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Saturday, February 4, 2017

“UM ÔNIBUS E QUATRO DESTINOS”, UM CLÁSSICO LITERÁRIO (Francisco José Pereira, Silveira de Souza e Holdemar Menezes conceberam uma novela que marcou época nos anais da literatura catarinense). (por Hamilton Alves)

 

            Lendo há pouco uma resenha de Ruy Castro sobre “O Falcão Maltês”, de Dashiell Hammett, que é um dos clássicos maiores da literatura “noir” em plano mundial, fui relê-lo. A segunda leitura é sempre melhor que a primeira. Ou isso é apenas meia verdade? Não interessa muito saber se é ou não melhor. O fato é que agora me dou conta que houve aspectos na segunda leitura que ou me passaram despercebidos na primeira ou não os fixei como agora o faço ou o fiz.
            Não é necessário dizer que Ruy é um craque da resenha. Sobre a obra de Hammett se revela absolutamente insuperável na análise exaustiva que faz. Antes havia feito uma outra, sobre “Servidão Humana” (refiro-me à ‘Obras Primas que poucos leram’, organizado por Heloisa Seixas, e que traz um sem número de notáveis e muito oportunos comentários sobre vários romances e novelas que marcaram definitivamente a literatura mundial de todos os tempos).
            Sobre “Servidão Humana” não foi, na verdade, muito feliz. Na minha visão particular, sobre o personagem Phillip Carey, me pareceu ter revelado certas características que não refletem absolutamente bem esse grande personagem.
            Mas voltando ao “Falcão Maltês”, em certo momento dessa releitura, lembrou-me compará-lo a uma novela semelhante (ainda que não na linha do ‘roman noir’, a rigor), escrita por três escritores catarinenses (um não tão catarinense, Holdemar Menezes), Francisco José Pereira e Silveira de Souza, editada pela Movimento, de Porto Alegre, que foi (ou tem sido) pródiga em publicar autores deste Estado, graças a esse infatigável homem promotor da cultura que é Carlos Appel.
            A edição desse livro data de 1994.
Título: “Um ônibus e quatro destinos”.
Em que pode se diferenciar o valor literário de uma (a de Hammett) e a de outra (de três escritores locais)?
A única diferença possível, sob qualquer aspecto, é que a novela do americano (grande caráter, que, para não dedurar amigos, suspeitos de atividades anti-americanas ou ligados ao comunismo, preferiu passar algum tempo na prisão) virou um dos maiores clássicos do cinema, “Relíquia Macabra”, com Humphrey Bogart, Sidney Greenstreet, Peter Lore e outros, com a direção de John Huston.
No mais, as duas novelas se eqüivalem – e não vai qualquer exagero nisso. É só lê-las e compará-las.
Quando li “Um ônibus e quatro destinos”, fiquei tão entusiasmado com sua qualidade literária que a comuniquei aos autores (não resisto em fazê-lo todas as vezes que isso ocorre). Além disso, fui ao jornal em que registrei num pequeno artigo a minha impressão de leitura. Lembro-me que pus em destaque o fato incontroverso de que, em matéria literária, talvez fosse a primeira vez que nosso Estado dava um salto de qualidade na vida literária do país, embora a novela tivesse (até hoje) se circunscrito aos limites de nossas fronteiras. Acho que, como outros sucessos iguais, o fato não repercutiu além da ponte Hercílio Luz, o que tem sido rotina em nossa vida cultural. Devo ressaltar que esse êxito literário teria grande repercussão nacional caso houvesse melhor tratamento de distribuição da obra, em se tratando de novela. Em poesia já tínhamos logrado grande projeção com Cruz e Souza e Luiz Delfino, até hoje insuperados no tocante à notoriedade fora de nossos limites geográficos.
Para o Chico Pereira tive oportunidade de dizer, algum tempo depois do lançamento, que o grupo perdera uma excelente oportunidade de ter dado um título mais literário à novela. – Qual? – perguntou-me.- O camafeu egípcio. – respondi.
É que, junto do corpo do juiz assassinado, logo depois de ter saído de uma roda de pôquer no Clube Doze de Agosto, fora encontrado um camafeu egípcio, que, na verdade, não tem nada a ver em relação ao crime.
No registro jornalístico que fiz anotei esse pormenor. Chico ponderou e achou que eu podia ter alguma razão. A escolha do título não fora tão acertada.
Em geral, quando feito por vários autores, mormente tratando-se de um romance, o que ocorre com freqüência é uma certa falta de homogeneidade do texto. E isso é muito natural que ocorra. Cada escritor tem seu próprio estilo. Mas milagrosamente os três (Chico, Holdemar e Silveira) alcançam um equilíbrio muito bom, a ponto de, se não se soubesse que o livro fora escrito pelos três, podia-se concluir que era de um único autor.
Valendo-me de meu artigo, publicado em dezembro de 1994 neste jornal, sob o título “Um ônibus especial”, sumariando o livro, comentei: “Trata-se de uma novela com laivos detetivescos, com um crime que é revelado logo nas páginas iniciais, envolvendo a morte de um Juiz de Direito, depois de ter saído de uma roda de pôquer no Clube Doze de Agosto. O livro poderia ter o título (mais literário) de “O camafeu egípcio” – lembraria o de Hammett, “O falcão maltês”. A família do magistrado, a mulher e o filho, muda-se para Porto Alegre. Depois de alguns anos, o filho, Dr. Thales, formado em medicina, retorna à Ilha para exercer a profissão e também para de alguma forma desvendar a misteriosa morte do pai. Nisso está disposto a se empenhar até as últimas conseqüências. Os capítulos que se referem ao Dr. Thales são confiados a Chico Pereira, que, com categoria, os desenvolve dentro de uma trama muito bem urdida. Além dele, o médico, viajam no ônibus da empresa São Cristóvão, que existia à época, mais três personagens: a jovem e de certo modo desditosa Solange, que vem à capital para submeter-se a um aborto, engravidada perlo patrão, empresário de Criciúma; Teresa, que vem ao encontro de Carlos para a prática de um ato adúltero, sendo ele quase noivo de sua filha adotiva; e, por último, Gustavo Paiva, que é estudante de Direito e poeta. Teresa vem de Laguna, onde o marido trabalha como assistente de uma empresa portuária, e Paiva origina-se de Porto Alegre.
No dia da morte do Juiz, encontra-se junto de seu corpo um “camafeu egípcio”, que, no entanto, não conduzirá à elucidação do mistério das circunstâncias do crime. Paralelamente aos destinos que estão traçados para esses personagens, o escritor, do qual se ocupa magistralmente Silveira de Souza, vive problemas marginais, não apenas quanto à condução da narrativa do romance, mas ao envolvimento com a umbanda, de que participa com outros personagens igualmente curiosos”.
Termino essas considerações assim:
“Vale, porém, registrar que ‘Um ônibus e quatro destinos” é um dos momentos culminantes da literatura catarinense, que, assim, se põe ao nível do que há de melhor literariamente no país”.
Acho que, além de mim, não houve mais ninguém que se abalasse a escrever uma linha sobre essa bela novela.
Em que ela é parecida com “O falcão maltês”? Precisaria de tempo e de um acurado estudo para responder satisfatoriamente tal pergunta.
Mas resumindo, creio que a semelhança, além da propriamente literária (do mesmo calibre), envolve, a meu ver, o gênero – ambas têm o cunho do “mistério”, uma a morte do Juiz, a outra, a relíquia representada por uma estátua negra de uma ave avaliada em um milhão de dólares – e por causa dela muita gente foi sacrificada. 

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