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Friday, December 30, 2016

O DECADENTE TEATRO DE IBSEN (a voz geral - que ressoa no mundo todo - é que o teatro de Ibsen, (de que se comemora este ano o centenário de morte) para o nosso tempo, está ultrapassado) (por Hamilton Alves) *



Li há pouco, em “As obras primas que poucos leram”, que vem sendo editado pela Record com bastante sucesso, um trabalho de Otto Maria Carpeaux, envolvendo o teatro de Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês, em que faz a apologia desse teatro,  entendendo que não está assim tão fora de época como quer uma certa crítica, tanto é que, só para citar um exemplo, “Casa de Bonecas” marcou época no teatro mundial e, neste país, consagrou-se com a interpretação de Tônia Carrero da personagem Nora, o que também marcou grande êxito na carreira dessa atriz.
Por coincidência, foi a única peça de Ibsen que li. Sua obra prima teria sido “Hedda Glaber” e, também, com igual repercussão, “Peer Gynt”. Ibsen, em seu tempo, foi um autor que atingiu o maior destaque internacional, seguindo de perto a linha das tragédias shakespeareanas. Embora, evidentemente, o teatro de Shakespeare esteja, em múltiplos sentidos, num nível de maior grandeza em relação ao de Ibsen. 
A história de “Casa de Bonecas” foi um despertar da consciência feminina de uma espécie de condição de serva do lar ou doméstica, no desempenho estrito desse papel, submetida às ordens tirânicas do marido, na forma como até então era (e é) concebido o casamento de tipo burguês. Nora casou-se e foi infeliz. Essa história pretende ser uma repetição de muitos outros casos semelhantes de mulheres que não conseguiram se realizar no casamento ou para as quais a vida conjugal, a partir de certo momento, começa a ser um pesadelo, não restando outra saída, devido à pressão social (reinante naquela época), do que a sujeição à ordem das coisas.
Foi a partir dessa consciência que se iniciou, em toda parte, o “Women Lib” (ou o movimento de libertação da mulher), que preconizava e preconiza, ainda agora, a insubmissão da mulher a um estado de coisas que não mais se compraz com seus sonhos de ser emancipada.
Carpeaux cita que, num bar de Munique, na Alemanha, para onde se mudou, depois de viver um largo período em seu país natal, onde só colheu fracassos no início de sua carreira de dramaturgo, Ibsen se recolhia a um canto e ali ficava a colher o noticiário dos jornais, notoriamente o que se referia a problemas de toda ordem  no âmbito da sociedade, colhendo farto material para compor suas peças. Morto Ibsen, o lugar passou a se constituir atração turística. Um velhinho muito parecido com ele fora contratado para ficar no mesmo canto por quatro horas diárias para atrair a atenção de curiosos.
O repertório de peças de Ibsen é bastante numeroso, destacando-se a que Carpeaux refere com um dos seus grandes momentos, “Espectros”, que, no dizer dele, se constitui de personagens secundárias, que aparecem imprevistamente no palco e muitas vezes representam o traço de suas tragédias, trazendo à tona seu passado terrível, que se projetam como sombras macabras em suas vidas.
De Ibsen vi uma única peça encenada: “O construtor Solness”, que Carpeaux diz ser um título equívoco, pois o correto é “O arquiteto Solness”. Não vejo grande diferença entre “Construtor” e “Arquiteto”. Daí não entender muito o motivo porque destacou o fato. O personagem principal foi interpretado por Paulo Autran. Não gostei da peça. Pareceu-me monótona, tendo Autran se esforçado para torná-la interessante.
Passado por essa experiência com o teatro de Ibsen, com uma peça lida e outra assistida, adquiri um livro contendo suas peças, com exceção das mais famosas, “Edda Glaber” e “Peer Gynt”. Mas as duas conhecidas me foram suficientes para concluir que o teatro de Ibsen não corresponde mais à estética destes tempos. É um teatro que é feito em cima da realidade social, daí chamar-se de realista, que Carpeaux considera que “não é tão realista assim”.
Um pouco depois do desaparecimento de Ibsen, cuja morte ocorreu em 1906, quando já se esboçava na Europa o movimento modernista, surgiu o teatro do absurdo (como consequência da guerra de 40), com nomes de vanguarda no teatro, como Albert Camus, Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Harold Pinter (este um pouco mais tarde), entre outros, que mudaram completamente o estilo e as características do teatro.
A partir de então, embora surjam aqui e ali (ou ainda apareçam ainda hoje em alguns palcos do mundo), as peças de Ibsen contêm, como não poderia deixar de ser, um teor meio bolorento ou francamente superado. Para alguns diretores tem sido um verdadeiro suplício encená-las. Mesmo tratando-se de uma obra consagrada em todos os tempos como “Casa de bonecas”. Apesar de tudo, conserva um bom traço de reflexão sobre a tragédia da família moderna, ainda agora atingida pelos mesmos problemas que são ali retratados. Os dramas conjugais continuam praticamente os mesmos da época em que Ibsen criou seus personagens.
Particularmente, achei o tema de “Casa de bonecas” meio insípido ou inverossímil. Carpeaux tem, por essa peça, ao que parece, especial simpatia, tendo sido ele, na sua performance na imprensa, um indisfarçável adepto de todos os movimentos libertários.
Mas mesmo esse valor emancipatório, que empreende Nora (a personagem de “Casa de bonecas”), me parece meio ilusório e até superficial, pois afinal de contas não se descobriu a fórmula da felicidade absoluta. Dizia Tolstoi – no romance Ana Karenina, que trata de questão semelhante – que “é um eterno equívoco se julgar que a felicidade  é a satisfação de todos os desejos”. Embora seja válida a forma pela qual Nora se bate pelos direitos da mulher. Porém, no plano filosófico puro, a discussão fica em aberto. Toda a peça, em suma, repousa, a meu ver, em falsas premissas e acaba, no fim, se tornando uma expectativa fraudada para quem espera colher dela uma receita infalível para vencer todas as dificuldades da existência, mesmo que tais dificuldades se restrinjam especificamente ao âmbito da família.
Não pretendo dizer que o teatro de Ibsen (como qualquer outro autor de seu ou de outros tempos, Bernard Shaw, Gorki, Pirandello, Gogol, Tennessee Williams, Arthur Miller e outros de escolas parecidas), esteja acabado. Há público para tudo.
Quem não gostaria de ver, nos palcos, novamente, Tonia Carrero interpretando Nora com sua classe, maestria e versatilidade de grande atriz? Não se perderia um tal espetáculo, embora as restrições que se lhe pudessem fazer de ser datado ou de não corresponder mais à linha desta época.
O teatro do absurdo, por sua vez, vai caminhando para o mesmo destino, não obstante Ionesco e Beckett serem ainda sucesso em qualquer palco do mundo, com foi o caso recente da encenação de “Fim de partida”, no teatro do CIC, com Edson Celulari e Cacá Carvalho revezando-se no papel de Clov e Hamm, num espetáculo de rara beleza cênica. 
Há quem pense que, dentro de mais algum tempo, o teatro será uma linguagem esgotada (como, de resto, a de outras expressões de arte). Ou a profecia da morte da arte é dada como certa. Mas a arte reagirá a todas as crises, renascendo das próprias cinzas como uma nova fênix.

Wednesday, December 28, 2016

O CARANGUEJO DE PRAIA - Hamilton Alves




uma criatura absurda
apareceu certa feita
à praia saído
de um buraco na areia.

era impossível concebê-lo
como vivente;
era feito somente
de cartilagem,

com duas antenas sobre
essa estrutura
bem organizada
porém frágil

nas quais despontavam
dois pontos pretos
à semelhança de olhos
que a tudo espreitavam.

percorria pequeno trecho
como se procurasse
examinar a área
em volta;

qualquer ruido
por menor que fosse
provocava-lhe logo
o pânico,

levando-o a procurar
o buraco donde provira,
mas entre nós logo
formou-se boa amizade.

por muito tempo
ficamos um próximo
ao outro nessa contemplação
mútua e muda.

(poema de Hamilton Alves escrito em setembro de 2006 sob o pseudônimo de M. Hohl).











Monday, December 26, 2016

O BÊBADO AZUL DO DESTERRO (livro de Ilmar Carvalho, misto de crônicas e contos, concretiza o sonho do escritor/melômano de ver-se, finalmente, editado). (por Hamilton Alves)*


            Depois de trilhar uma longa caminhada no jornalismo (exerceu-o desde a adolescência), como cronista, contista e crítico musical, na condição do que pontifica com artigos no Jornal do Comércio, do Rio, Ilmar Carvalho vê, por fim, realizado o grande sonho de editar um livro, “O Bêbado Azul do Desterro”, que, como ele me disse há pouco, num papo telefônico, reúne suas melhores crônicas e os poucos contos que escreveu durante seus quase oitenta anos. O forte de sua produção literária são seus artigos sobre música, desde a popular até a erudita, no que se tornou um dos poucos especialistas. Agora mesmo brindou esta folha com um trabalho sobre o violoncelista Antonio meneses, que, além de outras execuções famosas, vem de gravar as seis suítes de Bach, no que foi tão bem sucedido (segundo Ilmar) quanto Pablo Casals, o maior violoncelista conhecido até hoje no mundo e reconhecidamente o que conseguiu a melhor execução da obra referida.
            Poucos cronistas têm ou escreveram uma crônica referencial. Ou aquela que todo mundo cita porque de alguma forma entrou até no folclore popular. Apesar de não ser muito prolífero na qualidade de cronista, perpetrou uma sobre a qual, em conversas literárias, vem sempre à baila: “Da vantagem de ser jovem no Estreito”, que foi um marco na obra de Ilmar. A outra não precisa nem mencionar, pertence a Rubem Braga, “Eu e bebú na hora neutra da madrugada”, que, igual à de Ilmar, todo mundo conhece, cita e é capaz de conhecer trechos de cor, como foi o meu caso, há algum tempo, quando os dizia para amigos.
O volume, que deverá ser lançado no próximo dia 21, em Joinville (terra natal de Ilmar e onde viveu, como não poderia deixar de ser, os momentos culminantes ou marcantes de sua existência quase octogenária), tem oitenta páginas e foi editado pela editora “Letradágua”, de Joinville. Quem a dirige é Joel Gehlen, que não faz muito editou o “Anexo”, encarte cultural do jornal “A Notícia”, que teve, com ele, sem dúvida, seu melhor período. Amigo de Ilmar, quando soube que este reunia as crônicas e contos para uma futura publicação, propôs-se a fazê-lo, com o que Ilmar concordou. Mas até que a obra fosse concluída decorreram alguns anos. Nos contatos com Ilmar lhe cobrava a edição de seu livro. Vinha com a mesma lenga-lenga de que tinha entregue os originais para o Gehlen e o Alemão (apelido de Gehlen) não dera ainda o ar de sua graça, de tal modo que nem mesmo ele saberia dizer quando se dariam por editados.
Soube de amigos íntimos de Ilmar sua pouca ligação com projetos de divulgação do que faz. A editora da UFSC, em certo período, colocou-se à disposição para editar o livro que ora será lançado. Ou até o que havia escrito em jornais sobre música. Tem uma vastíssima produção sobre esse tema. E das mais preciosas, como o reconhecem pessoas que privam de sua amizade, inclusive Salim Miguel, que conhece mais de perto o problema do Ilmar de editar ou não ser editado, de tomar ou não a iniciativa para a levar a bom termo a publicação do que escreve. Não obstante receber aprovação, por antecipação, da edição desse material, Ilmar nunca o enviou à editora da UFSC. Por que? Ninguém sabe. É de seu temperamento. É um escritor que produz com até relativa facilidade. Mas é complicado chegar ao livro impresso. Há quem tenha um convívio mais próximo de Ilmar (como é o caso citado de Salim Miguel, que com ele conviveu no Rio durante a temporada em que lá morou) e o que comenta, entre amigos, é essa inclinação do Ilmar, não muito bem explicada, para não comer o bolo qunado lhe foi dado de mão beijada.
O primeiro a receber (também prefaciou-o) “O Bêbado Azul do Desterro” foi seu velho amigo Salim. Em seguida, mandou-lhe o recado de que as crônicas e os contos lhe tinham impressionado favoravelmente. Não era a crítica do amigo, mas o comentário do crítico.
Dos trabalhos editados, conheço apenas dois, o já mencionado “Da vantagem de ser jovem no Estreito”, que é inegavelmente uma página e meia antológica, e outro, publicado no “Anexo”, de também duas páginas, que tenho guardado em arquivo, que já quis publicar com sua antologia de contos, com a autorização prévia do Ilmar (consultado antes de qualquer outro dos integrantes dessa eventual antologia), “Joinville dos 40”, que se refere a reminiscências do escritor da época de ouro em que viveu em Joinville, ali cresceu e conheceu as primeiras experiências da vida.
Falei com ele há dias sobre o livro. Brincalhonamente, disse-lhe:
- Até que por fim o pariste?
- Vou lançá-lo em Joinville, mas farei, sem data ainda marcada, lançamentos em Florianópolis e Rio.
- Quantos exemplares são?
- Mil.
Deu-me detralhes gráficos do livro. A ilustração de capa foi feita por Luis Gustavo Meneghin. Ilmar considerou-a muito boa. A capa é em branco com a ilustração em azul tomando 2/3 dela. Fez-me lembrar a primeira edição de Ulisses, de Joyce, que tinha as mesmas cores (referência de Sylvia Beach, em seu livro, há pouco editado pela “Casa da Palavra”, “Shakespeare & Companhia – uma livraria na Paris do entreguerras”.
Houve um momento que Ilmar mostrou-se desanimado quanto às possibilidades de edição do livro. O Alemão não lhe dava notícias da edição. Passou um bom tempo sem a menor informação do andamento ou a fase em que se encontrava. Até que há pouco surpreendeu-o com a notícia de que a fase final estava concluída, recebendo quatro exemplares, um dos quais presenteou ao Salim, o que foi facilitado pela presença desse escritor no Rio, onde foi participar da Bienal do Livro e para outros fins.
Cobrei o meu.
- O teu tens que esperar um pouco, pois os quatro que o Alemão me mandou sumiram. Só fiquei com um.
Não é preciso dizer que, ainda que não possua o livro, nem possa por isso ainda julgá-lo, “O Bêbado Azul do Desterro”, título de uma das crônicas, vem chancelado com a reconhecida qualidade do texto de Ilmar. Tanto na sua obra literária quanto na crítica musical, a marca do Ilmar é a do esmerado tratamento de seu trabalho (ainda agora tivemos oportunidade de verificar isso no artigo sobre Antonio Meneses, que é rigorosamente bem realizado).
O título do livro dispensa comentário e revela também seu bom gosto.
A estréia de Ilmar (e ele o faz um pouco tarde, quando, como dito, vai beirando a casa dos oitenta) deve ser, por tudo isso, muito bem acolhida e acredito no êxito antecipado do lançamento do livro nas praças referidas (Joinville, Florianópolis e Rio), onde, não fosse pelo bom nível das crônicas e contos, já conhecidas algumas delas, seria pelo fato de que tem uma legião de amigos, que certamente vão prestigiá-lo em todos esses eventos (palavra que, diga-se “en passant”, ele detesta).

  

Tuesday, December 20, 2016

NEM CERTEZAS... Hamilton Alves




nem nada
resta apenas
um sonho
para anular

a dúvida que me assaltou
quando mal
percebia se desenrolar
a tola parábola

de um quimérico
teorema filho
de todo o noema
enigmático

atroz mentira
por trás da fantasia
ou vãs certezas
que não levam a nada.



(poema de Hamilton Alves escrito sob o pseudônimo de Max Hohl)

Monday, December 19, 2016

MARLEY, O WILL EISNER TUPINIQUIM (desenhista exímio, realizou há algum tempo a façanha de transformar em quadrinhos uma crônica de Flávio Cardozo) (por Hamilton Alves)


            Sérgio Augusto, num recente artigo publicado na BRAVO!, declarou que o substituto (ou sucessor) de Eisner, nos quadrinhos, é Art (Arthur) Spiegel. Ele diz isso (logo pensei) porque não conhece os desenhos de Marley Tânis Cardoso, um oficial da Polícia Militar, profissão que abraçou para ter o direito de viver dignamente como todo mundo, mas cuja vocação é o desenho. E nisso Marley é tão bom quanto Eisner (que o diga Tércio da Gama que é seu sogro, Flávio Cardozo, de quem narrou uma crônica em quadrinhos ou Silveira de Souza, que fez os balõezinhos da história).
            Alguém, vendo os desenhos de Marley (acho que foi Tércio) – disse-lhe que tinha muita semelhança com os de Eisner. A essa altura, Marley não sabia da existência de Eisner nem que fora autor de uma história policial (ou de um herói de história em quadrinhos), The Spirit, com a qual obteve sucesso praticamente em todo o mundo. No Brasil, a partir de certo tempo, tornou-se coqueluche, a ponto de Spirit ser o herói preferido de grande número de aficionados desse gênero de literatura.
            Informado da existência de Eisner, Marley procurou, desde então, aprofundar-se em seu trabalho, até que trocou duas ou três cartas com o famoso artista americano. Sabia que de alguma forma Marley tinha entrado em contato com Eisner, mas sua mãe, esposa de Tércio, num dia desses, me contou a respeito das cartas trocadas por ambos, em que Eisner disse a Marley que seu trabalho era muito bom e que devia continuar a produzi-lo.
            Mas a não ser a crônica de Flávio, que narrou com belos quadrinhos (tão esmeradamente desenhados como o próprio Eisner o faria), parou sua atividade. Esteve envolvido num concurso público para o cargo de oficial da Polícia Militar.
            está hoje brilhando. É assessor jurídico do Comando do Corpo de Bombeiros.
            Bem sucedido funcionalmente (sua meta é ser Juiz ou Promotor), mas seu lado artístico apagou-se ou está provisoriamente apagado.
            Pretende voltar ao desenho. Ou, na verdade, nunca deixou de desenhar. Nas horas vagas, de ocium cum dignitataem, desenha. Não de forma narrativa, mas desenha qualquer coisa que lhe pedem. Ou lhe vem à cabeça.
            É claro que Desterro não é lugar (ou o espaço) adequado para uma carreira de artista.
            Ricardo Hoffmann, certa vez, conheceu um guru, que lhe recomendou:
            “Se você quer ser escritor não é aqui que você conseguirá sucesso”.
            Ricardo preferiu ficar na Ilha, mesmo certificando-se, de antemão, que poderia fazer uma trajetória de gênio, que não lhe dariam a mínima. É ao que estão condenados pequenos e grandes artistas. quem conseguiu se salvar desse triste fadário foi Cruz e Souza. Mesmo assim teve de penar pelo Rio e pelo interior de Minas, de onde veio de trem de volta ao Rio, morrendo, ao que se conta, no curso da viagem. De miséria ou de fome. Ou das duas coisas. A tuberculose o matou. A doença foi fruto de suas privações. Foi tarde demais que se reconheceu nele o maior simbolista do País. Roger Bastide o considerava do nível dos grandes simbolistas do mundo.
            Mas voltemos ao Marley.
            Deu-me uma cópia de seus quadrinhos (ou da história sobre uma crônica de Flávio Cardozo). Quando me deparei com esse trabalho, fiquei simplesmente pasmo. Era a nova versão de Will Eisner.
            um grande artista como Eisner teria habilidade para desenhar essa narrativa (veja-se ilustração).
            As figuras de Marley são estonteantemente belas. Não foi à toa que Eisner lhe respondeu as cartas e lhe previu um futuro radioso no caso de seguir sua vocação artística. Não fora isso, Eisner, obviamente, não lhe redigiria uma única linha. Não perderia tempo com quem não revelasse talento.
            Mas que é que sabe, entre nós, desse feito de Marley? Alguns gatos pingados, como sempre.
            Ele sabe que, confinado à Ilha, não terá a menor chance de impor sua arte. Ou ganhar a vida com ela. Ainda que venha a colaborar num jornal (mesmo de outro centro), estará condenado a ser contemplado comcachêsridículos, como é notório ocorrer com outros artistas.
            Sair da PM para um futuro incerto nos quadrinhos não lhe desperta o ânimo. Mais vale um pássaro na mão que dois voando, é o sábio.
            Mas há outro que ensina: “quem não arrisca não petisca”.
            De uma certa forma, nascemos numa das cidades mais belas do planeta (a Ilha de N. S. do Desterro, desgraçadamente chamada ainda de Florianópolis: Floriano Peixoto é alagoano. Mandou para , no início de seu governo, Moreira César para matar nossa gente, inclusive um bisavô meu, José Liberato Bittencourt), mas pouco desenvolvida do ponto de vista cultural.
            De modo que, por aqui, não haverá muita chance para um artista da envergadura de Marley. A prova disso é que tem sido até agora um ilustre desconhecido. Fez uma única historinha em quadrinhos (a crônica referida do Flávio) e depois disso recolheu-se ao silêncio. Ou ao olvido.
            Como abrir-lhe uma porta para que, de novo, mostre seu trabalho?
            Como fazer circular sua HQ mencionada, em que se mostra ao nível de Eisner?
            Haverá quem se interesse em abrir-lhe espaço?
            Garanto que Marley faria muito sucesso.
            Enquanto a sorte não o bafeja, Marley, formado em direito, tenta abrir espaço como oficial da PM e, mais tarde, quem sabe, nos quadros da Magistratura ou do Ministério Público.
            A não ser que tome coragem, como tantos outros, que resolveram seguir seu destino nem que fosse comendo o pão que o diabo amassou, e procure cantar em outra freguesia, Marley, a meu ver, seguirá uma carreira burocrática, em detrimento de seu grande talento de artista.

Sunday, December 18, 2016

MÁRIO GENTIL COSTA, UM ARTISTA DE ALTO NÍVEL (trabalhando sozinho e anônimo, Mário produziu uma das obras mais ricas conhecidas entre nós) (por Hamilton Alves)*


            pouco, casualmente, (não me ocorre como nem de que forma) tive acesso à obra plástica de Mário Gentil Costa, que é conhecido médico otorrinolaringologista dos mais conceituados da praça.
            Tudo começou, ao que me parece, de um encontro fortuito entre nós através de um amigo comum. Travamos um rápido papo. Mário tomou-me o endereço eletrônico, desejoso, ao que me disse, de mostrar-me seu trabalho de pintor e entalhista (escultor).
            Nesse encontro, externou sua perplexidade pela forma ou estilo de redação de prestigiado escritor brasileiro, atribuindo-lhe incompreensível desatenção aos sinais de pontuação, notoriamente vírgulas e ponto e vírgulas, que, no dizer dele, eram escassos ou inexistentes em seu texto.
            Pelo que retruquei que pontuação falha decorre às vezes (ou quase sempre) não de desatenção mas de determinação propositada de muitos bons escritores. E que a pontuação nem sempre tem a ver com a qualidade de um texto ou que este pode perfeitamente sobreviver sem um rigoroso respeito às regras de pontuação. Citei como caso típico o final de Ulisses, de Joyce, em que no curso de mais ou menos cinqüenta páginas (monólogo de Molly Bloom) não se nota um único sinal de pontuação. Ainda citei outros exemplos dignos de referência.
            Mas Mário fixou-se rigorosamente a tais regras e não perdoa a quem, de forma proposital ou não, passar por cima delas.
            Não adiantou meus argumentos nem a citação de um caso como o de Joyce, um dos mais eminentes escritores conhecidos e autor de uma obra que até hoje é considerada entre as maiores da literatura universal. Mário não abre mão nem precedente no tocante ao assunto. Não se colocou vírgula ou ponto e vírgula nos lugares devidos, o texto de forma alguma passa por seu crivo.
            Não chegaríamos jamais a um acordo em nossa maneira de visualizar a literatura, eu tendente a mais ampla liberdade na construção da frase, ele conservadoríssimo sob esse aspecto.
            Até hoje, em desacordo total quanto à questão, continuamos, sem parar, a troca de correspondência eletrônica. Creio que vai a um volume respeitável, trocando opiniões ora sobre literatura, ora sobre pintura ou sobre o que pinta eventualmente.
            Até que em certo dia me mandou inúmeras mostras de seu trabalho de pintor e entalhador.
            Não esperava de sentir forte impacto quando o examinei, mesmo no reduzido e pouco propício espaço de uma tela de computador, em que, obviamente, um trabalho plástico fica muito distante de retratar-se em todas as suas nuanças.
            Combinamos uma visita ao local onde mora para vê-las de perto. Fiquei tomado de interesse por seus quadros ou talhas, pois me pareceram bem trabalhados, como se fossem de autoria de um mestre consagrado.
            Informou-me que morava num apartamento no 11º andar de um prédio no centro da cidade. Pelo que, de pronto, descartei a possibilidade de visitá-lo por motivo de minha velha acrofobia. Disse-lhe que padecia do mesmo mal que atacara Scott, o policial de “Um corpo que cai”, de Hitchcock.
            Não chegamos a combinar outro local para o encontro.
            Até que surgiu, inesperadamente, um convite do poeta C. Ronald para um almoço em sua casa de Biguaçu, em que ambos (eu e o Mário) fôramos convidados. Ele levaria um exemplar de um quadro de pintura e outro de entalhe. Eu levaria uma crônica do escritor que ele abomina por não saber, no dizer dele, colocar vírgulas e ponto e vírgulas nos lugares devidos.
            Como me disse depois, levou os dois trabalhos a medo, na suposição de que, vistos sem a intermediação do computador, não os apreciasse. Ou não me mostrasse tão entusiasmado quando os vi pela primeira vez.
            Manifestei-lhe o mesmo receio: “Vai ver, vou examinar de perto os quadros e (decepção das decepções) agora constatarei que não valem um níquel”.
            O impacto agora foi mais forte.
            Simplesmente pela constatação de que, vistos ao vivo, eram, inegavelmente, mais belos, mais expressivos e, como deduzira da primeira vez, revelavam um artista maduro.
            Tomado de paixão por ambos os quadros, como é rotineiro comigo quando me deparo com obras de igual valor, propus-lhe adquirir um ou outro. Mas Mário ouviu-me, primeiro surpreso, depois indiferente, como se o preço que lhe fosse oferecido era insignificante diante do amor que tem por eles. À pintura deu o título de “Amadeus”, em homenagem a Mozart. O quadro, embora de teor abstrato, tem alguma relação com a música, mostrando uma clave de sol e as teclas de um piano, envoltos em traços harmônicos, tão harmônicos como se retratassem uma sinfonia.
            No dia anterior a esse encontro, tive acesso a uma das obras plásticas mais belas nos últimos tempos: um desenho a nanquim de Ismael Nery. Estava já de certo modo consumido pela beleza que colhera desse quadro. Agora, diante dos de Mário, outro jorro de beleza simplesmente me inundou. Senti-me elevado à quintessência do esplendor.
            Talvez haja aí, entre os leitores, quem possa estar murmurando que sou inclinado ao exagero.
            Tenho meus motivos.
            Mário Costa (vou suprimir o Gentil porque acho que seu nome artístico ficaria melhor assim), de repente, sai do anonimato, onde sempre se manteve, por inibição e timidez, como me confessa, para explodir ante meus olhos estupefatos.
            Como não procurar expressar essa emoção com as pobres palavras que me acodem?
            Diante de meu comentário, mostrou-se feliz. Até então não ouvira semelhante referência desse jaez a sua obra.
            Acredito que é desses artistas que não têm verdadeira consciência de seu valor. Ou da importância de seu trabalho. Mário é um vanguardista, se é possível que, em arte, atualmente, ainda possa existir algum vanguardismo, pois, a partir de Duchamp, caímos nesse lixo das instalações, como sendo o “dernier cri” da arte.
Mário, para situá-lo, lembra, por exemplo, Braque ou Kandinsky.
            Nem o próprio Mário me acreditou quando fiz tal crítica a esses dois quadros.
            Mas o afirmo e assino embaixo.
            Mário é um artista feito. Não tenho a mínima dúvida em dizer que se trata de um dos grandes artistas deste país, seja como pintor ou entalhador.    
           
           

            

Friday, December 16, 2016

JANELAS DA CASA VERDE - Hamilton Alves



se olhasse pelas janelas
da casa verde
(num domingo, por exemplo,)
outro mundo de certo
descortinaria ou outra
seria a impressão de tudo
ou de todas as coisas:
me daria um colorido
diferente do céu ou do mar;
me deixaria certamente
em paz comigo mesmo;
estaria mais certo
de alcançar meus objetivos;
ou ainda operar-se-ía o milagre
de sair voando pela
tarde de domingo
como se fora
um  balão inflado;
muitas chances
se abririam para mim
a partir de uma nova visão
através das janelas
da casa verde.
 .


(poema de Hamilton Alves escrito em agosto 2006 sob o pseudônimo de Otto Nul – Max Hohl).

Wednesday, December 14, 2016

JANDIRA LORENZ, UMA ARTISTA POUCO CONHECIDA (morando no Caminho dos Açores, rodeada de gatos, Jandira pratica o desenho com uma habilidade rara).- (por Hamilton Alves)



Há muito tempo, ouço falar de Jandira Lorenz. Depois de conhecê-la vim a me dar conta que a confundia com outra artista. Vendo a exposição de trabalhos dessa outra, atribui-lhe a autoria das obras. Ela não era quem eu pensava que fosse. Jandira, quando a encontrei outro dia, na sua caminhada costumeira, abordada por mim e lhe perguntando por sua atividade, me explicou:
- Não sou pintora, essa que você está se referindo ou julga que seja eu é outra.
Caí das nuvens. Já Machado de Assis aviltrava que “é melhor cair das nuvens que de um terceiro andar”.
Antes de identificá-la, sendo a pessoa (ou a artista que é), quis saber se tinha um trabalho que pudesse ver.
- Tenho alguma coisa. – disse-me com um ar esquivo, não se mostrando muito interessada no assunto.
Afinal, não sei que idéia fazia a meu respeito. Se me conhecia. Se ouvira também falar de mim. Os artistas na Ilha de um modo geral vivem em compartimentos estanques, de tal maneira que é muito problemático uns se encontrarem ou procurarem outros.
Convidou-me a entrar em sua casa (onde tem também um pequeno atelier), que é tão estranha quanto ela. Cheia de gatos. Jandira adora bichos. Contei, na ocasião, sem exagero, uma dúzia de gatos, mas devia ter mais. Lembrava-me que a famosa psiquiatra, Nilse Silveira, num apartamento no Rio, vivia cercada de gatos. Os gatos de Jandira têm mais liberdade que os da doutora Nilse.
Sua casa fica situada numa ampla área arborizada, de fundos para o mar, em que os gatos podem se dar ao luxo de andar à vontade, não como os gatos da doutora Nilse, que viviam confinados e certamente estressados nas pequenas dimensões de um apartamento.
Foi então que me mostrou uma tela belíssima. Encantei-me por ela. Propus-lhe adquiri-la.
Mas foi logo me lembrando que o quadro era de sua filha, que teria de tratar com ela. Deu-me o telefone da filha. Quando fiz a ligação, o telefone chamava mas ninguém atendia. Os meses se passaram. Voltei à carga outro dia sobre o dito quadro com Jandira.
Disse-lhe que havia tentado contato com a filha mas que até aquele momento nada conseguira.
- Olhe, o quadro está na Casa Açoriana, em Santo Antônio. – disse-me.
Era um sábado.
Desloquei-me até a Casa Açoriana.
O quadro estava ali exposto. Uma obra magnífica.
Mas o que a Jandira talvez não saiba é que, visitando Osmar Pisani, que é dono de excelente pinacoteca (inclusive um tapete de Vecchietti diante do qual me ajoelhei em reverência e a essa reação fui levado por não ter podido resistir a tanta beleza), lá vi um quadro dela de admirável feitura. Nada perguntei ao Pisani sobre a aquisição. Teceu loas à obra de Lorenz.
Foi aí que me penitenciei de ainda não ter tomado iniciativa de concluir démarches para aquisição do quadro de Jandira.
Então voltei à carga.
No contato telefônico com a artista dobrei o preço inicial que tinha proposto.
Preço acertado, cheque passado, com a alma cantando, voltei ao meu reduto, onde encontrei um bom espaço para exibi-lo.
O quadro é muito bonito. Tinha que ter gatos. Tem dois. No mais é uma cadeira transformada em uma mulher com feições místicas ou fantasmais, um pássaro gigantesco em cima da tela. Trata-se de uma gravura impressa em papel. Janga, proprietário da Casa Açoriana, que é um oásis cultural na melancolia de Santo Antônio, me explicou que é um original único, que não dá para ser reproduzido.
Certo dia (já há algum tempo de posse do quadro), entrei novamente em contato com Jandira.
Disse-lhe que podia trabalhar com material mais perene, com óleo, por exemplo. Com papel, a durabilidade da obra é incerta. Pode durar muito ou pouco, pouquíssimo até, dependendo da resistência do papel.
Jandira me explicou que, dependendo dos cuidados que se tiver, não expô-lo à umidade, poderá se lhe garantir uma grande longevidade.
Mas quando lhe falei de usar óleo, explicou:
- Não sou pintora; sou desenhista.
Ora, nada impede que um desenhista seja pintor. Há, por exemplo, o caso eminente de Picasso, que foi um excelente desenhista (Guernica está aí para prová-lo) e um dos maiores pintores conhecidos em todo o mundo.
Ainda não me dei conta de seu processo de trabalhar. Só sei que se trata de uma gravura. Mas com que material executa a gravura, disso não fiquei sabendo. Será xilogravura, na linha de Goeldi? Não, porque o trabalho à gravura de Goeldi e seus discípulos (ou os que seguem sua escola) é reproduzível. A gravura de Jandira não.
O fato é que descobri Jandira Lorenz, pessoa extremamente modesta e recolhida, parecendo, nos contatos iniciais, não querer (ou pretender) nada com ninguém, às voltas com seus gatos. O mundo de Jandira: a arte e os gatos, bem se poderia dizer.
Essa obra, descrita por mim, há pouco produzida por ela, não é obviamente única; mas só conheço outra, a do Pisani. Posso dizer que é muitíssimo bem trabalhada, revelando uma artista madura e de perfeita consciência de que domina bem sua arte.
Quem a vê, caminhando na rua, sempre de olhos voltados pro chão, sem dar muita atenção ao que se passa em volta, não faz a menor idéia do valor que tem essa mulher..
Creio que Jandira, quando tratou comigo da venda de sua tela, deu-lhe tão pouca importância, como se lhe espantasse um pouco que alguém tivesse mostrado interesse por ela.
Todos os artistas são assim meio estranhos. Nunca, na verdade, se dão conta de sua grandeza – é o caso de Jandira Lorenz.

Agosto/05.

Tuesday, December 13, 2016

IRMÃO VENTO - Hamilton Alves




fala-me, irmão vento,
quero ouvir-te a voz,
o teu canto lastimoso,
teus desassossegos,
teus pequenos
e grandes dramas
próprios de quem
percorre as ruas
em desabalada carreira
na busca de fazer-se ouvir;
estou pronto a prestar
atenção ao que tens
para me confessar:
as tuas dores,
as tuas penúrias,
as tuas tristezas.
ou mesmo as tuas alegrias.
fala-me de tudo, vento,
com toda franqueza,
pois em ti de certo modo
me espelho: vejo em ti
também as minhas próprias
angústias e conflitos.
por isso somos iguais
ou de alguma maneira
somos irmãos –
fala-me, irmão vento!




(poema de Hamilton Alves escrito em agosto de 2006 sob o pseudônimo de Max Hohl ). 

Monday, December 12, 2016

INÊS E OS PARDAIS

 


Em seu livro “Waaal – Dicionário da Corte”, Paulo Francis diz que “como rápido, bebo rápido, vivo rápido, escrevo rápido”. Não é à toa que tinha o apelido de “metralhadora giratória”. É que todos os que conviviam na sua intimidade sabiam que produzia textos para o jornal (ou para sua coluna) com uma velocidade espantosa. Nesse ponto, somos parecidos. Ou faço (ou escrevo) as coisas às pressas ou não sai nada que preste. Quando levo tempo para produzir uma crônica, um conto ou mesmo até um poema, sei que não vai sair nada satisfatório. As melhores crônicas que até hoje escrevi resolvi-as (ou dei-lhes cabo) em pouco tempo, quinze ou vinte minutos no máximo, não mais que isso. Se ultrapassar esse limite, estarei condenado. Ou estará sob suspeição o que produzi.
Certa vez, quando éramos cronistas do extinto “Diário da Tarde”, ao tempo em que era dirigido por Tito Carvalho (fazendo parte da redação o indefectível Seixas Netto, de saudosa memória, que me dizia de quando em vez que era perda de tempo fazer jornalismo para analfabetos), encontrei certa manhã Silveira de Souza a braços com terrível dificuldade. Ele compunha uma crônica e, quando entrei na redação, virou-me os olhos, como quem formulasse um pedido de socorro:
“Não consigo desenvolver esta crônica. Não me dás uma mão?”
O Silveira é conhecido por sua demora de escrever. Para parir uma lauda leva tempo. Imagino que seus contos devem envolver uma operação de algumas horas ou certamente de dias, até que os dê por concluídos. Ou acabados. É um parto dificílimo. Bem verdade que, no meu caso, depois de redigida a crônica, passo a examiná-la nos detalhes.  Faço reparos (quando faço) aqui e ali, até que o trabalho seja dado por pronto. Mas isso mesmo não é freqüente. Em geral não faço muitas alterações no texto. Zé Mauro, outro saboroso cronista, que apareceu certo tempo aqui na ilha de algum lugar perdido, era assim também.  Só que Zé mauro era inteiramente anarquista, não só na vida, como em eu texto, que, no frigir dos ovos, não passava de um palimpsesto. O fraseado dele era livre, com vírgulas mal colocadas, frases às vezes meio desarrumadas, que, no fim, tinha-se uma página não de crônica mas de poema.
Mas voltando à dificuldade tradicional do silveira de Souza, estava ele certa manhã, na redação do “Diário da tarde”, debruçado sobre a máquina de escrever, sem poder dar seguimento a sua crônica, quando me viu entrar na companhia do Murilo Pirajá, que deve se lembrar desse episódio.
A crônica que ele começara tinha uma ou duas frases apenas. E tinha esse título: Inês e o pardais.
Nunca fui de recusar desafio.
Olhei as duas frases do João Paulo.
Sentei-me à máquina. Tentei desenvolver o texto. Empaquei também. Não sabia por onde seguir.
Até que dei um arranco e devo ter escrito, além das duas frase iniciais, mais uma três; não mais.
A crônica, que ambos escrevemos, se resumiu a meia dúzia de frases. E assim foi publicada.
Outro dia, falando a esse respeito, evocando aquele momento inesquecível, dois jovens cronistas produzindo uma única crônica, Silveira me disse que tem ainda essa crônica entre os seus guardados.
O trabalho criativo se diferencia de um para outro criador. Para uns trata-se de coisa simples escrever um conto, ou crônica, ou novela (mesmo até um romance). Já outros têm dificuldade de redigir uma carta. Ou mesmo até um bilhete. Os cacoetes do ofício, por exemplo. Isso daria certamente um tratado de curiosidades. De como uns têm de fumar ou beber cafezinho. Ou botar os óculos em cima do nariz. Ou ficar mordendo a ponta da gravata, como era o caso de Jorge Cherem, que foi o maior noticiarista de seu tempo (ou de nosso tempo). Ninguém redigia uma notícia melhor que ele. Enquanto batucava na máquina, mordia a gravata. Ou se não tinha uma gravata na ocasião, mordia qualquer coisa. Se não mordesse alguma coisa, não “mordia” o texto.
Tenho cá, certamente, meus cacoetes. Pertencer ou conviver com jornalistas numa redação é contemplar justamente os vários tipos, que sofrem horrores no trabalho de criação. E isso é refletido nas expressões do rosto, que se transfigura na medida em que o “parto” vai se operando.
Por isso, redação de jornal deve ser um rico reduto para sociólogos. Ou psicólogos. Ou antropólogos.
“Inês e os pardais”!...bom título para um livro de crônicas.    



Friday, December 9, 2016

GRAHAM GREENE NÃO LEVOU O NOBEL (um dos melhores escritores de seu tempo, a Academia da Suécia, injustificadamente, lhe negou o maior laurel literário) (por Hamilton Alves)



            Um dos mais fervorosos simpatizantes da literatura de Graham Greene, que certamente estão espalhados, ainda agora, pelo mundo todo, foi o escritor Holdemar de Menezes, que muitas vezes lhe fez referência a amigos em particular. Não foi nem uma nem duas vezes que o ouvi (nesse tempo ainda não tinha nenhuma intimidade com Holdemar) referindo-se elogiosamente a Greene. Outros de seus admiradores é um escritor e ensaísta pernambucano, com quem, por acaso, fiz amizade faz uns tempos, Fernando Monteiro, que há pouco me recomendou um livro do autor inglês, “O homem de muitos nomes”, que considera uma obra prima.
            - Um dia, dizia-me Monteiro numa troca de cartas, se reconhecerá a grandeza de Greene.
            Devo adiantar que não sou doutor em Greene. Falta-me muito ainda para sê-lo. Ou para estar à altura dos conhecimentos que Holdemar tinha e que Monteiro tem sobre o escritor. Li alguns poucos livros dele. E talvez o maior de todos, que é sua obra prima consumada e assim reconhecida pela crítica, é referente ao padre perseguido pela polícia mexicana, que traz o título de “O poder e a glória”, que adquiri num restaurante de beira-de-estrada , em Registro, numa viagem a São Paulo. Havia numa estante muitos livros e, dentre todos, este me aguçou especialmente a curiosidade.
            Eis algumas obras de Greene: “Fim de caso”, que virou fita de cinema e das melhores, que narra a história de um trio amoroso, em que Henry trái seu melhor amigo com a mulher deste; “Expresso do Oriente”, que é uma bela narrativa, envolvendo uma aventura de vários personagens numa viagem através da Europa de trem. Há nesse livro um momento em que, para o personagem Savory, é feita a seguinte pergunta:
            - Qual sua opinião sobre a literatura moderna, Joyce, Lawrence, tudo isso?
            - Passará – disse o Sr. Savory, prontamente, com o efeito de um epigrama.
            Na opinião de Greene a literatura moderna tenderia também a passar e autores como os citados não resistiriam a erosão do tempo?
            Bem, Joyce e Lawrence estão ainda vivos e bem vivos, resistindo a todos os solavancos das mudanças de nosso tempo para melhor ou pior.
            Outro romance de Greene, “O americano tranquilo”, não tem o mesmo peso dos dois precedentes, embora seja uma história, para os admiradores de Greene, de bom teor literário.
            Perdi esse livro em tantas mudanças que fiz no curso da minha vida, como por igual razão outras obras primas se extraviaram. Nunca mais pus os olhos nelas. Entre essas estava a novela referida. Andei a sua cata, até porque um resenhista de jornal fez um trabalho excelente em cima dela. Finalmente, encontrei-a em um sebo. Isso me causou uma grande alegria (a recuperação de um livro muito estimado sempre é um motivo de euforia para ledores) e voltei a lê-lo com o mesmo prazer da primeira vez.
            Um livro um pouco (ou bastante) fora da linha de clássicos do autor é “Dr. Fischer de Genebra ou a festa da bomba”, muito ruim.
            Numa livraria de uma cidadezinha do interior encontrei “Monsenhor Quixote”, que me possibilitou algum deleite. Esse Monsenhor tem algo de D. Quixote, de Cervantes, daí sua alcunha. Também achei meio fraco “O terceiro homem”, que Orson Wells levou ao cinema, com ele e Joseph Cotten, dando um bom filme. E de Greene foi só.
            Quanto à vida pessoal de Greene, foi um homem que viajou pelos quatro cantos do planeta. Todo mundo sabe, ou ao menos quem lida com literatura, que Greene, quando moço, tentou matar-se. Converteu-se ao catolicismo e, talvez, por isso, tenha escapado de dar fim à própria vida. Era um mulherengo incorrigível.
            Há quem diga que “Fim de caso” é nada mais que uma história vivida por ele mesmo e que o personagem Henry é seu alter-ego. Mas Greene, que eu saiba, nunca se referiu a isso. Ou nunca lhe foi perguntado.
            Foi jornalista ou correspondente de jornais londrinos durante grande parte de sua existência. Com essa experiência jornalística, adquiriu os instrumentos necessários para se lançar como novelista. Greene foi também crítico de cinema. Viajando para o México como repórter, colheu o tema para escrever “O poder e a glória”, que, na contra capa, da minha edição, lê-se o seguinte comentário: “Durante um expurgo anticlerical num dos estados meridionais do México, ele é caçado como uma lebre. Humano demais para ser um herói, humilde demais para ser um mártir, o pequeno e mundano “padre beberrão” é, no entanto, impelido em direção ao seu esquálido calvário tanto por sua compaixão pela humanidade quanto pelos esforços de seus perseguidores. Um abutre maléfico paira sobre esta moderna história de crucificação, mas acima do abutre voa uma águia – a inevitabilidade do triunfo da igreja”.
            Greene pertenceu ao serviço secreto inglês, o Foreign Office, durante certo tempo. Esteve, nessa condição, na Serra Leoa, onde colheu dois temas para novas histórias (O Ministério do medo e o Centro da Questão). Seus resenhistas dizem que, em sua obra, Greene buscou como uma paixão as sendas misteriosas do pecado, do demônio e do inferno e das graças do amor cristão.
            Esperou sempre pelo Nobel, embora haja quem diga que isso nunca esteve nas suas cogitações.
            Outros escritores, com menor bagagem ou até com menor importância, abiscoitaram o cobiçado prêmio. A Academia da Suécia tem critérios estranhos. As três eminências pardas da literatura, Joyce, Kafka e Proust também não foram lembrados. Proust talvez não pudesse recebê-lo pelo fato de, a sua época, o prêmio não ter ainda sido instituído.
            Dentre toda a obra de Greene, avulta, sem dúvida, “O poder e a glória”. Garcia Marques foi lembrado para ganhador do Nobel por causa de “Cem anos de solidão”. Teria sido o caso de José Saramago com “O dia da morte de Ricardo Reis”. Juan Rulfo bem o merecia com “Pedro Páramo”. Também foi muito estranho que a Academia não tivesse jamais cogitado de conferir a láurea a Guimarães Rosa, cuja obra é, sem dúvida, da mesma grandeza (ou superior) a de Garcia Marques. Borges também passou ao longe na consideração do Nobel.
            Tivesse ou não esperado pela premiação, Greene a justificaria pelo conjunto de sua obra, mas principalmente por seu romance “O poder e a glória”, que é um clássico em toda a linha.
            Greene morou na suíça nos fins de seus dias e ali encerrou sua trajetória. Há algumas biografias sobre sua vida e, claro, obra. Não li nenhuma. O que sei dele é suficiente. Fiz duas leituras de “Fim de caso”, um de seus melhores romances. O filme equivale ao livro. Embora prefira o livro.
            Ainda que sem ser contemplado com o Nobel, Greene está colocado entre os maiores autores de todos os tempos. Em 2004, comemorou-se seu centenário de nascimento.