Um
amigo me
telefonou outro dia
para me informar que um resenhista de um
jornal de Curitiba tinha
desancado a obra clássica
de Machado de Assis, “Dom Casmurro”. Em seguida, foi
apontando trechos que
ele mesmo
ressaltava como sendo absolutamente indignos
de um dos maiores
romances não
apenas da literatura
de língua portuguesa mas que alcança
fama mundial. Ainda
há pouco, uma escritora americana, Helen Caldwell, escreveu um alentado ensaio, de perto
de duzentas páginas, sobre o problema
que salta
dessa obra referente
ao adultério de Capitu, que já foi também matéria
de julgamento de um
tribunal eleito pela
“Folha de S. Paulo”, tendo na presidência o Ministro
do STF Sepúlveda Pertence, integrado de figuras eminentes
das letras nacionais.
O resultado é conhecido:
Capitu foi inocentada. Mas essa opinião não é pacífica. Há ferrenhos
adeptos de que,
sem dúvida,
ela incorreu na prática
da infidelidade em
relação ao marido
Bentinho, envolvendo-se com seu melhor amigo,
Escobar, de quem o filho
de ambos era
a cara ( ou o
retrato).
Mas
afora essa questão, que
avulta no enredo e leva
tanta gente,
até hoje,
quase um
século da morte
de Machado, a discuti-la cada vez com redobrado
entusiasmo, agora
se nos depara outra:
a de um resenhista de jornal, que
houve por bem
dirigir os maiores
ataques à grandeza
da novela machadiana,
taxando-a de “menor” ou de não possuir toda a categoria com que é festejada, à unanimidade, por
críticos de renome.
Ao meu
informante declarei que, se fosse editor do jornal,
vetaria essa matéria, pois,
a meu ver, não condiz com
a verdade e não
faz justiça ao teor
incomparável do romance,
narrado de uma forma consistente, segura e com rara maestria.
Foi o bastante
para que, entre nós se
instalasse uma polêmica, que se resumiu ao fato
de meu interlocutor
entender que
o direito de expressão
do pensamento é livre
e, agindo como disse que agiria, no caso,
estaria praticando um ato de intolerável
autoritarismo.
Levamos esse
debate a um ponto inimaginável, pois, a certa altura, quando
procurei argumentar que
o direito da livre
expressão colidia com
meu direito
de, na qualidade de editor
de um jornal
de cultura, impugnar
a publicação de um tal
trabalho, não
quis entender assim
e bateu-se na tese de que o que eu estava praticando era,
inegavelmente, um ato
de brutal discriminação
ou violência
contra uma opinião
que podia, eventualmente,
ser discutida mas
não censurada.
Após alguns dias,
fui ler o artigo,
tendo autor inclusive
aplaudido a opinião de Millôr Fernandes
de que Bentinho
tem manifesta característica
“gay”. Li a entrevista
em que
o ilustre humorista
manifestou esse estranho
e infeliz pensamento
sobre a personalidade
da grande personagem
de Machado. A princípio,
não quis crer
que Millôr fosse capaz
de perpetrar um ato de burrice igual. Mas redimi-o de seu
pecado porque,
afinal de contas,
todos podemos ser
levados a equívocos
e exageros. Mas
que o articulista
do jornal curitibano
não apenas
aplaudisse mas desse seu aval à opinião de Millôr me
pareceu uma coisa absurda.
Em nenhum
momento da história
(ou narrativa),
Bentinho passa
a idéia de ser
homossexual. Até
pelo contrário,
era gamadíssimo por
sua Capitu. Tinha
um ciúme
dela doentio, ciúme
que, no dizer
de alguns abalizados
críticos, levou-o à convicção
de que a mulher
o havia enganado com o inseparável amigo
Escobar, que morrera afogado nas águas do Flamengo
e em cujo
velório Capitu, no dizer
do marido, lança-lhe um olhar envolvente cheio de ternura
e dor.
A certa
altura, num dos capítulos
finais, Bentinho
declara: “Capitu tinha meia dúzia de gestos únicos
na terra”. E, ao olhá-la, desvaneceu-se a tal ponto que lhe cobriu
o rosto de beijos.
Isso
é, por acaso,
atitude que leve alguém a supor que se trate de
um homossexual.
Ademais, Machado
não o retrataria jamais
como tal.
No fim da vida,
Bentinho era
um casmurro,
apelido que
granjeou com os amigos
próximos e com
o companheiro do bonde
que o levava um
dia para a casa, que lhe mostrou seus
poemas. Bentinho
pegou no sono. O outro
percebeu o gesto de indiferença,
esquivou-se de mostrar-lhe os poemas, quando Bentinho
despertando de rápida sonolência, lhe
diz: “Continue, continue...” Mas não vê ânimo de voltar a lê-los.
Ficou, desde então,
a alcunha de “Casmurro”.
Daí o título do livro,
que Machado
justifica por esse
incidente. “Se até
o fim deste livro
não achar outro título, que fique esse mesmo” – diz ele.
Um
“casmurro” em
geral, não
tem nenhuma tendência à homossexualidade.
Não
insisto mais nesse ponto,
até porque
não só
me repugna o tratamento
desse problema, como
do mesmo passo
o considero absolutamente fora de propósito.
Mas
o que salta
das páginas (ou
da crítica) do jornalista
referido, que mete o pau na obra de Machado (trata-se, volto a dizer,
de um indiscutível
clássico de nossa
literatura), são
outros fatos,
como, por
exemplo, a falta
de consistência do personagem
ou de sua
flagrante pusilanimidade.
Ora age de uma forma,
ora de outra.
No fundo, é um
indivíduo sem
caráter sólido,
deixando-se levar pela
mãe, por
José Dias, por
Capitu, tornando-se um joguete nas mãos
desses três.
Ainda
que se admita que
Bentinho seja uma personalidade
conflituosa ou cheio
de indecisões ou
até mesmo
portador de uma lama
frágil, sem
muita força
de caráter, no sentido
de não saber
se determinar em
momentos decisivos,
isso absolutamente
não o denigre ou
compromete. Todas as criaturas são assim. O conflito nasce e morre com
o homem. Todos
temos conflitos, menores
ou maiores.
Bentinho era
filho único,
muito preso à
mãe, a quem
venerava mais que
tudo. Mas
não perde, por
isso, sua
grandeza humana
ou de grande
personagem, talvez
um dos maiores
de toda a literatura
daqui d’além mar.
Para tirar minhas dúvidas sobre a
crítica do jornalista
curitibano, fui reler “Dom Casmurro”.
Já
o tinha lido certa
feita (ou
relido) para fazer julgamento do adultério
de Capitu. Cheguei ao cabo e ao fim sem poder tomar partido. Dei a edição
em que
fiz esse cuidadoso
exame ao amigo
com o qual
discutira o direito do articulista de emitir sua infeliz opinião sobre a
obra.
Sobre
o adultério a dúvida
se instala no espírito do leitor mais atento. Numa passagem
final da obra,
quando Capitu e o filho
Ezequiel se preparam para ir
à missa, o menino
vem de uma sala, dirigindo-se ao pai. Bentinho e
Capitu espantados notam a semelhança com Escobar, que
pareceu avultar nessa ocasião
mais que
em outra
qualquer.
Bentinho comenta: “Capitu e eu,
involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o
outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura”.
Esse, porém, não é o caso fulcral
desta resenha, como sabe o leitor. E, sim, o de necessário reparo que se há de
fazer às aleivosias de um crítico que se comprazeu em menoscabar uma obra que,
sem favor, é um dos ápices de nossas letras. Talvez seja por isso que tenha
tantos detratores que, sem a necessária bagagem ou instrumentos para tal,
querem subir à montanha. Mas esta se encontra a uma distância incomensurável de
seu despreparo. Ou incompetência.
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