O poeta
ilhéu costumava frequentar assiduamente um boteco e ali também tomava seus
porres. Não ficava inconveniente, mas depois de recitar meia dúzia de versos
chatos, para os quais não lhe dava ouvidos nem me interessava ainda por poesia
à época (porque a vida era tão intensa que ela própria era toda a poesia que
podia então haurir), pedia-me que eu de minha vez lhe recitasse alguma coisa de
meu repertório. Mas não era inclinado, como disse, à poesia, não sabia sequer
formular um único verso. O poeta se enganava com as minhas possibilidades.
Certamente, lia-me nos jornais da cidade num ou noutro artigo, numa ou noutra
crônica, e, por isso, achava, bêbado, que fosse capaz de produzir um poema. Ou
de dizer-lhe algo de minha lavra.
Olhava-me com olhos congestionados,
fumegando um cigarro forte, com ira porque não era capaz de dizer uma única
palavra ou formular um desgraçado verso.
Então, sem outro recurso, voltava a
dizer os próprios, incansavelmente. Quanto mais versos mais uísque. Só tomava
uísque o poeta. E mais bêbado e mais chato ficava.
Por que o tolerava?
Sempre tive uma santa paciência com
todos os chatos do mundo. E este era um chato especial – além de grande amigo,
era poeta. Não era qualquer chato.
Houve uma noite que tentei
satisfazê-lo. Quis inventar uma frase poética. Dizer qualquer bobagem.
-
Mas você, com sua capacidade de prosador, é incapaz de versejar?
-
Não é um dote comum. – disse-lhe. – É coisa de gênios. Ou a poesia escolhe seus
eleitos, não é o meu caso, que sou um pobre escriba de jornal.
Dito
isso, nessa noite memorável, deixei o poeta com sua poesia chata e com seu copo
de uísque, a ponto de muitas vezes ter de sair do boteco segurado por amigos
para não cair de bêbado.
Houve outras noites, muitas outras
em que de novo tive de aturar o poeta.
O
boteco era o ponto de encontro e de confraternização de uma fauna conhecida na
década de 50. Gente de jornal, de rádio, prostitutas (estas quando a noite se
avizinhava da madrugada) como a Maria Galega (lembram-se dela?), que se
aproximava às imediações do boteco, insinuava-se à porta, esperando por um
convite de um daqueles boêmios, para entrar, porque ela, na sua timidez,
entendia que era uma marginal e que, por isso, podia não ser bem aceita entre
aqueles outros marginais noctívagos.
Lá no canto de sempre despontava o
poeta. Para outros amigos recitava seus poemas soporíferos, que nem sempre
encontrava ouvinte disponível nem voluntário.
O poeta queria se impor como tal,
mas só era poeta (ou só declinava seus poemas) a partir da terceira dose.
No fim da noite, era levado ao
sacrifício de ouvi-lo. Não dava outra. Atravessava-se aquele momento
auspicioso, em que o boteco ganhava nova vida no trânsito da noite para a
madrugada, sempre celebrada com maior libação alcoólica. Quando não espoucava
um pinho. Ou uma loucura qualquer.
-
Você não produz um verso... é uma pena... um talento desses a se perder em
crônica esportiva! – abria-se comigo.
O
que é que eu podia fazer nas circunstâncias? Só se inventasse. Só se dissesse
qualquer tolice a guisa de poema.
Ele
achava que eu tinha que ter veia poética. Por que não sei explicar.
Até
que uma noite, de tanto me aborrecer, acabei improvisando um poema qualquer:
"As garrafas nas prateleiras
tão fechadas e mudas;
os copos, ah, que belos
são os copos;
os fósforos... que se apagam
e se acendem;
a brasa dos cigarros, ah, que
beleza os cigarros;
o bêbado triste,
o bêbado chato,
dizendo seus poemas tolos”.
Ele
me olhou, envergando a última dose e disse:
-
Bonito, muito bonito; enfim, o poeta!
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