Num dos contos de Rubem Fonseca, em
seu livro “Pequenas Criaturas”, dois personagens se encontram num local
chiaroscuro, como ele anota, uma cor meio palescente (como ele diz também), e
ali, fugidos de uma festa chata de fim de ano, começam a conversar, ele atraído
pela sedução do escuro, alegando que a treva permite a plena lucidez.
Ela revela-se desenhista industrial.
E, por isso, ele lhe pergunta:
-
Você já desenhou uma cadeira?
Ela
diz que cadeira ainda não, mas já desenhou profissionalmente um relógio,
torradeira de pão, calendário eletrônico, coisas mais fáceis.
A
pergunta, se o leitor é um pouco sensível às artes gráficas, leva a um
aprofundamento da questão estética.
É
possível que se julgue que o desenho de uma cadeira seja uma coisa banal, que
qualquer um pode fazer. E, no entanto, não é bem assim; há certa sutileza; em
todas as coisas deste mundo há sutileza; nós é que temos a mania de simplificar
muito as coisas.
Eu
não seria capaz de desenhar uma cadeira. Desenhar uma cadeira pode ser uma
coisa reles. Uma cadeira qualquer todo mundo desenha, até o mais imbecil dos
homens. Mas não se trata apenas de simplesmente desenhar uma cadeira. A cadeira
objeto da pergunta envolve certamente uma cadeira original. Porque para desenhar
uma cadeira não precisaria existir uma pessoa que tivesse passado anos numa
faculdade para se formar na área de desenho industrial. A cadeira em questão ou
implícita na pergunta “Você já desenhou uma cadeira?” é algo absolutamente
revolucionário, uma cadeira que nunca existiu semelhante, inteiramente nova aos
olhos humanos.
Tanto
é que à pergunta o personagem de Fonseca responde, como vimos:
-
Uma cadeira nunca desenhei.
E
passa , a seguir, a nomear coisas mais fáceis.
Não
tenho particularmente tendência à tal profissão. Há que ter vocação. Ter jeito
para desenhar. Nunca tive esse dom. Lembro-me que deixei de fazer o exame de
segunda época, certa ocasião, no curso ginasial, porque além de duas outras
matérias tinha rodado em desenho. O professor de desenho botou um vaso em cima
de uma coluna (era um cubo) para que os alunos o desenhassem de seu ângulo de
visão, incluindo a luz do sol, com a projeção da sombra.
Depois
de concluído meu desenho, que levei um tempão para executar, detestei-o e
achava que não seria merecedor de uma boa nota. Desenho não devia constar
obrigatoriamente de currículo escolar. Nasce-se com certos pendores. Desenhar
está entre tais inclinações. Ou se adquire de berço ou não se adquire nunca.
A
personagem era formada em desenho industrial e nunca tinha desenhado uma
cadeira.
Na
verdade, não é nada fácil desenhar uma cadeira.
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