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Tuesday, May 21, 2013

UMA VEZ COM UM POETA ILHÉU - Hamilton Alves


 

            O poeta ilhéu costumava frequentar assiduamente um boteco e ali também tomava seus porres. Não ficava inconveniente, mas depois de recitar meia dúzia de versos chatos, para os quais não lhe dava ouvidos nem me interessava ainda por poesia à época (porque a vida era tão intensa que ela própria era toda a poesia que podia então haurir), pedia-me que eu de minha vez lhe recitasse alguma coisa de meu repertório. Mas não era inclinado, como disse, à poesia, não sabia sequer formular um único verso. O poeta se enganava com as minhas possibilidades. Certamente, lia-me nos jornais da cidade num ou noutro artigo, numa ou noutra crônica, e, por isso, achava, bêbado, que fosse capaz de produzir um poema. Ou de dizer-lhe algo de minha lavra.
            Olhava-me com olhos congestionados, fumegando um cigarro forte, com ira porque não era capaz de dizer uma única palavra ou formular um desgraçado verso.
            Então, sem outro recurso, voltava a dizer os próprios, incansavelmente. Quanto mais versos mais uísque. Só tomava uísque o poeta. E mais bêbado e mais chato ficava.
            Por que o tolerava?
            Sempre tive uma santa paciência com todos os chatos do mundo. E este era um chato especial – além de grande amigo, era poeta. Não era qualquer chato.
            Houve uma noite que tentei satisfazê-lo. Quis inventar uma frase poética. Dizer qualquer bobagem.
- Mas você, com sua capacidade de prosador, é incapaz de versejar?
- Não é um dote comum. – disse-lhe. – É coisa de gênios. Ou a poesia escolhe seus eleitos, não é o meu caso, que sou um pobre escriba de jornal.
Dito isso, nessa noite memorável, deixei o poeta com sua poesia chata e com seu copo de uísque, a ponto de muitas vezes ter de sair do boteco segurado por amigos para não cair de bêbado.
            Houve outras noites, muitas outras em que de novo tive de aturar o poeta.
O boteco era o ponto de encontro e de confraternização de uma fauna conhecida na década de 50. Gente de jornal, de rádio, prostitutas (estas quando a noite se avizinhava da madrugada) como a Maria Galega (lembram-se dela?), que se aproximava às imediações do boteco, insinuava-se à porta, esperando por um convite de um daqueles boêmios, para entrar, porque ela, na sua timidez, entendia que era uma marginal e que, por isso, podia não ser bem aceita entre aqueles outros marginais noctívagos.
            Lá no canto de sempre despontava o poeta. Para outros amigos recitava seus poemas soporíferos, que nem sempre encontrava ouvinte disponível nem voluntário.
            O poeta queria se impor como tal, mas só era poeta (ou só declinava seus poemas) a partir da terceira dose.
            No fim da noite, era levado ao sacrifício de ouvi-lo. Não dava outra. Atravessava-se aquele momento auspicioso, em que o boteco ganhava nova vida no trânsito da noite para a madrugada, sempre celebrada com maior libação alcoólica. Quando não espoucava um pinho. Ou uma loucura qualquer.
- Você não produz um verso... é uma pena... um talento desses a se perder em crônica esportiva! – abria-se comigo.
O que é que eu podia fazer nas circunstâncias? Só se inventasse. Só se dissesse qualquer tolice a guisa de poema.
Ele achava que eu tinha que ter veia poética. Por que não sei explicar.
Até que uma noite, de tanto me aborrecer, acabei improvisando um poema qualquer:


           "As garrafas nas prateleiras
tão fechadas e mudas;
os copos, ah, que belos
são os copos;
os fósforos... que se apagam
e se acendem;
a brasa dos cigarros, ah, que
beleza os cigarros;
o bêbado triste,
o bêbado chato,
dizendo seus poemas tolos”.

Ele me olhou, envergando a última dose e disse:
- Bonito, muito bonito; enfim, o poeta! 

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