Total Pageviews

Saturday, February 25, 2017

QUEM SOU EU? - Hamilton Alves






Crônica de Hamilton Alves publicada em seu livro "Círculo Vicioso" - Bernúnca Editora/1996. www.bernunciaeditora.com.br

Thursday, February 23, 2017

O MUNDO REAL - Hamilton Alves







crônica de Hamilton Alves publicada em seu livro "Círculo Vicioso" - Bernúncia Editora/1996. www.bernunciaeditora.com.br

Monday, February 20, 2017

SERVIDÃO HUMANA - Hamilton Alves










crônica de Hamilton Alves publicada em seu livro "Barco da Noite" - Bernúncia Editora/1988. www.bernunciaeditora.com.br

Saturday, February 11, 2017

UMA VEZ COM UM POETA ILHÉU – Hamilton Alves

 

            O poeta ilhéu costumava freqüentar assiduamente um boteco e ali também tomava seus porres. Não ficava inconveniente mas depois de recitar meia dúzia de versos chatos, para os quais não lhe dava ouvidos nem me interessava ainda por poesia à época (porque a vida era tão intensa que ela própria era toda a poesia que podia então haurir), pedia-me que eu de minha vez lhe recitasse alguma coisa de meu repertório. Mas não era inclinado, como disse, à poesia, não sabia sequer formular um único verso. O poeta se enganava com as minhas possibilidades. Certamente, lia-me nos jornais da cidade num ou noutro artigo, numa ou noutra crônica, e, por isso, achava, bêbado, que fosse capaz de produzir um poema. Ou de dizer-lhe algo de minha lavra.
            Me olhava com olhos congestionados, fumegando um cigarro forte, com ira porque não era capaz de dizer uma única palavra ou formular um desgraçado verso.
            Então, sem outro recurso, voltava a dizer os próprios, incansavelmente. Quanto mais versos mais uísque. Só tomava uísque o poeta. E mais bêbado e mais chato ficava.
            Por que o tolerava?
            Sempre tive uma santa paciência com todos os chatos do mundo. E este era um chato especial – além de grande amigo, era poeta. Não era qualquer chato.
            Houve uma noite que tentei satisfazê-lo. Quis inventar uma frase poética. Dizer qualquer bobagem.
- Mas você, com sua capacidade de prosador, é incapaz de versejar?
- Não é um dote comum. – disse-lhe. – É coisa de gênios. Ou a poesia escolhe seus eleitos, não é o meu caso, que sou um pobre escriba de jornal.
Dito isso, nessa noite memorável, deixei o poeta com sua poesia chata e com seu copo de uísque, a ponto de muitas vezes Ter de sair do boteco segurado por amigos para não cair de bêbado.
            Houve outras noites, muitas outras em que de novo tive de aturar o poeta.
O boteco era o ponto de encontro e de confraternização de uma fauna conhecida na década de 50. Gente de jornal, de rádio, prostitutas (estas quando a noite se avizinhava da madrugada) como a Maria Galega (lembram-se dela?), que se aproximava às imediações do boteco, insinuava-se à porta, esperando por um convite de um  daqueles boêmios, para entrar, porque ela, na sua timidez, entendia que era uma marginal e que, por isso, podia não ser bem aceita entre aqueles outros marginais noctívagos.
            Lá no canto de sempre despontava o poeta. Para outros amigos recitava seus poemas soporíferos, que nem sempre encontrava ouvinte disponível nem voluntário.
            O poeta queria se impor como tal, mas só era poeta (ou só declinava seus poemas) a partir da terceira dose.
            No fim da noite, era levado ao sacrifício de ouvi-lo. Não dava outra. Atravessava-se aquele momento auspicioso, em que o boteco ganhava nova vida no trânsito da noite para a madrugada, sempre celebrada com maior libação alcóolica. Quando não espoucava um pinho. Ou uma loucura qualquer.
- Você não produz um verso... é uma pena... um talento desses a se perder em crônica esportiva! – abria-se comigo.
O que é que eu podia fazer nas circunstâncias? Só se inventasse. Só se dissesse qualquer tolice à guisa de poema.
Ele achava que eu tinha que Ter veia poética. Por que não sei explicar.
Até que uma noite, de tanto me aborrecer, acabei improvisando um poema qualquer:


“As garrafas nas prateleiras

tão fechadas e mudas;
os copos, ah, que belos
são os copos;
os fósforos... que se apagam
e se acendem;
a brasa dos cigarros, ah, que
beleza os cigarros;
o bêbado triste,
o bêbado chato,
dizendo seus poemas tolos”.

Ele me olhou, envergando a última dose e disse:

- Bonito, muito bonito; enfim, o poeta! 

Thursday, February 9, 2017

UMA GRANDE NOVELA – Hamilton Alves






            Tenho o hábito de dizer que, para se escrever uma novela ou qualquer coisa, mesmo uma história curta, é preciso ter, de início, uma boa frase, que tenha balanço, que marque o início do que virá depois.
            Uma das maiores novelas já escritas em todos os tempos tem a seguinte frase de abertura:
            "O perfume capitoso das rosas impregnava o estúdio; e quando a leve aragem do estio começou a sussurrar por entre as árvores do jardim, o aroma forte dos lilases entrou pela porta aberta, de mistura com o olor mais suave das flores róseas do pinheiro".
Duvido que se descubra o autor destas palavras. A não ser que se trate de um ledor tão competente ou que conheça tão profundamente literatura ou ainda tenha uma paixão especial por esse autor ou por essa novela, fatalmente não terá dificuldade em identificá-lo. Eu próprio, que a elejo como uma das minhas novelas preferidas, não bateria com a autoria dessa frase de abertura, se isso algum dia me fosse questionado.
Sempre mantive a opinião que uma novela, um romance, um conto, até mesmo uma crônica, ou ainda um poema, tem que ter uma abertura que revele seu conteúdo. Ou a sua grandeza. Antes de ter uma frase boa, um escritor não deve se abalançar à tarefa de compor uma obra. Deve, por isso, esperar o momento de ter essa frase inicial, por onde se enredará por páginas a fio.
A frase citada é de Oscar Wilde. É o começo de uma extraordinária novela, que é responsável pela grande notoriedade de Wilde no cenário das letras mundiais. O tema é um achado, que poucos escritores teriam chegado. Ou teriam descoberto. O retrato de um artista, que reflete uma pessoa viva, e, ambos, retrato e retratado, assumem papéis inversos na vida, no sentido de que, enquanto um envelhece, o outro mantém perene juventude. O tema, Wilde, segundo vem informado no prefácio, colheu-o no atelier de um pintor, quando esta questão foi aflorada.
Mas voltemos à questão de fundo desta crônica. A frase de abertura de "O Retrato de Dorian Gray" leva a supor a grande obra que se seguirá? Adivinhar-se-ia que Wilde, com ela, iniciaria sua obra prima? Não, de modo algum; trata-se de uma frase medíocre e até certo ponto vazada num estilo rococó.
Qualquer escritor menor poderia compô-la. É possível que alguém que tenha batido com sua feiúra supôs que o restante seria impregnado de uma banalidade mortal e certamente parou aí, não se atrevendo a ir adiante.
Bem verdade que, na frase seguinte, o leitor é já levado a outro patamar psicológico e, desde então, não largará mais até a página derradeira esta inexcedível história, tão bem trabalhada pelo gênio de Wilde.
Curioso que, como sou um leitor atípico, no sentido de que não me situo entre os devoradores de livros, que caracterizam seu feitio por lerem tudo o que lhes cai às mãos até o fim, só muito mais tarde de ter adquirido esse livro (quando amigos meus lhe fizeram os mais rasgados elogios e até ensaios críticos o assinalavam como obra extraordinária) é que resolvi penetrar nas duzentas páginas do meu exemplar.
Claro, nem é preciso dizer, foi um dos maiores deslumbramentos de leitor que já tive.
Mas a frase "overture" ( e este é o tema da crônica) não é de modo algum daquelas que façam, desde logo, presumir que ter-se-á pela frente uma obra fadada à imortalidade.
Segue vitoriosa a noção de que todo o grande livro deverá ter necessariamente uma boa frase inicial para ganhar a celebridade.
"O retrato de Dorian Gray" desmente essa tese.


Novembro/02.

Wednesday, February 8, 2017

UMA ANTOLOGIA DE POESIA SOSSOBRA INAPELAVELMENTE (de “Veneno antimonotonia – os melhores poemas e canções contra o tédio”, organizado por Eucanãa Ferraz, o efeito é supinamente pífio).- (por Hamilton Alves)*




            Eucanãa Ferraz organizou uma antologia com nomes festejadíssimos na poesia e em letras de música popular, enfileirando-se Ferreira Gullar, Chico, Caetano, João Cabral, Cazuza, Manuel Bandeira, Aldir Blanc, Mário Quintana, Gilberto Gil, Murilo Mendes, Noel Rosa, Vinícius de Moraes, Waly Salomão, Oswald de Andrade, Francisco Alvim, Adriana Calcanhoto, Antonio Cícero, Armando Freitas Filho e, por último, Ana Cristina César.
            No entanto, o resultado é pífio. Para não ser muito rigoroso, incluiria dois poemas que fogem ao ritmo da vulgaridade geral: um de Noel e outro de Murilo. Mas os outros, na presunção de se constituírem remédio antimonotonia, produziram justamente uma reação contrária. Ao menos neste plumitivo.
            Não tinha informação prévia de que a antologia com esse time estava à venda. O aspecto gráfico é excelente. Quer dizer, a casca é ótima e tenta o leitor pela bela aparência, mas o miolo não vale nada. O amante de poesia, que gostaria ou julgaria que, com essa gente da pesada, poderia colher ao menos um poema que valesse a pena, não tanto como antídoto do tédio, mas que levasse algum estímulo à alma, sai da leitura absolutamente frustrado, e, pior, arrependido de ter investido 34 paus por coisa tão ruim.
            Mas o leitor, incrédulo, por certo, me interpelará?
            Nem Bandeira lhe presenteou com uns bons versos? Nem Cabral? Nem Vinícius? Nem Murilo? Nem Quintana, tão celebrados?
            Não esperaria nada de letristas de música popular, que sei serem autores de letras antológicas, como é o caso de Chico ou de Caetano ou mesmo de Gil ou Noel ou Aldir. Tudo pode servir à letra de samba mas não à poesia. De poetas tão badalados e consagrados tipo Bandeira, Cabral, Drummond, Vinícius, Murilo, etc., era exigível alguma coisa que bem representasse sua poesia. No entanto, o fracasso sob esse aspecto (ou essa expectativa) foi (ou é) a marca do livro. Quem sabe Eucanãa é despido de bom gosto? Não o conheço. Nunca lhe ouvi a menor referência.
            Francamente, se reunir uma dúzia de nossos poetas locais, tenho certeza de que faria uma antologia de melhor qualidade.
            Tive a pachorra de ler toda a antologia (editada pela Objetiva) de uma assentada. Inicia-se com um poema de Drummond.

            “Admirável espírito de moços
            a vida te pertence. Os alvoroços,
            as iras e os entusiasmos que cultivas
            são as rosas do tempo, inquietas, vivas.
            Erra e procura e sofre e indaga e ama,
            que nas cinzas do amor perdura a flama”.

            Bem ruinzinho, não é?
            Mas como é do Drummond, nossomeglior fabbro”, há quem queira redimi-lo da ruindade.
            Óbvio que a qualidade de um poema não se pode ver pelo seu autor, mas pelo exame frio de seu teor. Se presta ou não. E esse poemeto drummoniano é de lascar.
            Recorri ao Bandeira, em desespero, por não encontrar nada interessante na dita antologia. Foi outra decepção. Eis um de sua autoria com o título “Na boca”:

            “Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
            Paixão
            Ciúme
            Dor daquilo que não se pode dizer
            Felizmente existe o álcool na vida
            E nos três dias de carnaval
            Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
            O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
            e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
            - Na boca! Na boca!
            Umas davam-lhe as costas com repugnância
            outras porém faziam-lhe a vontade.
            Ainda existem mulheres bastante puras para fazer
            vontade aos viciados
            Dorinha meu amor...
            Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe
            como o outro:
            - Na boca! Na boca!”

            O leitor sente-se de alguma forma curado da monotonia com esse poema do Bandeira, o grande Bandeira, que tenho em boa conta como poeta?
            No meu caso, o tédio se aprofundou a partir da leitura de tais poemas.
            Mas tentei Quintana.
            Quem sabe Quintana, com sua voz caracteristicamente simples e despojada, salvaria a antologia?
            Colhe-se à página 159:
            “Convite” – (é o título)
            “Basta de poemas para depois...
            Ó Vida, e se nós dois
            vivêssemos juntos?”

            Ou então Gullar? Eis um poema dele, com o título “Muitas Vozes”, reduzido à metade:

            “Meu poema
            é um tumulto:
            a fala
            que nele fala
            outras vozes
            arrasta em alarido.

            (Estamos todos nós
            cheios de vozes
            que o mais das vezes
            mal cabem em nossa voz:

            se dizes pêra
            acende-se um clarão
            um rastilho
            de tardes e açucares
            ou
            se azul disseres,
            pode ser que se agite
            o Egeu
            em tuas glândulas)”.

            Você conseguiu entender alguma coisa desse poema leitor? Nem o entendi nem muito menos espantou a monotonia, que, muito diferente do esperado, cresceu-me de forma desmesurada.
            A antologia, que traz esse títuloVeneno Antimonotonia”, é uma supina droga. Não se consegue colher um único poema que a redima da total mediocridade.
           

                                                                    

Tuesday, February 7, 2017

UMA ANTOLOGIA D’ O PASQUIM PARA MOSTRAR UM POUCO DO QUE FOI (organizado por Sérgio Augusto e Jaguar, com uma tiragem de 800 mil exemplares, a antologia – Volume I – “O Pasquim” conta um período – 1969-1971 – desse jornal) (por Hamilton Alves)*




A história d’O Pasquim, tal como na realidade se deu, isto é, como começou, quem teve a primeira idéia de lançá-lo, quais foram as dificuldades iniciais ou quem chegou antes ou depois, quem já estava lá badalando o sino convocando a moçada que veio a integrar o jornal e formar o grupo que se tornou, em pouco tempo, o mais famoso jamais reunido neste país, com tanta gente competente em sua área, entre cartunistas, humoristas e jornalistas, teve algumas versões já. Jaguar, ex-bancário (do Banco do Brasil), conforme já contou, foi um dos primeiros que partiram para o ataque. Depois veio, cada um de sua vez, os outros. A verdade é que essa geração de talentos dificilmente se formará na imprensa brasileira. Onde buscar, hoje ou em outro tempo ou lugar, gente do nível do Jaguar, Ziraldo, Millôr, Paulo Francis, Ivan Lessa, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Luiz Carlos Maciel, Fortuna, Claudius e tantos outros colaboradores (mesmo os que só esporadicamente assinavam uma matéria).
Difícil, muito difícil.
É como diz o ditado: Deus os criou e o Diabo os juntou.
O fato é que “O Pasquim” foi o maior fenômeno jornalístico já ocorrido neste país. Nada se lhe assemelha. A não ser, chegando bem perto, “Comício”, de Rubem Braga e Joel Silveira (que possuía igualmente uma patota respeitável).
E para que isso ocorresse, num momento histórico, em que se instalava a caretice neste país, foi preciso que eclodisse o movimento golpista de 64, que, como se sabe, durou duas décadas. As liberdades foram então suprimidas. Baixou o obscurantismo mais terrível por toda parte. A cultura (notadamente esta) se viu oprimida. A liberdade de expressão (por isso mesmo) foi pro brejo.
E a reação veio naturalmente.
“O Pasquim” nasceu sob o signo da baixaria.
E para combater a baixaria só a ironia fina. Ou o deboche inteligente, bem dosado, feito com arte.
Passou a ser o jornal (representativo da imprensa alternativa) mais vendido, com tiragens que até mesmo os fundadores se babavam.
Estava, de repente, descoberto o caminho para as Índias (ou o mapa da mina fora revelado à imprensa menor, dita também nanica).
Pela primeira vez um jornaleco de nada (o que corresponde à palavra “pasquim” nos dicionários) perturbava a ordem instalada.
Era preciso conter a rapaziada.
Não foi à toa que, em determinado momento, o jornal não só passou a ser censurado como, por igual, os que assinavam artigos ou faziam críticas ao regime por via de cartuns foram presos. Não ficou ninguém na redação. Mas um outro grupo solidário veio substituir os titulares, garantindo, assim, a sobrevivência e a continuidade do jornal. Foi o caso de Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Chico Anísio, Antonio Callado e outros.
Há pouco, foi publicada numa outra revista uma entrevista com o grupo (Millôr, Jaguar, Ziraldo, Sérgio Cabral e outros) para falar sobre os grandes dias d’O Pasquim. A história é fragmentada. Mas muita coisa veio à baila. Ou à luz sobre os primeiros tempos.
Jaguar conta que a administração do “Pasquim” era péssima. Toda a arrecadação era bebida ou consumida. Até que alguém quis por a casa em ordem. Mas recorrer a que método se não havia método entre esses menestréis? O jornal, no fim de seu último período, ficou com uma dívida tamanho família. Como pagá-la? Ou como pagar os colaboradores, que queriam ver “correr sangue”. Ninguém trabalha de graça, até porque o jornal estava vendendo bem.
No ultimo round, as dívidas e a desorganização do grupo foram incontroláveis e, por isso e por outras coisas mais, o jornal faliu.
Ficou a história, única no jornalismo.
Cada um foi cantar noutra freguesia. Ou escrever em outros jornais, mas levando a fama que tinham adquirido através d’O Pasquim. Bem verdade que alguns já traziam prestígio de sua larga passagem por outros órgãos de imprensa. Como foi (e é) o caso de Millôr, que vinha de sua gloriosa passagem por uma seção na revista “O Cruzeiro”, onde, segundo ele mesmo conta, trabalhou vinte anos com o “Pif-Paf”, que era então o riso nacional. O colaborador arregimentado ao acaso típico foi Sérgio Cabral. Encontrou-se não sei com quem que fazia parte da redação e perguntou se podia assinar uns artigos. Foi logo admitido. Com a pressão da “redentora” teve que se esconder. Revelou que seu melhor esconderijo foi na praia de Copacabana, utilizando-se de um chapéu de palha de abas largas. Quem o reconheceria? Os outros não sei a que recorreram para escapar ao assédio da polícia da ditadura.
Acabaram todos em cana, como dito. Mas foi por pouco tempo. À época, não vingava o hábeas corpus. A ordem jurídica fora igualmente suspensa.
Para relembrar esses dias gloriosos e não tão gloriosos assim, Sérgio Augusto e Jaguar lançaram uma antologia (1° volume) de um período (69 a 71), que, ainda que talvez não representativo do melhor, dá uma idéia da operatividade desse time que encantou o público por longo período, constituindo-se praticamente na única voz discordante do estado de coisas que então vingava.
Não era uma oposição séria.
Nada era sério n’O Pasquim.
Imperava a gozação mais refinada.
Praticado por profissionais de primeira, cujo “pedigree” era de alto coturno, fez balançar o coreto. A ponto de haver o que houve, ou seja, a censura e a repressão mais ferozes.
Há bons momentos na antologia, com matérias de Millôr, Jaguar, Paulo Francis, Fortuna, Ziraldo, Claudius (que esbanjavam talento não apenas escrevendo mas com seus desenhos e charges), com as colaborações que  fizeram a fama do jornal.
Por alguns caraminguás, pode-se adquirir um exemplar e se passar alguns momentos de bom humor e talento em companhia desse grupo, que não apenas fez o melhor jornalismo brasileiro de todas as épocas, mas fez principalmente história.
Com o fechamento do jornal (não podia evidentemente durar sempre até porque a causa que o justificou, o golpe de 64, tinha também chegado ao fim), a turma que o escreveu ou produziu se espalhou, voltando cada qual ao seu ninho. Com a só diferença de Ivan Lessa, que resolveu não agüentar os novos tempos e foi se esconder em Londres, onde está até hoje e de onde mandou há pouco um livro de crônicas de seu dia a dia como colaborador da BBC, “O luar e a rainha”.
Paulo Francis não só mudou de jornal como de linha política. De esquerda passou à direita, a ponto de Jaguar, certa vez, ter feito o seguinte comentário:
- O Paulo Francis que anda por aí é um impostor.
De lá para cá o que é que apareceu de interessante na imprensa tupiniquim?
Nada parecido, nem de longe, com “O Pasquim”.

XXX

Abril/06.-


Monday, February 6, 2017

UM POEMA DE BROWNING – Hamilton Alves

 

            O poeta inglês Browning tem um poema lindíssimo, que vim de conhecer há pouco, com o título de “O amante de Porfíria”. Trata-se, resumidamente, do seguinte: um homem se apaixona desesperadamente por uma mulher. “Esta noite a chuva chegou”, diz o primeiro verso. A chuva contextualiza, de certa forma, o restante dos versos. Abre caminho a que, a certa altura, o poeta narre que, quando a amada chegou, sentou-se ao lado dele. E, súbito, tudo pareceu-se aquecer à sua presença. Desnudou os ombros alvos, macios, de cabeleireira loura, em desalinho, inclinou-se levando a face dele a aninhar-se à face dela. Ciciou seu amor por ele, ela fraca para cortar as amarras da vaidade, e entregar-se para sempre para ele. Teve a certeza de que a amante o adorava; o coração se expandia enquanto meditava no que faria. Naquele instante, ela era sua. Descobriu, então, o que lhe cabia fazer. Com o seu cabelo entrançou uma corda loira e longa, que lhe enrolou três vezes ao pescoço. Estrangulou-a. ela não sentiu dor. Abriu-lhe as pálpebras e voltaram a sorrir seus olhos azuis imaculados. A seguir, desapertou a trança que lhe cingia o pescoço e sua face voltou a avivar-se num rubor sob o beijo que lhe deu. Amparou-lhe a cabeça, só que dessa vez foi o ombro dele que susteve a cabeça que sobre ele descai. Minúscula cabeça rosada e sorridente tão feliz de possuir tudo o que queria, de Ter de súbito cessado tudo o que desdenhava e de em vez disso Ter conquistado o amor dele. O amor de Porfíria –ela não podia imaginar como o seu mais grato desejo ia se realizar.
            Termina o poema com estes derradeiros versos, que coloco aqui em forma de prosa:
            “E aqui estamos juntos, sentados, agora; ficamos imóveis durante a noite inteira e Deus está emudecido”.
            A dois amigos mandei esse poema, um dos quais é poeta; o outro, apreciador do gênero, tem também bom senso crítico.
            Num dia desses, o primeiro me surpreendeu com o comentário de que lhe pareceu que o amante mata a amada não apenas para sublimar o amor ou para perpetuá-lo, impedindo que se lançasse no abismo do efêmero, mas que lhe parecia que outro aspecto se adivinhava: não pudera consumar a cópula com a amada.
            Essa hipótese me pareceu despropositada e lhe retruquei que, no que se referia ao ato sexual, me parecia circunstância absolutamente irrelevante. O amante não mataria a mulher por se ver impotente, o que, a admitir-se, o poema perderia inteiramente o impacto de beleza que tem.
            Comentei essa questão com o segundo amigo para tirá-la a limpo. No primeiro momento, entendeu que tal interpretação não cabia. A intenção do amante, concordava com o meu ponto de vista, era a perenização do amor, sujeito a todas as vicissitudes das transformações porque passa a alma ou os sentimentos humanos.
            Dias depois, esse amigo me diz que lera com mais vagar e atenção o poema de Browning e chegara também, meditando melhor, à opinião do outro, segundo a qual também entrou no ato de morte o problema da impotência.
            Mantive irredutível a minha posição inicial de que essa interpretação do assassínio  desvirtua de sua grandeza o poema, até porque a satisfação do sexo é um ato animal, que não se compraz à transcendência da poesia de Browning, ou das intenções que deixou impressas nesse trabalho. Embora ambos admitam que a outra ilação, a de perpetuação do amor ou da paixão amorosa, é também de considerar, o fato é que as duas interpretações, se aceitas, não convivem bem, uma empobrecendo a outra.
            Já um terceiro amigo me levou o livro de poemas de Browning. Não o tenho encontrado nos últimos tempos, razão pela qual não tive a oportunidade de conhecer seus pensamento quanto à interpretação que colheu desse poema.
            Trata-se de um eminente homem de letras, que poderia nos tirar a mim e aos meus dois outros amigos desse dilema, não obstante da minha parte não esteja disposto a ceder a quem quer que espose a tese deles.
            O leitor não tem o poema integral, apenas alguns dados. Daí que possa Ter dificuldades de bem interpretá-lo.
Insisto apenas num único ponto, que, para mim, é capital: aceitar que o amante recorreu ao homicídio da amada porque não pôde concretizar a posse me parece reduzir a beleza do poema ou até mesmo desfigurá-lo.

            Browning quis colocar o sentimento do amor num nível de totalidade, eternizá-lo, para que nenhum outro fato humano fosse capaz de destruí-lo. É o que penso.

Saturday, February 4, 2017

“UM ÔNIBUS E QUATRO DESTINOS”, UM CLÁSSICO LITERÁRIO (Francisco José Pereira, Silveira de Souza e Holdemar Menezes conceberam uma novela que marcou época nos anais da literatura catarinense). (por Hamilton Alves)

 

            Lendo há pouco uma resenha de Ruy Castro sobre “O Falcão Maltês”, de Dashiell Hammett, que é um dos clássicos maiores da literatura “noir” em plano mundial, fui relê-lo. A segunda leitura é sempre melhor que a primeira. Ou isso é apenas meia verdade? Não interessa muito saber se é ou não melhor. O fato é que agora me dou conta que houve aspectos na segunda leitura que ou me passaram despercebidos na primeira ou não os fixei como agora o faço ou o fiz.
            Não é necessário dizer que Ruy é um craque da resenha. Sobre a obra de Hammett se revela absolutamente insuperável na análise exaustiva que faz. Antes havia feito uma outra, sobre “Servidão Humana” (refiro-me à ‘Obras Primas que poucos leram’, organizado por Heloisa Seixas, e que traz um sem número de notáveis e muito oportunos comentários sobre vários romances e novelas que marcaram definitivamente a literatura mundial de todos os tempos).
            Sobre “Servidão Humana” não foi, na verdade, muito feliz. Na minha visão particular, sobre o personagem Phillip Carey, me pareceu ter revelado certas características que não refletem absolutamente bem esse grande personagem.
            Mas voltando ao “Falcão Maltês”, em certo momento dessa releitura, lembrou-me compará-lo a uma novela semelhante (ainda que não na linha do ‘roman noir’, a rigor), escrita por três escritores catarinenses (um não tão catarinense, Holdemar Menezes), Francisco José Pereira e Silveira de Souza, editada pela Movimento, de Porto Alegre, que foi (ou tem sido) pródiga em publicar autores deste Estado, graças a esse infatigável homem promotor da cultura que é Carlos Appel.
            A edição desse livro data de 1994.
Título: “Um ônibus e quatro destinos”.
Em que pode se diferenciar o valor literário de uma (a de Hammett) e a de outra (de três escritores locais)?
A única diferença possível, sob qualquer aspecto, é que a novela do americano (grande caráter, que, para não dedurar amigos, suspeitos de atividades anti-americanas ou ligados ao comunismo, preferiu passar algum tempo na prisão) virou um dos maiores clássicos do cinema, “Relíquia Macabra”, com Humphrey Bogart, Sidney Greenstreet, Peter Lore e outros, com a direção de John Huston.
No mais, as duas novelas se eqüivalem – e não vai qualquer exagero nisso. É só lê-las e compará-las.
Quando li “Um ônibus e quatro destinos”, fiquei tão entusiasmado com sua qualidade literária que a comuniquei aos autores (não resisto em fazê-lo todas as vezes que isso ocorre). Além disso, fui ao jornal em que registrei num pequeno artigo a minha impressão de leitura. Lembro-me que pus em destaque o fato incontroverso de que, em matéria literária, talvez fosse a primeira vez que nosso Estado dava um salto de qualidade na vida literária do país, embora a novela tivesse (até hoje) se circunscrito aos limites de nossas fronteiras. Acho que, como outros sucessos iguais, o fato não repercutiu além da ponte Hercílio Luz, o que tem sido rotina em nossa vida cultural. Devo ressaltar que esse êxito literário teria grande repercussão nacional caso houvesse melhor tratamento de distribuição da obra, em se tratando de novela. Em poesia já tínhamos logrado grande projeção com Cruz e Souza e Luiz Delfino, até hoje insuperados no tocante à notoriedade fora de nossos limites geográficos.
Para o Chico Pereira tive oportunidade de dizer, algum tempo depois do lançamento, que o grupo perdera uma excelente oportunidade de ter dado um título mais literário à novela. – Qual? – perguntou-me.- O camafeu egípcio. – respondi.
É que, junto do corpo do juiz assassinado, logo depois de ter saído de uma roda de pôquer no Clube Doze de Agosto, fora encontrado um camafeu egípcio, que, na verdade, não tem nada a ver em relação ao crime.
No registro jornalístico que fiz anotei esse pormenor. Chico ponderou e achou que eu podia ter alguma razão. A escolha do título não fora tão acertada.
Em geral, quando feito por vários autores, mormente tratando-se de um romance, o que ocorre com freqüência é uma certa falta de homogeneidade do texto. E isso é muito natural que ocorra. Cada escritor tem seu próprio estilo. Mas milagrosamente os três (Chico, Holdemar e Silveira) alcançam um equilíbrio muito bom, a ponto de, se não se soubesse que o livro fora escrito pelos três, podia-se concluir que era de um único autor.
Valendo-me de meu artigo, publicado em dezembro de 1994 neste jornal, sob o título “Um ônibus especial”, sumariando o livro, comentei: “Trata-se de uma novela com laivos detetivescos, com um crime que é revelado logo nas páginas iniciais, envolvendo a morte de um Juiz de Direito, depois de ter saído de uma roda de pôquer no Clube Doze de Agosto. O livro poderia ter o título (mais literário) de “O camafeu egípcio” – lembraria o de Hammett, “O falcão maltês”. A família do magistrado, a mulher e o filho, muda-se para Porto Alegre. Depois de alguns anos, o filho, Dr. Thales, formado em medicina, retorna à Ilha para exercer a profissão e também para de alguma forma desvendar a misteriosa morte do pai. Nisso está disposto a se empenhar até as últimas conseqüências. Os capítulos que se referem ao Dr. Thales são confiados a Chico Pereira, que, com categoria, os desenvolve dentro de uma trama muito bem urdida. Além dele, o médico, viajam no ônibus da empresa São Cristóvão, que existia à época, mais três personagens: a jovem e de certo modo desditosa Solange, que vem à capital para submeter-se a um aborto, engravidada perlo patrão, empresário de Criciúma; Teresa, que vem ao encontro de Carlos para a prática de um ato adúltero, sendo ele quase noivo de sua filha adotiva; e, por último, Gustavo Paiva, que é estudante de Direito e poeta. Teresa vem de Laguna, onde o marido trabalha como assistente de uma empresa portuária, e Paiva origina-se de Porto Alegre.
No dia da morte do Juiz, encontra-se junto de seu corpo um “camafeu egípcio”, que, no entanto, não conduzirá à elucidação do mistério das circunstâncias do crime. Paralelamente aos destinos que estão traçados para esses personagens, o escritor, do qual se ocupa magistralmente Silveira de Souza, vive problemas marginais, não apenas quanto à condução da narrativa do romance, mas ao envolvimento com a umbanda, de que participa com outros personagens igualmente curiosos”.
Termino essas considerações assim:
“Vale, porém, registrar que ‘Um ônibus e quatro destinos” é um dos momentos culminantes da literatura catarinense, que, assim, se põe ao nível do que há de melhor literariamente no país”.
Acho que, além de mim, não houve mais ninguém que se abalasse a escrever uma linha sobre essa bela novela.
Em que ela é parecida com “O falcão maltês”? Precisaria de tempo e de um acurado estudo para responder satisfatoriamente tal pergunta.
Mas resumindo, creio que a semelhança, além da propriamente literária (do mesmo calibre), envolve, a meu ver, o gênero – ambas têm o cunho do “mistério”, uma a morte do Juiz, a outra, a relíquia representada por uma estátua negra de uma ave avaliada em um milhão de dólares – e por causa dela muita gente foi sacrificada.