Crônica de Hamilton Alves publicada em seu livro "Círculo Vicioso" - Bernúnca Editora/1996. www.bernunciaeditora.com.br
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Saturday, February 25, 2017
Thursday, February 23, 2017
O MUNDO REAL - Hamilton Alves
crônica de Hamilton Alves publicada em seu livro "Círculo Vicioso" - Bernúncia Editora/1996. www.bernunciaeditora.com.br
Monday, February 20, 2017
SERVIDÃO HUMANA - Hamilton Alves
crônica de Hamilton Alves publicada em seu livro "Barco da Noite" - Bernúncia Editora/1988. www.bernunciaeditora.com.br
Saturday, February 11, 2017
UMA VEZ COM UM POETA ILHÉU – Hamilton Alves
O poeta
ilhéu costumava freqüentar assiduamente um boteco e ali também tomava seus
porres. Não ficava inconveniente mas depois de recitar meia dúzia de versos
chatos, para os quais não lhe dava ouvidos nem me interessava ainda por poesia
à época (porque a vida era tão intensa que ela própria era toda a poesia que
podia então haurir), pedia-me que eu de minha vez lhe recitasse alguma coisa de
meu repertório. Mas não era inclinado, como disse, à poesia, não sabia sequer
formular um único verso. O poeta se enganava com as minhas possibilidades.
Certamente, lia-me nos jornais da cidade num ou noutro artigo, numa ou noutra
crônica, e, por isso, achava, bêbado, que fosse capaz de produzir um poema. Ou
de dizer-lhe algo de minha lavra.
Me olhava com olhos congestionados,
fumegando um cigarro forte, com ira porque não era capaz de dizer uma única
palavra ou formular um desgraçado verso.
Então, sem outro recurso, voltava a
dizer os próprios, incansavelmente. Quanto mais versos mais uísque. Só tomava
uísque o poeta. E mais bêbado e mais chato ficava.
Por que o tolerava?
Sempre tive uma santa paciência com
todos os chatos do mundo. E este era um chato especial – além de grande amigo,
era poeta. Não era qualquer chato.
Houve uma noite que tentei
satisfazê-lo. Quis inventar uma frase poética. Dizer qualquer bobagem.
-
Mas você, com sua capacidade de prosador, é incapaz de versejar?
-
Não é um dote comum. – disse-lhe. – É coisa de gênios. Ou a poesia escolhe seus
eleitos, não é o meu caso, que sou um pobre escriba de jornal.
Dito
isso, nessa noite memorável, deixei o poeta com sua poesia chata e com seu copo
de uísque, a ponto de muitas vezes Ter de sair do boteco segurado por amigos
para não cair de bêbado.
Houve outras noites, muitas outras
em que de novo tive de aturar o poeta.
O
boteco era o ponto de encontro e de confraternização de uma fauna conhecida na
década de 50. Gente de jornal, de rádio, prostitutas (estas quando a noite se
avizinhava da madrugada) como a Maria Galega (lembram-se dela?), que se
aproximava às imediações do boteco, insinuava-se à porta, esperando por um
convite de um daqueles boêmios, para
entrar, porque ela, na sua timidez, entendia que era uma marginal e que, por
isso, podia não ser bem aceita entre aqueles outros marginais noctívagos.
Lá no canto de sempre despontava o
poeta. Para outros amigos recitava seus poemas soporíferos, que nem sempre
encontrava ouvinte disponível nem voluntário.
O poeta queria se impor como tal,
mas só era poeta (ou só declinava seus poemas) a partir da terceira dose.
No fim da noite, era levado ao
sacrifício de ouvi-lo. Não dava outra. Atravessava-se aquele momento
auspicioso, em que o boteco ganhava nova vida no trânsito da noite para a
madrugada, sempre celebrada com maior libação alcóolica. Quando não espoucava
um pinho. Ou uma loucura qualquer.
-
Você não produz um verso... é uma pena... um talento desses a se perder em
crônica esportiva! – abria-se comigo.
O
que é que eu podia fazer nas circunstâncias? Só se inventasse. Só se dissesse
qualquer tolice à guisa de poema.
Ele
achava que eu tinha que Ter veia poética. Por que não sei explicar.
Até
que uma noite, de tanto me aborrecer, acabei improvisando um poema qualquer:
“As garrafas nas prateleiras
tão fechadas e mudas;
os copos, ah, que belos
são os copos;
os fósforos... que se apagam
e se acendem;
a brasa dos cigarros, ah, que
beleza os cigarros;
o bêbado triste,
o bêbado chato,
dizendo seus poemas tolos”.
Ele
me olhou, envergando a última dose e disse:
-
Bonito, muito bonito; enfim, o poeta!
Thursday, February 9, 2017
UMA GRANDE NOVELA – Hamilton Alves
Tenho
o hábito de dizer que, para se escrever uma novela ou qualquer coisa, mesmo uma
história curta, é preciso ter, de início, uma boa frase, que tenha balanço, que
marque o início do que virá depois.
Uma
das maiores novelas já escritas em todos os tempos tem a seguinte frase de
abertura:
"O
perfume capitoso das rosas impregnava o estúdio; e quando a leve aragem do
estio começou a sussurrar por entre as árvores do jardim, o aroma forte dos
lilases entrou pela porta aberta, de mistura com o olor mais suave das flores
róseas do pinheiro".
Duvido que se
descubra o autor destas palavras. A não ser que se trate de um ledor tão
competente ou que conheça tão profundamente literatura ou ainda tenha uma
paixão especial por esse autor ou por essa novela, fatalmente não terá
dificuldade em identificá-lo. Eu próprio, que a elejo como uma das minhas
novelas preferidas, não bateria com a autoria dessa frase de abertura, se isso
algum dia me fosse questionado.
Sempre mantive
a opinião que uma novela, um romance, um conto, até mesmo uma crônica, ou ainda
um poema, tem que ter uma abertura que revele seu conteúdo. Ou a sua grandeza.
Antes de ter uma frase boa, um escritor não deve se abalançar à tarefa de
compor uma obra. Deve, por isso, esperar o momento de ter essa frase inicial,
por onde se enredará por páginas a fio.
A frase citada
é de Oscar Wilde. É o começo de uma extraordinária novela, que é responsável
pela grande notoriedade de Wilde no cenário das letras mundiais. O tema é um
achado, que poucos escritores teriam chegado. Ou teriam descoberto. O retrato
de um artista, que reflete uma pessoa viva, e, ambos, retrato e retratado,
assumem papéis inversos na vida, no sentido de que, enquanto um envelhece, o
outro mantém perene juventude. O tema, Wilde, segundo vem informado no
prefácio, colheu-o no atelier de um pintor, quando esta questão foi aflorada.
Mas voltemos à
questão de fundo desta crônica. A frase de abertura de "O Retrato de
Dorian Gray" leva a supor a grande obra que se seguirá? Adivinhar-se-ia
que Wilde, com ela, iniciaria sua obra prima? Não, de modo algum; trata-se de
uma frase medíocre e até certo ponto vazada num estilo rococó.
Qualquer
escritor menor poderia compô-la. É possível que alguém que tenha batido com sua
feiúra supôs que o restante seria impregnado de uma banalidade mortal e
certamente parou aí, não se atrevendo a ir adiante.
Bem verdade
que, na frase seguinte, o leitor é já levado a outro patamar psicológico e,
desde então, não largará mais até a página derradeira esta inexcedível
história, tão bem trabalhada pelo gênio de Wilde.
Curioso que,
como sou um leitor atípico, no sentido de que não me situo entre os devoradores
de livros, que caracterizam seu feitio por lerem tudo o que lhes cai às mãos
até o fim, só muito mais tarde de ter adquirido esse livro (quando amigos meus
lhe fizeram os mais rasgados elogios e até ensaios críticos o assinalavam como
obra extraordinária) é que resolvi penetrar nas duzentas páginas do meu
exemplar.
Claro, nem é
preciso dizer, foi um dos maiores deslumbramentos de leitor que já tive.
Mas a frase
"overture" ( e este é o tema da crônica) não é de modo algum daquelas
que façam, desde logo, presumir que ter-se-á pela frente uma obra fadada à
imortalidade.
Segue
vitoriosa a noção de que todo o grande livro deverá ter necessariamente uma boa
frase inicial para ganhar a celebridade.
"O retrato
de Dorian Gray" desmente essa tese.
Novembro/02.
Wednesday, February 8, 2017
UMA ANTOLOGIA DE POESIA SOSSOBRA INAPELAVELMENTE (de “Veneno antimonotonia – os melhores poemas e canções contra o tédio”, organizado por Eucanãa Ferraz, o efeito é supinamente pífio).- (por Hamilton Alves)*
Eucanãa Ferraz organizou uma antologia com nomes festejadíssimos na poesia
e em letras
de música popular ,
enfileirando-se Ferreira Gullar, Chico,
Caetano, João Cabral, Cazuza, Manuel Bandeira ,
Aldir Blanc, Mário Quintana, Gilberto Gil, Murilo Mendes, Noel Rosa , Vinícius de Moraes ,
Waly Salomão, Oswald de Andrade, Francisco Alvim, Adriana Calcanhoto, Antonio Cícero , Armando Freitas Filho
e, por último ,
Ana Cristina César.
No entanto ,
o resultado é pífio .
Para não ser muito rigoroso , incluiria dois poemas que
fogem ao ritmo da vulgaridade
geral : um
de Noel e outro de Murilo. Mas os outros ,
na presunção de se constituírem remédio antimonotonia, produziram justamente
uma reação contrária .
Ao menos neste plumitivo.
Tive a pachorra
de ler toda a
antologia (editada pela
Objetiva )
de uma assentada. Inicia-se com um poema de
Drummond.
“Admirável
espírito de moços ,
a vida
te pertence .
Os alvoroços ,
as iras
e os entusiasmos que
cultivas
Recorri ao Bandeira ,
já em
desespero , por
não encontrar
nada interessante na dita antologia . Foi outra decepção .
Eis um
de sua autoria com
o título “Na boca ”:
“Sempre
tristíssimas estas cantigas de carnaval
E nos
três dias
de carnaval
O ano
passado ele
parava diante das mulheres
bonitas
e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca !
Na boca !
Umas davam-lhe as costas com repugnância
outras porém
faziam-lhe a vontade .
Dorinha meu
amor ...
Se ela
fosse bastante pura
eu iria agora
gritar-lhe
- Na boca !
Na boca !”
O leitor
sente-se de alguma forma curado da monotonia com esse poema do Bandeira , o grande
Bandeira , que
tenho em boa conta
como poeta ?
No meu
caso , o tédio
só se aprofundou a partir
da leitura de tais
poemas .
Colhe-se à página
159:
“Convite ”
– (é o título )
“Basta
de poemas para
depois ...
Ó Vida ,
e se nós dois
vivêssemos juntos ?”
“Meu
poema
é um
tumulto :
a fala
outras vozes
arrasta em
alarido .
(Estamos todos
nós
se dizes pêra
acende-se um
clarão
de tardes
e açucares
se azul
disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
A antologia ,
que traz esse
título “Veneno
Antimonotonia”, é uma supina droga . Não se
consegue colher um
único poema
que a redima da total
mediocridade.
Tuesday, February 7, 2017
UMA ANTOLOGIA D’ O PASQUIM PARA MOSTRAR UM POUCO DO QUE FOI (organizado por Sérgio Augusto e Jaguar, com uma tiragem de 800 mil exemplares, a antologia – Volume I – “O Pasquim” conta um período – 1969-1971 – desse jornal) (por Hamilton Alves)*
A história d’O Pasquim, tal como na realidade se deu, isto é, como
começou, quem teve a primeira idéia de lançá-lo, quais foram as dificuldades
iniciais ou quem chegou antes ou depois, quem já estava lá badalando o sino
convocando a moçada que veio a integrar o jornal e formar o grupo que se
tornou, em pouco tempo, o mais famoso jamais reunido neste país, com tanta
gente competente em sua área, entre cartunistas, humoristas e jornalistas, teve
algumas versões já. Jaguar, ex-bancário (do Banco do Brasil), conforme já contou,
foi um dos primeiros que partiram para o ataque. Depois veio, cada um de sua
vez, os outros. A verdade é que essa geração de talentos dificilmente se formará
na imprensa brasileira. Onde buscar, hoje ou em outro tempo ou lugar, gente do
nível do Jaguar, Ziraldo, Millôr, Paulo Francis, Ivan Lessa, Tarso de Castro,
Sérgio Cabral, Luiz Carlos Maciel, Fortuna, Claudius e tantos outros
colaboradores (mesmo os que só esporadicamente assinavam uma matéria).
Difícil, muito difícil.
É como diz o ditado: Deus os criou e o Diabo os juntou.
O fato é que “O Pasquim” foi o maior fenômeno jornalístico já ocorrido
neste país. Nada se lhe assemelha. A não ser, chegando bem perto, “Comício”, de
Rubem Braga e Joel Silveira (que possuía igualmente uma patota respeitável).
E para que isso ocorresse, num momento histórico, em que se instalava a
caretice neste país, foi preciso que eclodisse o movimento golpista de 64, que,
como se sabe, durou duas décadas. As liberdades foram então suprimidas. Baixou
o obscurantismo mais terrível por toda parte. A cultura (notadamente esta) se
viu oprimida. A liberdade de expressão (por isso mesmo) foi pro brejo.
E a reação veio naturalmente.
“O Pasquim” nasceu sob o signo da baixaria.
E para combater a baixaria só a ironia fina. Ou o deboche inteligente,
bem dosado, feito com arte.
Passou a ser o jornal (representativo da imprensa alternativa) mais
vendido, com tiragens que até mesmo os fundadores se babavam.
Estava, de repente, descoberto o caminho para as Índias (ou o mapa da
mina fora revelado à imprensa menor, dita também nanica).
Pela primeira vez um jornaleco de nada (o que corresponde à palavra
“pasquim” nos dicionários) perturbava a ordem instalada.
Era preciso conter a rapaziada.
Não foi à toa que, em determinado momento, o jornal não só passou a ser
censurado como, por igual, os que assinavam artigos ou faziam críticas ao
regime por via de cartuns foram presos. Não ficou ninguém na redação. Mas um
outro grupo solidário veio substituir os titulares, garantindo, assim, a
sobrevivência e a continuidade do jornal. Foi o caso de Vinícius de Moraes,
Chico Buarque, Chico Anísio, Antonio Callado e outros.
Há pouco, foi publicada numa outra revista uma entrevista com o grupo
(Millôr, Jaguar, Ziraldo, Sérgio Cabral e outros) para falar sobre os grandes
dias d’O Pasquim. A história é fragmentada. Mas muita coisa veio à baila. Ou à
luz sobre os primeiros tempos.
Jaguar conta que a administração do “Pasquim” era péssima. Toda a
arrecadação era bebida ou consumida. Até que alguém quis por a casa em ordem. Mas recorrer a
que método se não havia método entre esses menestréis? O jornal, no fim de seu último
período, ficou com uma dívida tamanho família. Como pagá-la? Ou como pagar os
colaboradores, que queriam ver “correr sangue”. Ninguém trabalha de graça, até
porque o jornal estava vendendo bem.
No ultimo round, as dívidas e a desorganização do grupo foram
incontroláveis e, por isso e por outras coisas mais, o jornal faliu.
Ficou a história, única no jornalismo.
Cada um foi cantar noutra freguesia. Ou escrever em outros jornais, mas
levando a fama que tinham adquirido através d’O Pasquim. Bem verdade que alguns
já traziam prestígio de sua larga passagem por outros órgãos de imprensa. Como
foi (e é) o caso de Millôr, que vinha de sua gloriosa passagem por uma seção na
revista “O Cruzeiro”, onde, segundo ele mesmo conta, trabalhou vinte anos com o
“Pif-Paf”, que era então o riso nacional. O colaborador arregimentado ao acaso
típico foi Sérgio Cabral. Encontrou-se não sei com quem que fazia parte da
redação e perguntou se podia assinar uns artigos. Foi logo admitido. Com a
pressão da “redentora” teve que se esconder. Revelou que seu melhor esconderijo
foi na praia de Copacabana, utilizando-se de um chapéu de palha de abas largas.
Quem o reconheceria? Os outros não sei a que recorreram para escapar ao assédio
da polícia da ditadura.
Acabaram todos em cana, como dito. Mas foi por pouco tempo. À época, não
vingava o hábeas corpus. A ordem jurídica fora igualmente suspensa.
Para relembrar esses dias gloriosos e não tão gloriosos assim, Sérgio
Augusto e Jaguar lançaram uma antologia (1° volume) de um período (69 a 71), que, ainda que
talvez não representativo do melhor, dá uma idéia da operatividade desse time
que encantou o público por longo período, constituindo-se praticamente na única
voz discordante do estado de coisas que então vingava.
Não era uma oposição séria.
Nada era sério n’O Pasquim.
Imperava a gozação mais refinada.
Praticado por profissionais de primeira, cujo “pedigree” era de alto
coturno, fez balançar o coreto. A ponto de haver o que houve, ou seja, a
censura e a repressão mais ferozes.
Há bons momentos na antologia, com matérias de Millôr, Jaguar, Paulo
Francis, Fortuna, Ziraldo, Claudius (que esbanjavam talento não apenas
escrevendo mas com seus desenhos e charges), com as colaborações que fizeram a fama do jornal.
Por alguns caraminguás, pode-se adquirir um exemplar e se passar alguns
momentos de bom humor e talento em companhia desse grupo, que não apenas fez o
melhor jornalismo brasileiro de todas as épocas, mas fez principalmente
história.
Com o fechamento do jornal (não podia evidentemente durar sempre até
porque a causa que o justificou, o golpe de 64, tinha também chegado ao fim), a
turma que o escreveu ou produziu se espalhou, voltando cada qual ao seu ninho.
Com a só diferença de Ivan Lessa, que resolveu não agüentar os novos tempos e
foi se esconder em Londres, onde está até hoje e de onde mandou há pouco um
livro de crônicas de seu dia a dia como colaborador da BBC, “O luar e a
rainha”.
Paulo Francis não só mudou de jornal como de linha política. De esquerda
passou à direita, a ponto de Jaguar, certa vez, ter feito o seguinte
comentário:
- O Paulo Francis que anda por aí é um impostor.
De lá para cá o que é que apareceu de interessante na imprensa
tupiniquim?
Nada parecido, nem de longe, com “O Pasquim”.
XXX
Abril/06.-
Monday, February 6, 2017
UM POEMA DE BROWNING – Hamilton Alves
O
poeta inglês Browning tem um poema lindíssimo, que vim de conhecer há pouco,
com o título de “O amante de Porfíria”. Trata-se, resumidamente, do seguinte:
um homem se apaixona desesperadamente por uma mulher. “Esta noite a chuva chegou”,
diz o primeiro verso. A chuva contextualiza, de certa forma, o restante dos
versos. Abre caminho a que, a certa altura, o poeta narre que, quando a amada
chegou, sentou-se ao lado dele. E, súbito, tudo pareceu-se aquecer à sua
presença. Desnudou os ombros alvos, macios, de cabeleireira loura, em
desalinho, inclinou-se levando a face dele a aninhar-se à face dela. Ciciou seu
amor por ele, ela fraca para cortar as amarras da vaidade, e entregar-se para
sempre para ele. Teve a certeza de que a amante o adorava; o coração se
expandia enquanto meditava no que faria. Naquele instante, ela era sua.
Descobriu, então, o que lhe cabia fazer. Com o seu cabelo entrançou uma corda
loira e longa, que lhe enrolou três vezes ao pescoço. Estrangulou-a. ela não
sentiu dor. Abriu-lhe as pálpebras e voltaram a sorrir seus olhos azuis
imaculados. A seguir, desapertou a trança que lhe cingia o pescoço e sua face
voltou a avivar-se num rubor sob o beijo que lhe deu. Amparou-lhe a cabeça, só
que dessa vez foi o ombro dele que susteve a cabeça que sobre ele descai.
Minúscula cabeça rosada e sorridente tão feliz de possuir tudo o que queria, de
Ter de súbito cessado tudo o que desdenhava e de em vez disso Ter conquistado o
amor dele. O amor de Porfíria –ela não podia imaginar como o seu mais grato
desejo ia se realizar.
Termina o poema com estes
derradeiros versos, que coloco aqui em forma de prosa:
“E aqui estamos juntos, sentados,
agora; ficamos imóveis durante a noite inteira e Deus está emudecido”.
A dois amigos mandei esse poema, um
dos quais é poeta; o outro, apreciador do gênero, tem também bom senso crítico.
Num
dia desses, o primeiro me surpreendeu com o comentário de que lhe pareceu que o
amante mata a amada não apenas para sublimar o amor ou para perpetuá-lo, impedindo
que se lançasse no abismo do efêmero, mas que lhe parecia que outro aspecto se
adivinhava: não pudera consumar a cópula com a amada.
Essa hipótese me pareceu
despropositada e lhe retruquei que, no que se referia ao ato sexual, me parecia
circunstância absolutamente irrelevante. O amante não mataria a mulher por se
ver impotente, o que, a admitir-se, o poema perderia inteiramente o impacto de
beleza que tem.
Comentei essa questão com o segundo
amigo para tirá-la a limpo. No primeiro momento, entendeu que tal interpretação
não cabia. A intenção do amante, concordava com o meu ponto de vista, era a
perenização do amor, sujeito a todas as vicissitudes das transformações porque
passa a alma ou os sentimentos humanos.
Dias depois, esse amigo me diz que
lera com mais vagar e atenção o poema de Browning e chegara também, meditando
melhor, à opinião do outro, segundo a qual também entrou no ato de morte o
problema da impotência.
Mantive irredutível a minha posição
inicial de que essa interpretação do assassínio
desvirtua de sua grandeza o poema, até porque a satisfação do sexo é um
ato animal, que não se compraz à transcendência da poesia de Browning, ou das
intenções que deixou impressas nesse trabalho. Embora ambos admitam que a outra
ilação, a de perpetuação do amor ou da paixão amorosa, é também de considerar,
o fato é que as duas interpretações, se aceitas, não convivem bem, uma
empobrecendo a outra.
Já um terceiro amigo me levou o
livro de poemas de Browning. Não o tenho encontrado nos últimos tempos, razão
pela qual não tive a oportunidade de conhecer seus pensamento quanto à
interpretação que colheu desse poema.
Trata-se de um eminente homem de
letras, que poderia nos tirar a mim e aos meus dois outros amigos desse dilema,
não obstante da minha parte não esteja disposto a ceder a quem quer que espose
a tese deles.
O leitor não tem o poema integral,
apenas alguns dados. Daí que possa Ter dificuldades de bem interpretá-lo.
Insisto
apenas num único ponto, que, para mim, é capital: aceitar que o amante recorreu
ao homicídio da amada porque não pôde concretizar a posse me parece reduzir a
beleza do poema ou até mesmo desfigurá-lo.
Browning quis colocar o sentimento
do amor num nível de totalidade, eternizá-lo, para que nenhum outro fato humano
fosse capaz de destruí-lo. É o que penso.
Saturday, February 4, 2017
“UM ÔNIBUS E QUATRO DESTINOS”, UM CLÁSSICO LITERÁRIO (Francisco José Pereira, Silveira de Souza e Holdemar Menezes conceberam uma novela que marcou época nos anais da literatura catarinense). (por Hamilton Alves)
Lendo há pouco uma resenha de Ruy
Castro sobre “O Falcão Maltês”, de Dashiell Hammett, que é um dos clássicos
maiores da literatura “noir” em plano mundial, fui relê-lo. A segunda leitura é
sempre melhor que a primeira. Ou isso é apenas meia verdade? Não interessa
muito saber se é ou não melhor. O fato é que agora me dou conta que houve
aspectos na segunda leitura que ou me passaram despercebidos na primeira ou não
os fixei como agora o faço ou o fiz.
Não é necessário dizer que Ruy é um
craque da resenha. Sobre a obra de Hammett se revela absolutamente insuperável
na análise exaustiva que faz. Antes havia feito uma outra, sobre “Servidão
Humana” (refiro-me à ‘Obras Primas que poucos leram’, organizado por Heloisa
Seixas, e que traz um sem número de notáveis e muito oportunos comentários
sobre vários romances e novelas que marcaram definitivamente a literatura
mundial de todos os tempos).
Sobre “Servidão Humana” não foi, na
verdade, muito feliz. Na minha visão particular, sobre o personagem Phillip
Carey, me pareceu ter revelado certas características que não refletem
absolutamente bem esse grande personagem.
Mas voltando ao “Falcão Maltês”, em
certo momento dessa releitura, lembrou-me compará-lo a uma novela semelhante
(ainda que não na linha do ‘roman noir’, a rigor), escrita por três escritores
catarinenses (um não tão catarinense, Holdemar Menezes), Francisco José Pereira
e Silveira de Souza, editada pela Movimento, de Porto Alegre, que foi (ou tem
sido) pródiga em publicar autores deste Estado, graças a esse infatigável homem
promotor da cultura que é Carlos Appel.
A edição desse livro data de 1994.
Título:
“Um ônibus e quatro destinos”.
Em
que pode se diferenciar o valor literário de uma (a de Hammett) e a de outra
(de três escritores locais)?
A
única diferença possível, sob qualquer aspecto, é que a novela do americano
(grande caráter, que, para não dedurar amigos, suspeitos de atividades
anti-americanas ou ligados ao comunismo, preferiu passar algum tempo na prisão)
virou um dos maiores clássicos do cinema, “Relíquia Macabra”, com Humphrey Bogart,
Sidney Greenstreet, Peter Lore e outros, com a direção de John Huston.
No
mais, as duas novelas se eqüivalem – e não vai qualquer exagero nisso. É só
lê-las e compará-las.
Quando
li “Um ônibus e quatro destinos”, fiquei tão entusiasmado com sua qualidade
literária que a comuniquei aos autores (não resisto em fazê-lo todas as vezes
que isso ocorre). Além disso, fui ao jornal em que registrei num pequeno artigo
a minha impressão de leitura. Lembro-me que pus em destaque o fato
incontroverso de que, em matéria literária, talvez fosse a primeira vez que
nosso Estado dava um salto de qualidade na vida literária do país, embora a
novela tivesse (até hoje) se circunscrito aos limites de nossas fronteiras.
Acho que, como outros sucessos iguais, o fato não repercutiu além da ponte
Hercílio Luz, o que tem sido rotina em nossa vida cultural. Devo ressaltar que
esse êxito literário teria grande repercussão nacional caso houvesse melhor
tratamento de distribuição da obra, em se tratando de novela. Em poesia já tínhamos
logrado grande projeção com Cruz e Souza e Luiz Delfino, até hoje insuperados
no tocante à notoriedade fora de nossos limites geográficos.
Para
o Chico Pereira tive oportunidade de dizer, algum tempo depois do lançamento,
que o grupo perdera uma excelente oportunidade de ter dado um título mais
literário à novela. – Qual? – perguntou-me.- O camafeu egípcio. – respondi.
É
que, junto do corpo do juiz assassinado, logo depois de ter saído de uma roda
de pôquer no Clube Doze de Agosto, fora encontrado um camafeu egípcio, que, na
verdade, não tem nada a ver em relação ao crime.
No
registro jornalístico que fiz anotei esse pormenor. Chico ponderou e achou que
eu podia ter alguma razão. A escolha do título não fora tão acertada.
Em
geral, quando feito por vários autores, mormente tratando-se de um romance, o
que ocorre com freqüência é uma certa falta de homogeneidade do texto. E isso é
muito natural que ocorra. Cada escritor tem seu próprio estilo. Mas
milagrosamente os três (Chico, Holdemar e Silveira) alcançam um equilíbrio
muito bom, a ponto de, se não se soubesse que o livro fora escrito pelos três,
podia-se concluir que era de um único autor.
Valendo-me
de meu artigo, publicado em dezembro de 1994 neste jornal, sob o título “Um
ônibus especial”, sumariando o livro, comentei: “Trata-se de uma novela com
laivos detetivescos, com um crime que é revelado logo nas páginas iniciais,
envolvendo a morte de um Juiz de Direito, depois de ter saído de uma roda de
pôquer no Clube Doze de Agosto. O livro poderia ter o título (mais literário)
de “O camafeu egípcio” – lembraria o de Hammett, “O falcão maltês”. A família
do magistrado, a mulher e o filho, muda-se para Porto Alegre. Depois de alguns
anos, o filho, Dr. Thales, formado em medicina, retorna à Ilha para exercer a
profissão e também para de alguma forma desvendar a misteriosa morte do pai.
Nisso está disposto a se empenhar até as últimas conseqüências. Os capítulos
que se referem ao Dr. Thales são confiados a Chico Pereira, que, com categoria,
os desenvolve dentro de uma trama muito bem urdida. Além dele, o médico, viajam
no ônibus da empresa São Cristóvão, que existia à época, mais três personagens:
a jovem e de certo modo desditosa Solange, que vem à capital para submeter-se a
um aborto, engravidada perlo patrão, empresário de Criciúma; Teresa, que vem ao
encontro de Carlos para a prática de um ato adúltero, sendo ele quase noivo de
sua filha adotiva; e, por último, Gustavo Paiva, que é estudante de Direito e
poeta. Teresa vem de Laguna, onde o marido trabalha como assistente de uma
empresa portuária, e Paiva origina-se de Porto Alegre.
No
dia da morte do Juiz, encontra-se junto de seu corpo um “camafeu egípcio”, que,
no entanto, não conduzirá à elucidação do mistério das circunstâncias do crime.
Paralelamente aos destinos que estão traçados para esses personagens, o
escritor, do qual se ocupa magistralmente Silveira de Souza, vive problemas
marginais, não apenas quanto à condução da narrativa do romance, mas ao
envolvimento com a umbanda, de que participa com outros personagens igualmente
curiosos”.
Termino
essas considerações assim:
“Vale,
porém, registrar que ‘Um ônibus e quatro destinos” é um dos momentos
culminantes da literatura catarinense, que, assim, se põe ao nível do que há de
melhor literariamente no país”.
Acho
que, além de mim, não houve mais ninguém que se abalasse a escrever uma linha
sobre essa bela novela.
Em
que ela é parecida com “O falcão maltês”? Precisaria de tempo e de um acurado
estudo para responder satisfatoriamente tal pergunta.
Mas
resumindo, creio que a semelhança, além da propriamente literária (do mesmo
calibre), envolve, a meu ver, o gênero – ambas têm o cunho do “mistério”, uma a
morte do Juiz, a outra, a relíquia representada por uma estátua negra de uma
ave avaliada em um milhão de dólares – e por causa dela muita gente foi
sacrificada.
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