Até agora, vinte anos após a
morte de Borges, que escolheu a Suíça (Genebra) para ser o local de sua última
morada, a intelectualidade de seu país,
perplexa, se pergunta por que o escritor teria tomado tal decisão.
Muitas especulações se fazem em
torno desse assunto, uns aludindo ao fato de que Borges nunca foi considerado
por seu povo como o grande escritor que acabou sendo reconhecido mundialmente,
outros referindo-se à influência de
Maria Kodama, que, por razões também
desconhecidas, levou-o a optar pela Suíça para lá acabar seus dias.
Vivendo sempre em Buenos Aires , tendo
ali iniciado sua vida
e sua atividade literária,
cercado sempre de grandes amigos e amigas, como Bioy Casares, que foi o mais dileto
de todos, Macedonio Fernandes, com o
qual reservava as tardes de sábado para um longo papo, Maria Esther Vasquez,
Stela Ocanto, que o trouxe para a revista Sur, que durante anos editou, vivendo
com sua mãe, por último, num apartamento de um prédio na rua Maipu, no centro
da cidade, é estranhável que, no fim da vida, fizesse tal opção, que pegou
todos desprevenidos, não só o povo argentino mas as pessoas que mais de perto com ele privavam.
Um repórter de jornal disse que
Kodama é que o teria levado a escolher a Suíça para morrer, revelando que se
queixou a sua empregada que não queria deixar seu país, que ela interferisse de
alguma maneira para impedi-lo ou impedir a mulher que o levasse a esse ato meio
extravagante.
A ligação que, na adolescência,
teve com a cidade de Genebra, onde freqüentou escolas e passou boa parte desse
período de sua vida, ao ver de uma certa corrente, não é argumento suficiente
que projete luz sobre a atitude do escritor.
Algo muito mais profundo e mais
ponderável deve ter influído nisso, como, por exemplo, o período em que sofreu
sob a tirania de Perón, que o afastou de sua condição de diretor da Biblioteca
Pública de Buenos Aires para torná-lo fiscal de mercado, contando as
aves que ali entravam e saiam, o que foi sumamente desonroso para sua
condição de escritor e de uma pessoa que exercia um cargo digno como o que
então ocupava, o que o levou a demitir-se dele.
A notícia que circula, mesmo na
Argentina, é que, embora ali nascido, nunca,
na verdade, sentiu-se em casa,
recolhendo fora de seu país mais aplausos e admiração por sua obra, o que atestam os prêmios que recebeu de
inúmeras universidades e convites constantes para realizar palestras em várias
cidades do mundo.
Em Genebra, ao tentar se hospedar
num hotel, ao que se propala, foi barrado pelo gerente, que não quis que a
triste fama de Borges morrer ali
servisse de mau agouro para outros hóspedes, tão ou mais velhos do que ele.
Conta-se que Borges teve que
polemizar com o gerente, explicando-lhe que esse tipo de fama para o hotel
tinha um aspecto altamente positivo, pois isso resultaria em publicidade ou notoriedade.
Não ignorava que era uma figura célebre. E o gerente certamente também não.
Borges aludiu a outros escritores,
tão ou mais famosos do que ele, como fora o caso de Oscar Wilde, que morrera,
em Paris, no Hotel d,Alsace. Até hoje, esse hotel é procurado por turistas
desejosos de conhecer algo a respeito da vida do poeta, que ali viveu seus
derradeiros dias, exilado ou foragido de Londres, onde fora condenado por
homossexualismo.
Mas o que transpirou, ao sabor de
resenhistas de jornal, é que o gerente nem assim se deixou convencer. Borges, diante de tal resistência, já pensava
em capitular ou cantar noutra freguesia, não tivesse sido a interferência de
Kodama, que aludiu à condição de pessoa idosa do marido (?) para que acabasse
por ser nele instalado. São essas, às vezes, as vicissitudes da fama. Ou tudo
isso não passa de diz que me diz.
Como se sabe, a essa altura,
Borges contava 86 anos. Portanto, era um candidato muito próximo a empacotar.
De certo modo, o hotel de Genebra (ou seu gerente) tinha razões ponderáveis de
que um morto, ainda que ilustre, ficasse ali com seu nome marcado para sempre.
Seria o tipo de coisa não desejável, na visão de uma pessoa que tinha por dever
preservar o prestígio ou a boa fama do hotel, ainda que isso, para alguns,
possa parecer absurdo. Mas“amigos, amigos, negócios à parte”, é o princípio que
norteia a visão de um hotel ou de um eventual gerente aferrado a seus
preconceitos.
Felizmente, para o casal Borges,
o conflito foi sanado. Eis que, poucos meses depois de ali hospedado, veio a
falecer, sepultando-se (e lá está até hoje) num cemitério de Genebra. A exemplo
de outro escritor, tão ou mais ilustre, James Joyce, que está enterrado no
cemitério Flutern, em Zurique.
Poder-se-ia avançar, sem base em
fatos concretos, que Borges teria sido de certo modo influenciado por Joyce
quanto a pretender morrer fora de seu país natal. Joyce tinha um sério conflito
de ordem intelectual e artístico com seu país. Ou uma pinimba insanável com a
mediocridade e o atraso de Dublin, cidade, no dizer dele, da infelicidade e do
fracasso.
Isso, obviamente, teria apenas
valor de especulação. Nada leva a
admitir que fosse esse o desiderato de Borges. Dois dos mais renomados
biógrafos do escritor, James Woodwall e Maria Esther Vasquez, passam por cima
de tal assunto sem lhe fazer a mínima referência, o que leva a supor que, se
Borges algum dia acalentou o desejo de ser enterrado em solo estranho ao de sua
pátria, guardou-o em seu foro íntimo.
Paira, portanto, até hoje, embora
muito se busquem levantar dados a tal respeito, que elucidem de uma vez por
todas tal enigma, uma sombra de dúvida sobre suas verdadeiras causas.
Não há nenhum informe
elucidativo. Nem muito menos a mais leve insinuação de Borges a amigos mais
diletos de que esse seria seu projeto de fim de vida.
Maria Kodama tem a chave do
mistério. Ela está aí bem viva. E só ela detém a verdadeira versão dessa
história. Mas quem conseguirá fazer com que a revele? Já que, para ela, a
memória de Borges será mantida em inviolável sigilo.
Estive uma única vez em Buenos Aires. Tentei
me entrevistar com o escritor Ernesto Sábato, tão famoso quanto seu conterrâneo
ilustre, com quem cheguei a trocar algumas palavras por telefone, alegando que
não podia me receber em sua casa (tanto gostaria de travar com ele e
conhecê-lo), pois estava, naquele momento, aguardando a vinda de um médico para
tratar de sua esposa doente. Não era um
despistamento de um repórter abelhudo. Era um fato que, depois de alguns meses,
se comprovou verdadeiro, com o anunciado falecimento de sua mulher.
Utilizei a entrevista com Sábato
para uma novela que, depois de meu retorno, escrevi, sobre uma história que inventei
de um suposto furto de um romance escrito por Borges, ele que declaradamente
sempre fora inimigo desse gênero. Nessa altura, Borges já estava morto. Num
encontro com Sábato, talvez tivéssemos trazido à baila esse assunto. Sábato,
com sua discrição, talvez não quisesse abordá-lo. Mas poderia levantar
levemente a cortina do mistério. Encontrei nas bancas de jornais uma revista, “La Maga ”, em que os dois,
através de um mediador, haviam se formulado perguntas sobre vários temas, preponderando
os literários. É possível que nem mesmo Sábato pudesse explicar porque seu
amigo (há notícia de que não se queriam bem)
foi morrer na Suiça.
Afinal de contas, fosse qual
fosse o motivo, não custaria nada revelá-lo. Cada qual tem o direito de morrer
e ser enterrado onde bem entender. Mas no caso de um escritor do nível de grandeza
de Borges, essa questão continua suscitando curiosidade.
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