O
poeta inglês Browning tem um poema lindíssimo, que vim de conhecer há pouco,
com o título de “O amante de Porfíria”. Trata-se, resumidamente, do seguinte:
um homem se apaixona desesperadamente por uma mulher. “Esta noite a chuva chegou”,
diz o primeiro verso. A chuva contextualiza, de certa forma, o restante dos
versos. Abre caminho a que, a certa altura, o poeta narre que, quando a amada
chegou, sentou-se ao lado dele. E, súbito, tudo pareceu-se aquecer à sua
presença. Desnudou os ombros alvos, macios, de cabeleireira loura, em
desalinho, inclinou-se levando a face dele a aninhar-se à face dela. Ciciou seu
amor por ele, ela fraca para cortar as amarras da vaidade, e entregar-se para
sempre para ele. Teve a certeza de que a amante o adorava; o coração se
expandia enquanto meditava no que faria. Naquele instante, ela era sua.
Descobriu, então, o que lhe cabia fazer. Com o seu cabelo entrançou uma corda
loira e longa, que lhe enrolou três vezes ao pescoço. Estrangulou-a. ela não
sentiu dor. Abriu-lhe as pálpebras e voltaram a sorrir seus olhos azuis
imaculados. A seguir, desapertou a trança que lhe cingia o pescoço e sua face
voltou a avivar-se num rubor sob o beijo que lhe deu. Amparou-lhe a cabeça, só
que dessa vez foi o ombro dele que susteve a cabeça que sobre ele descai.
Minúscula cabeça rosada e sorridente tão feliz de possuir tudo o que queria, de
Ter de súbito cessado tudo o que desdenhava e de em vez disso Ter conquistado o
amor dele. O amor de Porfíria –ela não podia imaginar como o seu mais grato
desejo ia se realizar.
Termina o poema com estes
derradeiros versos, que coloco aqui em forma de prosa:
“E aqui estamos juntos, sentados,
agora; ficamos imóveis durante a noite inteira e Deus está emudecido”.
A dois amigos mandei esse poema, um
dos quais é poeta; o outro, apreciador do gênero, tem também bom senso crítico.
Num
dia desses, o primeiro me surpreendeu com o comentário de que lhe pareceu que o
amante mata a amada não apenas para sublimar o amor ou para perpetuá-lo, impedindo
que se lançasse no abismo do efêmero, mas que lhe parecia que outro aspecto se
adivinhava: não pudera consumar a cópula com a amada.
Essa hipótese me pareceu
despropositada e lhe retruquei que, no que se referia ao ato sexual, me parecia
circunstância absolutamente irrelevante. O amante não mataria a mulher por se
ver impotente, o que, a admitir-se, o poema perderia inteiramente o impacto de
beleza que tem.
Comentei essa questão com o segundo
amigo para tirá-la a limpo. No primeiro momento, entendeu que tal interpretação
não cabia. A intenção do amante, concordava com o meu ponto de vista, era a
perenização do amor, sujeito a todas as vicissitudes das transformações porque
passa a alma ou os sentimentos humanos.
Dias depois, esse amigo me diz que
lera com mais vagar e atenção o poema de Browning e chegara também, meditando
melhor, à opinião do outro, segundo a qual também entrou no ato de morte o
problema da impotência.
Mantive irredutível a minha posição
inicial de que essa interpretação do assassínio
desvirtua de sua grandeza o poema, até porque a satisfação do sexo é um
ato animal, que não se compraz à transcendência da poesia de Browning, ou das
intenções que deixou impressas nesse trabalho. Embora ambos admitam que a outra
ilação, a de perpetuação do amor ou da paixão amorosa, é também de considerar,
o fato é que as duas interpretações, se aceitas, não convivem bem, uma
empobrecendo a outra.
Já um terceiro amigo me levou o
livro de poemas de Browning. Não o tenho encontrado nos últimos tempos, razão
pela qual não tive a oportunidade de conhecer seus pensamento quanto à
interpretação que colheu desse poema.
Trata-se de um eminente homem de
letras, que poderia nos tirar a mim e aos meus dois outros amigos desse dilema,
não obstante da minha parte não esteja disposto a ceder a quem quer que espose
a tese deles.
O leitor não tem o poema integral,
apenas alguns dados. Daí que possa Ter dificuldades de bem interpretá-lo.
Insisto
apenas num único ponto, que, para mim, é capital: aceitar que o amante recorreu
ao homicídio da amada porque não pôde concretizar a posse me parece reduzir a
beleza do poema ou até mesmo desfigurá-lo.
Browning quis colocar o sentimento
do amor num nível de totalidade, eternizá-lo, para que nenhum outro fato humano
fosse capaz de destruí-lo. É o que penso.
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