangível, não uma coisa artificial como o resto da cidade, com prédios em estilo europeu, com detalhes muito (como direi?) supérfluos (admito que esta não é bem a palavra desejável no caso ou para definir o que pretendo).
                                   Quando se descobre esse esconderijo de Buenos Aires, como se fora uma pequena jóia engastada numa concha, sente-se, por fim, um alívio de chegar a algo autêntico.
                                   Quando me deparei com Caminito percebi claramente que esse encontro, por fim, se concretizava. Revivi o que a canção despertava na minha fantasia infantil.
                                   Tanto ouvia falar de Buenos Aires, pessoas que já a haviam visitado e me contavam coisas interessantes da cidade.
                                   Falavam-me disso e daquilo, de casas de espetáculo, de paisagens, de restaurantes, de tango (a música local), mas nenhuma referência a Caminito, que foi, a bem dizer, a única coisa que, na realidade, me deslumbrou.
                                   Não tivesse sido Caminito, Buenos Aires teria sido uma decepção.
                                   Cortazar certa vez disse que não gostava de Buenos Aires por lhe passar (passou a mim também) essa sensação de confinamento.
                                   Quando se dá com Caminito, isso desaparece como por encanto.

                                   Caminito é mais que um logradouro, é um poema. O compositor, que tão bem o expressou na letra e música que o imortalizaram, teve uma inspiração, quem sabe, semelhante a minha – e reagiu de forma belíssima, compondo um dos melhores tangos entre todos conhecidos.
                                   “Desde que se fue triste vivo yo
                                     Caminito amigo yo también me voy.
                                      Desde que se fue nunca mas volvió
                                      Seguiré sus passos Caminito adiós”.

                                   A letra e música (registro aqui no fim) é de G. Glória Peñazola, como consta na letra em alto relevo numa das casas de Caminito.

(junho/08)         
                                                




Thursday, September 22, 2016

CAMINHOS DO POEMA - Hamilton Alves


Todos os caminhos levam ao poema
Assim como todos levam ao mar;

O poema, ele mesmo, está ora aqui,
Ora ali, ora acolá,

Num desafio permanente
De seu mistério insondável,

Na busca sem fim que trava
O poeta para descobri-lo;

O grande poema é como
Uma espécie de jóia

Engastada numa concha
Que é preciso encontrar;

O segredo de sua existência,
Só poucos chegam a ele;

O domínio do poema pertence
A seres privilegiados,

Que nasceram com o dom raro
De saber expressá-los.



(poema de Hamilton Alves escrito em novembro de 2008).

Tuesday, September 20, 2016

CALVERO - Hamilton Alves

  
                                              
                                        Quando assistiu ao filme de Chaplin, Luzes da Ribalta, Carlos Drummond de Andrade contou a amigos (ou narrou numa crônica) que do cinema Metro, em Copacabana, até sua casa, na Rua Conselheiro Lafayette, distante seis quilômetros do cinema, fez toda essa caminhada para refletir sobre o tema desse grande filme, um dos maiores do cinema e destaque na filmografia do grande ator e cineasta.
                                       A história se resume no fato de certo dia, quando se recolhe bêbado, como de rotina, a sua modesta pensão, cujos degraus sobe com dificuldade, num quartinho pequeno e despojado, eis que vê uma fumacinha sair debaixo da porta do quarto vizinho. Empurrou-a, derrubou-a e o que constatou foi que, com isso, uma jovem queria por fim à vida. Depois revelou que essa era sua intenção porque estava privada de sua arte, a dança clássica (ballet).
                                        A partir de então, Calvero, que era um artista que passa por uma má fase, sem contratos com produtores de espetáculos, vivendo de coleta pública com outros artistas de rua, passou a se interessar pelo problema da moça, a incutir-lhe na cabeça que o que ela estava fazendo era incompreensível. A vida não sugeria que deve se lhe por fim, era um dom de Deus, e, fosse o que fosse, deveria ser preservada
                                       Paralelamente a essa ajuda prestada à jovem, Calvero acaba se apaixonando que, em relação a ele, tinha idade para ser sua filha. Nunca revelou essa paixão. A moça é que manifestou sentir por rele. Tentou dissuadi-la de tal absurdo sentimento. Ela insistia por convencê-lo que essa paixão não era fruto de gratidão de ter-lhe salvo a vida, mas, sim, de algo verdadeiro, nascido espontaneamente em seu coração.
                                       Calvero volta a tentar exibir-se em pequenos teatros, mas fracassa. Não é o mesmo artista aplaudido de outros tempos. Vê que não tem mais condições de revelar-se o grande Calvero de outros tempos. O desânimo o alcança. A moça agora, revertendo-se os papéis, procura encorajá-lo. Mas parece que Calvero se sente irremediavelmente liquidado. Entrementes, ensaia passos com a jovem no quarto em que mora. Até que um dia têm uma forte discussão. Ela esquece-se, por momentos, de que tem um problema de imobilidade, dá passos em sua direção, pelo que se aproveita para comprovar-lhe que tudo de que padece é uma inibição psíquica, que pode dominar e voltar a dançar.
                                         Os dois voltam juntos, no fim, a um espetáculo teatral. Em certo momento ela dirige-se a Calvero atrás do palco para lhe agradecer por tudo, por seu êxito, por voltar à dança, quando nova crise de paralisia lhe acomete. Ela inibe-se de voltar ao palco. Ele responde à crise aplicando-lhe um tapa no rosto, pelo que retoma seus passos de dançarina. Calvero segue no espetáculo com seu número, no que é delirantemente aplaudido, retomando seus grandes dias de glória. Mas por um acidente ocorrido no palco, vem a cair dentro de uma bacia, e ali fica entalado e vem a morrer à vista da jovem.
                                          O filme resume-se, mais ou menos, a esses dados.
                                          Também eu, a exemplo de Drummond, quando vi esse filme, não digo que, como ele, percorresse um trajeto de seis quilômetros, mas realizei, afortunadamente, uma viagem de carro de Tubarão, onde morava então, até a Ilha, ruminando os lances desse grande e inesquecível filme de Charles Chaplin, que passou à história do cinema como um dos seus maiores momentos.


(Nov/08)                                                                                           

Monday, September 19, 2016

CACOFONIA - Hamilton Alves



não adianta
nada se pode fazer

as palavras necessárias
se escondem

o verso não ecoa
a música não se insinua

nada ajuda
nada se recolhe

pela janela entra a vida
mas de certo modo estéril

nada ressoa
nada vibra

de lá fora vem
uma sinfonia cacofônica

recolhe teus petrechos
e põe-te a caminho



(poema de Hamilton Alves escrito em outubro de 2008 sob o pseudônimo de Otto Nul).

Sunday, September 18, 2016

BORGES - Hamilton Alves



                                   Não conheço toda a poesia de Jorge Luis Borges, e, sim, alguns poemas em que me pareceu ter sido muito bem sucedido. Embora a poesia não tenha sido seu forte. Foi mais feliz escrevendo contos, no que foi um dos melhores do mundo, na linha de Joyce, Tchecov, Hemingway, Kafka e outros desse estalão.
                                   Creio que de toda a poesia de Borges colhi num texto de prosa o seu melhor poema. Claro, para o meu gosto. Segue:
                                  
                                   “Buenos Aires é
                                     Na perdida noite
                                     Uma certa esquina do Once
                                     Na qual Macedônio Fernandes
                                     Segue me explicando
                                     A falácia da morte”.              

                                      Não me lembro onde recolhi esse poema em prosa.
                                      Macedônio Fernandes (todo mundo o sabe) era o amigo dileto de Borges, com quem conversava, aos sábados, dia em que ambos reservavam para esse encontro.
                                       Além de contista, Borges foi também ensaísta de escol. Em toda sua obra nesse gênero destaco “Sete Noites”, que se constitui de sete temas de sua predileção sobre os quais versa ou aprofunda.
                                      Esses temas integraram uma conferência que deu numa universidade dos Estados Unidos, para a qual outros escritores foram também convidados com a mesma finalidade. Ítalo Calvino foi um desses palestrantes, que desfilou seis assuntos palpitantes (eram para ser sete; Calvino deixou para escrevê-lo quando chegasse aos Estados Unidos e nunca o fez. O que foi uma perda para a literatura. O sétimo devia versar sobre o personagem “Bartleby”, de Melville, de sua  novela, “Bartebly, o escrivão”,   que depois editou com o título de “Seis propostas para o próximo milênio”. Devem  ambos (Calvino e Borges) ter produzido noites de gala nessa universidade, tal a beleza da matéria abordada em suas conferências, retratadas nos livros citados.
                                       Não sei que julgamento Borges fazia de sua condição de poeta. Li umas duas ou três entrevistas dadas por ele em que se refere a seus poemas como tendo certo destaque em sua obra.
                                       Particularmente (há quem possa opinar de modo diferente), acho que, como poeta, fracassou.
                                       Escapou esse poema acima transcrito, que menciona seu grande amigo, conversador emérito e pensador puro, que foi Macedônio, figura humana que, como descrita por Borges, deveria ser uma espécie de guru intelectual. Ou coisa semelhante.
                                        Não quero dizer que toda a poesia de Borges tenha sido ruim ou que não tenha boa qualidade. De todo o conjunto de sua poética sobram alguns poemas bem elaborados, mas que não chegam a atingir um alto nível de qualidade.
                                        Nem por isso, destacando-se na prosa, Borges deixou de ser um poeta – e um poeta grandioso. O prosador magnífico que foi bem o revela como tal.



(julho/08)                                                                                

Friday, September 16, 2016

“BOM DIA, TRISTEZA” MUDOU A HISTÓRIA DE SAGAN - da noite para o dia essa obra projetou a escritora à fama, com repercussão nos quatro cantos do mundo - por Hamilton Alves


            “Bom dia, tristeza” foi publicado em 54. Françoise Sagan até então era uma ilustre desconhecida. Nasceu em 1935, na cidade de Cajarc, de família de recursos. Até 1939, antes de estourar a última guerra mundial, a escritora viveu em Paris. Depois, foi para Lyon (com a invasão da França pelos alemães). Françoise, com a família, voltou a Paris com a libertação do país pelas forças aliadas. Ingressou na Sorbonne, mas ali permaneceu por dois anos apenas, passando a dedicar-se, desde então, ao que sempre fora a sua paixão, a literatura. Em 1954, lança esse livro praticamente sem grandes pretenções, narrando a história de quatro personagens, pai, filha e duas amantes do pai, que passando a viver por um período na Riviera francesa, vêm logo a se desentender, separando-se a filha de seu pai. Mas o que parece ter deflagrado, nos leitores, a curiosidade por essa novela não foi tanto seu conteúdo literário, mas o título do livro, “Bonjour tristesse”, que logo provocou resenhas nos jornais da França pró e contra, mais pró do que contra, passando a escritora à projeção internacional, sendo traduzida em vários idiomas. Logo o livro rendeu um roteiro, que foi filmado nos Estados Unidos, que, por sua vezx, deu o que falar, com o bom desempenho da atriz Jean Seberg, que então interpretava um de seus primeiros papéis. Mas de um modo geral, igual ao livro, o filme não chegou a ser uma obra prima. Ganhou mais em notoriedade por motivo do livro, que logo alcançou a lista dos mais vendidos em todo o mundo.
            O nome verdadeiro de Françoise é Françoise Quoirez. Claro que com tal nome não iria muito longe. Nenhum Quoirez conhecido (ou desconhecido) chegaria à glória literária com esse nome horroroso. Daí que teve o cuidado de mudá-lo para Sagan, que é um personagem de Proust, recolhido de “Em busca do tempo perdido”, a pricesa Sagan.
            O livro não deu fama à escritora, como também lhe possibilitou uma vida de certo modo ragalada, resultante do êxito de vendagem em todas as grandes metrópoles mundiais como ainda por direitos autorais para filmagens.
            Sagan, de moça modesta, passou a viver como figura obrigatória da mídia, concedendo desde então entrevistas, sendo fotografada por onde andasse e dando palestras sobre o livro e sobre sua vida (fora e dentro de seu país). Passou a ser, em suam, uma personalidade mundial.
            Mas nem sempre seu livros tiveram idêntico sucesso do primeiro, embora os leitores fossem sempre embalados pela expectativa de que pudessem chamar a mesma atenção de “Bonjour, tristesse”. Mas não foi o caso. Por exemplo, “Dentro de um mês, dentro de um anoconta uma historinha mais ou menos igual a do primeiro, mas não despertou maior interesse que o que lhe deu fama.
            A escritora teve alguns problemas pessoais em sua vida amorosa.
            Nos últimos dez anos (nos dez anos que antecederam sua morte), praticamente se apagou à notoriedade. Ela mesma, ao que parece, tratou de se exilar, porque, segundo se comenta, a fama começou, de certo tempo em diante, a lhe cansar. Ninguém agüenta por muito tempo permanecer no palco do sucesso. Foi o caso de Sagan, que se retirou à periferia de Paris, sendo, de quando em vez, lembrada por um resenhista ou por notícias a seu respeito, mas não mais com a intensidade dos vinte anos, aproximadamente, que se seguiram ao lançamento de sua obra prima, responsável por tudo o que veio a lhe ocorrer depois.
            A escritora veio a falecerpouco.
            As páginas dos jornais parisienses voltaram a se rechear com necrológios de grandes nomes da imprensa francesa, encabeçados por Gilles Lapouge, que lhe dedicou quase uma página inteira de um jornal brasileiro, com matéria traduzida de onde foi publicada originariamente. Lapouge conta o essencial da vida da escritora. E de como, ainda no fim da existência, Sagan era um nome considerado no mundo literário francês e seu livro, vez que outra, merecia citações como tendo sido um dos grandes momentos das letras francesas.
            O fenômeno Sagan, de celebrizar-se com um livro aos dezenove anos de idade, não é tão comum assim. A explicação de Lapouge, para o fenômeno, é de que o título do livro foi tão feliz, tão belo, causando de imediato tanto impacto ao ser lançado, independentemente do conteúdo, que foi suficiente para desencadear, como em tantas outras vezes ou em tantos outros equívocos, o interesse mundial. Embora como referido, a história que se narra é rigorosamente banalíssima.
            Com o sucesso, Sagan aproximou-se dos monstros sagrados das letras francesas, entre os quais pontificavam Sartre e Simone de Beauvoir, além de outros, que a consideravam uma boa amiga, antes de ser uma escritora notável.
            Perdida minha edição desse livromuito tempo, andei a caça dele em sebos, livrarias com bom acervo de obras antigas para recuperá-lo. Minha edição, conseguida logo à primeira edição da obra, era de bom feitio gráfico e me levou a perder uma ou duas semanas para lê-la, um pouco mais velho que Sagan, em torno de meus 25 anos.
            A caça deu bom resultado. Encontrai o livro, não com o mesmo aspecto gráfico, em brochura, numa edição da Record, de 1957. E voltei a repassar as páginas, agora obviamente não com o mesmo ânimo que fez com que lesse aq edição perdida (ou extraviada), pois os tempos mudaram, amadureci, o livro de Sagan não me despertou a mesma avidez da primeira vez que o li.
            Constata-se facilmente que o título valeu pelo conteúdo. Ou o título belíssimo fez a cabeça de uma legião de leitores por todo o mundo. Além disso, a mídia fez o resto, com divulgação “Ubi et Orbi” da novela, que é, a rigor, água com açúcar; nada mais que isso. Lapouge não me deixa mentir.
            Não obstante esse fato, o livro de Sagan, que é uma espécie de ícone literário, continua a figurar em bibliotecas de renome nacional e internacional, assinalando um momento curioso das letras mundiais, de um sucesso que bem poderia ter sido um fracasso, se o título fosse outro. Ou não chamasse, por si próprio, tanta atenção.
            A edição que recuperei de uma livraria de livros velhos está figurando agora em minha pequena biblioteca, de onde o retiro, de quando em vez, para ler duas ou três páginas ou relê-lo de novo.
            Alguns livros conseguem exercer esse fetiche sobre leitores. Ou fanáticos por litaratura. É ocaso típico de “Bonjour tristesse”. Podia citar outros, mas fico nesse como exemplo desse fenômeno inexplicável.
            A personalidade conflituosa e idiossincrática da escritora ajudou muito, também, na projeção de seu livro famoso. Desde o primeiro momento em que foi vista sua figura miúda, de uma expressão facial quase anódina, com ar de “pequena rebelde”, o mundo apaixonou-se por Françoise Sagan. E ela passou, durante anos, a ser alvo da curiosidade de todos, que a tornaram célebre ainda mal despertando para as primeiras experiências da vida.
            Claro, Sartre e Simone de Beauvoir devem ter gostado mais dela do que de sua obra famosa, mas por delicadeza, de certo, nunca lhe disseram isso.
            Quem quiser passar algumas horas sem maior compromisso, para dar-se um pouco de descanso, recorra a “Bonjour tristesse”. É um bom remédio para a melancolia, por exemplo.



Thursday, September 15, 2016

BIANCHON - Hamilton Alves




                                   Bianchon é um personagem de Balzac, que se destaca em algumas de suas narrativas (integra uma das mais importantes conhecidas, “O pai Goriot” - Bianchon frequentava a pensão da sra.Vauquer; a esse tempo, era estudante de medicina).
                                  
                                   É conhecido o fato de que, quando estava morrendo, Balzac mandou chamar, não um médico famoso de Paris, mas o seu personagem Bianchon, tal era a confiança que lhe depositava. Ou como se Balzac tivesse inventado criaturas nas quais tivesse insuflado vida. Na verdade, suas personagens dão, muitas vezes, a impressão de pessoas de carne e osso.
                                   Oscar Wilde, a respeito de “As ilusões perdidas”, declarou que, quando Lucien de Rubempré morreu, pareceu-lhe ter perdido um ente muito querido, tanto o fato lhe causara grande consternação.
                                   Há, assim, personagens que da mera ficção passam à realidade e convivem conosco no dia a dia.
                                   Certa vez, sonhei com Madame Bovary, com quem me dirigi a um restaurante, despertando admiração dos comensais. Tivemos que sair rapidamente do local, dado o extremo constrangimento de Emma de ser surpreendida pelo marido, Carlos Bovary.
                                    Citei esse episódio num conto em meu livro “Três cisnes de vidro”.
                                    Quando penso nela não o faço como uma personalidade de novela ou romance, mas como se fora vivente, que pode perfeitamente, súbito, atravessar a mesma rua que os humanos.
                                    Acho que esse era mais ou menos o tipo de obsessão de Balzac com seu grande personagem, Bianchon, ao chamá-lo para o atender na última hora, confiado em sua perícia profissional mais do que poderia crer na capacidade de outro médico.
                                   No caso de Emma, aqui relatado, qual a relação que pode ter o sonho e a realidade, sendo que não raras vezes o sonho permeia a realidade ou esta àquela. O que é, afinal, a realidade senão um sonho? Ou um sonho que não tenha sua aparência de coisa real? Em que, na verdade, se distinguem?
                                   Lembro-me de um sonho que se retratou tão fielmente na vida real que fui levado a formular essa pergunta: “que tem a ver o sonho com a realidade?”
                                   Entre o real e o ficcional (ou o sonhado) há uma linha tão difusa ou tão pouco distinta que difícil é estabelecer a diferença entre uma e outra.
                                  Assim, era a confiança que Balzac depositava em Bianchon, a criatura ficcional, que, para ele, existia na realidade. – e era o único que, na hora mais decisiva, poderia lhe conceder o remédio salvador. Ou resgatá-lo das garras da morte.
                                  E, para a literatura, evidentemente, isso é mais um ganho.
                                   Precisamos dela, como dizia André Maurois (biografia de Charles Dickens), como um universo de socorro. A vida que se colhe na ficção tantas vezes serve-nos como guia ou suporte. Para citar o exemplo máximo, “Don Quixote, o cavaleiro da triste figura”, salta de uma história de cavalaria como sendo a maior figura moral do ocidente. Foi com base nele que o ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, Santiago Dantas, ditou o princípio de que “a doação de si mesmo resolve o problema do destino”.
                                   Don Quixote, Bianchon, Madame Bovary de criaturas de ficção passam à existência comum das pessoas reais.