Lendo há pouco uma resenha de Ruy
Castro sobre “O Falcão Maltês”, de Dashiell Hammett, que é um dos clássicos
maiores da literatura “noir” em plano mundial, fui relê-lo. A segunda leitura é
sempre melhor que a primeira. Ou isso é apenas meia verdade? Não interessa
muito saber se é ou não melhor. O fato é que agora me dou conta que houve
aspectos na segunda leitura que ou me passaram despercebidos na primeira ou não
os fixei como agora o faço ou o fiz.
Não é necessário dizer que Ruy é um
craque da resenha. Sobre a obra de Hammett se revela absolutamente insuperável
na análise exaustiva que faz. Antes havia feito uma outra, sobre “Servidão
Humana” (refiro-me à ‘Obras Primas que poucos leram’, organizado por Heloisa
Seixas, e que traz um sem número de notáveis e muito oportunos comentários
sobre vários romances e novelas que marcaram definitivamente a literatura
mundial de todos os tempos).
Sobre “Servidão Humana” não foi, na
verdade, muito feliz. Na minha visão particular, sobre o personagem Phillip
Carey, me pareceu ter revelado certas características que não refletem
absolutamente bem esse grande personagem.
Mas voltando ao “Falcão Maltês”, em
certo momento dessa releitura, lembrou-me compará-lo a uma novela semelhante
(ainda que não na linha do ‘roman noir’, a rigor), escrita por três escritores
catarinenses (um não tão catarinense, Holdemar Menezes), Francisco José Pereira
e Silveira de Souza, editada pela Movimento, de Porto Alegre, que foi (ou tem
sido) pródiga em publicar autores deste Estado, graças a esse infatigável homem
promotor da cultura que é Carlos Appel.
A edição desse livro data de 1994.
Título:
“Um ônibus e quatro destinos”.
Em
que pode se diferenciar o valor literário de uma (a de Hammett) e a de outra
(de três escritores locais)?
A
única diferença possível, sob qualquer aspecto, é que a novela do americano
(grande caráter, que, para não dedurar amigos, suspeitos de atividades
anti-americanas ou ligados ao comunismo, preferiu passar algum tempo na prisão)
virou um dos maiores clássicos do cinema, “Relíquia Macabra”, com Humphrey Bogart,
Sidney Greenstreet, Peter Lore e outros, com a direção de John Huston.
No
mais, as duas novelas se eqüivalem – e não vai qualquer exagero nisso. É só
lê-las e compará-las.
Quando
li “Um ônibus e quatro destinos”, fiquei tão entusiasmado com sua qualidade
literária que a comuniquei aos autores (não resisto em fazê-lo todas as vezes
que isso ocorre). Além disso, fui ao jornal em que registrei num pequeno artigo
a minha impressão de leitura. Lembro-me que pus em destaque o fato
incontroverso de que, em matéria literária, talvez fosse a primeira vez que
nosso Estado dava um salto de qualidade na vida literária do país, embora a
novela tivesse (até hoje) se circunscrito aos limites de nossas fronteiras.
Acho que, como outros sucessos iguais, o fato não repercutiu além da ponte
Hercílio Luz, o que tem sido rotina em nossa vida cultural. Devo ressaltar que
esse êxito literário teria grande repercussão nacional caso houvesse melhor
tratamento de distribuição da obra, em se tratando de novela. Em poesia já tínhamos
logrado grande projeção com Cruz e Souza e Luiz Delfino, até hoje insuperados
no tocante à notoriedade fora de nossos limites geográficos.
Para
o Chico Pereira tive oportunidade de dizer, algum tempo depois do lançamento,
que o grupo perdera uma excelente oportunidade de ter dado um título mais
literário à novela. – Qual? – perguntou-me.- O camafeu egípcio. – respondi.
É
que, junto do corpo do juiz assassinado, logo depois de ter saído de uma roda
de pôquer no Clube Doze de Agosto, fora encontrado um camafeu egípcio, que, na
verdade, não tem nada a ver em relação ao crime.
No
registro jornalístico que fiz anotei esse pormenor. Chico ponderou e achou que
eu podia ter alguma razão. A escolha do título não fora tão acertada.
Em
geral, quando feito por vários autores, mormente tratando-se de um romance, o
que ocorre com freqüência é uma certa falta de homogeneidade do texto. E isso é
muito natural que ocorra. Cada escritor tem seu próprio estilo. Mas
milagrosamente os três (Chico, Holdemar e Silveira) alcançam um equilíbrio
muito bom, a ponto de, se não se soubesse que o livro fora escrito pelos três,
podia-se concluir que era de um único autor.
Valendo-me
de meu artigo, publicado em dezembro de 1994 neste jornal, sob o título “Um
ônibus especial”, sumariando o livro, comentei: “Trata-se de uma novela com
laivos detetivescos, com um crime que é revelado logo nas páginas iniciais,
envolvendo a morte de um Juiz de Direito, depois de ter saído de uma roda de
pôquer no Clube Doze de Agosto. O livro poderia ter o título (mais literário)
de “O camafeu egípcio” – lembraria o de Hammett, “O falcão maltês”. A família
do magistrado, a mulher e o filho, muda-se para Porto Alegre. Depois de alguns
anos, o filho, Dr. Thales, formado em medicina, retorna à Ilha para exercer a
profissão e também para de alguma forma desvendar a misteriosa morte do pai.
Nisso está disposto a se empenhar até as últimas conseqüências. Os capítulos
que se referem ao Dr. Thales são confiados a Chico Pereira, que, com categoria,
os desenvolve dentro de uma trama muito bem urdida. Além dele, o médico, viajam
no ônibus da empresa São Cristóvão, que existia à época, mais três personagens:
a jovem e de certo modo desditosa Solange, que vem à capital para submeter-se a
um aborto, engravidada perlo patrão, empresário de Criciúma; Teresa, que vem ao
encontro de Carlos para a prática de um ato adúltero, sendo ele quase noivo de
sua filha adotiva; e, por último, Gustavo Paiva, que é estudante de Direito e
poeta. Teresa vem de Laguna, onde o marido trabalha como assistente de uma
empresa portuária, e Paiva origina-se de Porto Alegre.
No
dia da morte do Juiz, encontra-se junto de seu corpo um “camafeu egípcio”, que,
no entanto, não conduzirá à elucidação do mistério das circunstâncias do crime.
Paralelamente aos destinos que estão traçados para esses personagens, o
escritor, do qual se ocupa magistralmente Silveira de Souza, vive problemas
marginais, não apenas quanto à condução da narrativa do romance, mas ao
envolvimento com a umbanda, de que participa com outros personagens igualmente
curiosos”.
Termino
essas considerações assim:
“Vale,
porém, registrar que ‘Um ônibus e quatro destinos” é um dos momentos
culminantes da literatura catarinense, que, assim, se põe ao nível do que há de
melhor literariamente no país”.
Acho
que, além de mim, não houve mais ninguém que se abalasse a escrever uma linha
sobre essa bela novela.
Em
que ela é parecida com “O falcão maltês”? Precisaria de tempo e de um acurado
estudo para responder satisfatoriamente tal pergunta.
Mas
resumindo, creio que a semelhança, além da propriamente literária (do mesmo
calibre), envolve, a meu ver, o gênero – ambas têm o cunho do “mistério”, uma a
morte do Juiz, a outra, a relíquia representada por uma estátua negra de uma
ave avaliada em um milhão de dólares – e por causa dela muita gente foi
sacrificada.
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