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Saturday, February 11, 2017

UMA VEZ COM UM POETA ILHÉU – Hamilton Alves

 

            O poeta ilhéu costumava freqüentar assiduamente um boteco e ali também tomava seus porres. Não ficava inconveniente mas depois de recitar meia dúzia de versos chatos, para os quais não lhe dava ouvidos nem me interessava ainda por poesia à época (porque a vida era tão intensa que ela própria era toda a poesia que podia então haurir), pedia-me que eu de minha vez lhe recitasse alguma coisa de meu repertório. Mas não era inclinado, como disse, à poesia, não sabia sequer formular um único verso. O poeta se enganava com as minhas possibilidades. Certamente, lia-me nos jornais da cidade num ou noutro artigo, numa ou noutra crônica, e, por isso, achava, bêbado, que fosse capaz de produzir um poema. Ou de dizer-lhe algo de minha lavra.
            Me olhava com olhos congestionados, fumegando um cigarro forte, com ira porque não era capaz de dizer uma única palavra ou formular um desgraçado verso.
            Então, sem outro recurso, voltava a dizer os próprios, incansavelmente. Quanto mais versos mais uísque. Só tomava uísque o poeta. E mais bêbado e mais chato ficava.
            Por que o tolerava?
            Sempre tive uma santa paciência com todos os chatos do mundo. E este era um chato especial – além de grande amigo, era poeta. Não era qualquer chato.
            Houve uma noite que tentei satisfazê-lo. Quis inventar uma frase poética. Dizer qualquer bobagem.
- Mas você, com sua capacidade de prosador, é incapaz de versejar?
- Não é um dote comum. – disse-lhe. – É coisa de gênios. Ou a poesia escolhe seus eleitos, não é o meu caso, que sou um pobre escriba de jornal.
Dito isso, nessa noite memorável, deixei o poeta com sua poesia chata e com seu copo de uísque, a ponto de muitas vezes Ter de sair do boteco segurado por amigos para não cair de bêbado.
            Houve outras noites, muitas outras em que de novo tive de aturar o poeta.
O boteco era o ponto de encontro e de confraternização de uma fauna conhecida na década de 50. Gente de jornal, de rádio, prostitutas (estas quando a noite se avizinhava da madrugada) como a Maria Galega (lembram-se dela?), que se aproximava às imediações do boteco, insinuava-se à porta, esperando por um convite de um  daqueles boêmios, para entrar, porque ela, na sua timidez, entendia que era uma marginal e que, por isso, podia não ser bem aceita entre aqueles outros marginais noctívagos.
            Lá no canto de sempre despontava o poeta. Para outros amigos recitava seus poemas soporíferos, que nem sempre encontrava ouvinte disponível nem voluntário.
            O poeta queria se impor como tal, mas só era poeta (ou só declinava seus poemas) a partir da terceira dose.
            No fim da noite, era levado ao sacrifício de ouvi-lo. Não dava outra. Atravessava-se aquele momento auspicioso, em que o boteco ganhava nova vida no trânsito da noite para a madrugada, sempre celebrada com maior libação alcóolica. Quando não espoucava um pinho. Ou uma loucura qualquer.
- Você não produz um verso... é uma pena... um talento desses a se perder em crônica esportiva! – abria-se comigo.
O que é que eu podia fazer nas circunstâncias? Só se inventasse. Só se dissesse qualquer tolice à guisa de poema.
Ele achava que eu tinha que Ter veia poética. Por que não sei explicar.
Até que uma noite, de tanto me aborrecer, acabei improvisando um poema qualquer:


“As garrafas nas prateleiras

tão fechadas e mudas;
os copos, ah, que belos
são os copos;
os fósforos... que se apagam
e se acendem;
a brasa dos cigarros, ah, que
beleza os cigarros;
o bêbado triste,
o bêbado chato,
dizendo seus poemas tolos”.

Ele me olhou, envergando a última dose e disse:

- Bonito, muito bonito; enfim, o poeta! 

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