Tive a felicidade de conhecer Mário
Quintana, já bastante idoso, num apartamento em Porto Alegre , no Hotel
Royal, no centro da cidade, que Roberto Falcão, o ex-craque da seleção brasileira
e ora comentarista da Globo, lhe emprestou para morar enquanto vivesse. Pouco antes fora despejado de um imóvel
pertencente à prefeitura.
Foi ali numa certa tarde que o
procurei, com um livro de crônicas à mão, em busca de editor. Não cheguei a
mostrar-lho. Recebeu-me afavelmente. Era uma figura simpaticíssima, vivendo
sozinho nesse apartamento, assistido por uma secretária que, quando cheguei ao
local, lhe preparava um lanche.
As paredes desse apartamento eram
forradas de livros. Junto a uma delas uma cama, sobre a qual notei um quadro de
muito mau gosto. Talvez a pintura não fosse uma eleição de Quintana. Ou ele nem
ligava para isso.
Conversamos cerca de uma hora.
Quando lhe falei de meu livro e da
dificuldade de editá-lo, comentou:
- Os editores sempre criam
dificuldades para editar livros, mas no fim acabam editando.
Antes de conhecê-lo ouvira muitas
histórias a seu respeito, uma das quais contada por um amigo, que morou com ele
numa pensão em Porto Alegre.
Quintana sempre chegava tarde à pensão e, em geral,
embriagado. Numa dessas noites, os hóspedes da pensão tiveram sua atenção
despertada para um cheiro de fumaça. Quando
deram pelo motivo da fumaceira, constataram que um cigarro esquecido por
Quintana em sua cama incendiara o colchão e, por pouco, não morrera sufocado.
O convívio com Quintana nessa
pensão, na versão desse amigo, era muito ameno. Quintana era um homem de pouca
fala, solitário. Durante o dia ninguém o via. Vinha à pensão para dormir. No
resto do dia, ficava no jornal onde era redator. Na editora Globo marcou época
como tradutor. Foi essa editora, por obra de Quintana, uma das primeiras (se
não foi a primeira) a divulgar os grandes clássicos da literatura mundial,
como, por exemplo, “Em busca do tempo perdido”, de Proust, que tem três dos
sete volumes traduzidos por ele.
No jornal onde trabalhou por muitos
anos, Correio do Povo, que hoje não é nem a sombra do que foi, um dos melhores
do país então, mantinha aos domingos uma página, o famoso Caderno H, onde
publicava seus poemas.
Perto do fim da vida (morreu com
oitenta e oito anos), ele que sempre fora esquivo ao ingresso em academias,
como fora igualmente seu velho amigo Érico Veríssimo, que até o fim resistiu à
tentação de vestir o fardão, aceitou concorrer a uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras, disputando-a com ninguém menos que José Sarney, que,
claro, não tinha dado a contribuição de Quintana à cultura brasileira. E, como
poeta, produzira um único livro, com o título “Marimbondos de Fogo”, com uma
bagagem pequena e modesta. Mas foi o ungido dos acadêmicos para surpresa geral.
Prevaleceu a diferença de projeção política entre um e outro. Sarney, pouco
antes, fora Presidente da República, graças à fatídica morte de Tancredo Neves.
Foi convidado a participar de nova
eleição, mas dessa vez, escarmentado com a decepção do primeiro revés, Quintana
considerou que a academia não era propriamente um lugar que lhe fosse
condizente com sua vida simples, apanágio de toda a sua vida.
Claro, Quintana não perdeu nada em
não ter ingressado na Academia, esta, sim, ficou mais pobre por não tê-lo entre
seus pares.
Travou amizade com os poetas mais
notáveis de seu tempo, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, que
lhe dedicou um poema e, ainda, Paulo Mendes Campos, que, quando morou por uns
tempos em Porto Alegre ,
fez uma entrevista com ele, publicada na revista Manchete.
No encontro que tivemos em Porto Alegre me
dedicou um de seus livros, que até a pouco ainda conservava, mas que sumiu como
tantos outros. Havia ali um poema muito bem estruturado que, certa vez, ouvi
declamado pelo ator Lima Duarte num programa da Globo.
Quintana era um homem de porte
franzino, baixinho, meio calvo ou com uma calvície acentuada pela idade.
Parecia um passarinho. Movia-se com facilidade de um lado para outro em seu
apartamento.
Nossa entrevista foi parca.
Fiz-lhe poucas perguntas. Respondia
sempre com muita simpatia, sem dar-se a menor importância.
Não lhe falei da minha condição de
jornalista nem lhe comuniquei que podia algum dia transformar os dados daquele
encontro numa resenha de jornal, como o faço agora. Tudo que lhe confessei foi
que levava comigo um livro de crônicas para encontrar editor em Porto Alegre , já que,
por aqui, à época, isso era difícil.
Não falou de si, de sua obra nem de
nada que de longe transpirasse literatura ou poesia.
Tudo se resumiu a coisas do momento
ou assuntos do dia-a-dia.
Nem sei como abriu as portas de seu
apartamento para receber-me. Não me conhecia, nada sabia de mim. Apresentei-me
como um escritor que queria conversar um pouco com ele. Esse foi meu abra-te
sésamo.
Também não sentamos um em frente do
outro para conversar. O diálogo pouco e seco se fazia enquanto rodopiava pelo
espaço modesto do apartamento, com a secretária de permeio.
Não houve também despedida.
Nem me formulou convite para voltar.
Nem houve qualquer outro tipo de etiqueta. Tudo se passou de forma muito
simples, como ocorre em geral entre duas pessoas que pouco ou nada se conhecem.
A única nota calorosa foi a
dedicatória que me fez no livro de poemas com que me presenteou.
Do encontro com Quintana fui
procurar Moacyr Scliar, numa repartição do governo, onde exercia o cargo de
médico sanitarista. Mostrei-lhe os originais do livro. Fez boa referência da
crônica/título, “A mosca azul”.
Não sou grande conhecedor da poesia
de Quintana. Mas tudo que conheço dele (ou desse pouco) leva-me a crer que tem
uma boa bagagem de poemas, que justifica seu prestígio de poeta e a admiração
dos poetas já referidos (Bandeira, Drummond e Paulo Mendes Campos).
Há pouco, voltei às páginas de “Baú
de Espantos”, uma antologia de seus poemas editada pela “Record/Altaya”.
Segue-se um dos poemas mais fortes
dele:
“O sono é uma viagem noturna:
o corpo – horizontal – no escuro
e no silêncio do trem, avança,
imperceptivelmente avança...Apenas
o relógio picota a passagem do
tempo.
Sonha a alma deitada no seu ataúde:
lá longe
lá fora
no fundo do túnel,
há uma estação de chegada
(anunciam-na os galos agora)
há uma estação de chegada com sua
tabuleta ainda
toda orvalhada...
Há uma estação chamada...
AURORA!”