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Wednesday, November 23, 2016

ENIGMAS - Hamilton Alves



                                    Dizia Shakespeare numa de suas peças (se não me engano em Macbeth): “há mais mistérios entre o céu e a terra que julga nossa vã filosofia”.
                                   Já falei de meu amigo Frank noutra ocasião. Certa vez, depois de não vê-lo por meio século, procurou-me em meu escritório. Como o achou, como se lembrou de meu nome, com quem obteve o endereço, não sei dizer.
                                   Durante o pouco tempo em que entretivemos um papo, evocamos os tempos do ginásio, em que, entre os demais alunos, se destacava pelo pormenor de ter uma cabeça enorme, por não ser muito aplicado, com o dado de que vezes sem conta o encontrei perdido em conjecturas, como se se recolhesse a si mesmo e nisso encontrasse qualquer fascínio que o tornava indiferente a tudo o que se passava a sua volta.
                                   Vez ou outra, perguntava-me que destino levara na vida, com seu tipo desengonçado e com seu pouco talento.
                                   Quando me deixou, despedindo-se, de forma muito apagada, enfiou-se pelo corredor e sumiu no elevador.
                                   Embatucado com tal enigma, depois de tantos anos decorridos, resolvi me comunicar com outro colega daqueles tempos. Contei-lhe resumidamente o episódio da visita de Frank. Perguntou-me:
                                   - Quando se deu esse encontro?
                                   Disse-lhe mais ou menos a data aproximada.
                                   Comentou:
                                   - A esse tempo, Frank tinha já morrido.
                                   Galhofando, acrescentou:
                                   - Você deve ter sido visitado pelo fantasma do Frank.
                                   Notei que, para confirmar os dados em que tinha morrido, consultou à esposa, que os confirmou.
                                   Até hoje, esse fato deixa-me com a pulga atrás da orelha, sem saber se admito a aparição de um fantasma ou de uma pessoa viva. O que continua a me intrigar é como me achou ou me descobriu decorrido meio século em que não mais nos víramos.
                                   Outra ocorrência semelhante sucedeu com um colega de trabalho, que não via há mais de vinte anos. Fôramos bons camaradas. Jogávamos no mesmo time de futebol da repartição. Era um craque, invertendo-se então nossos papéis, pois era ele que me comandava como capitão do time.
                                   Uma bela tarde, sem saber por que nem como, cruzei uma rua (não tinha a menor necessidade de passar por ela). Que fui fazer ali? – perguntara-me depois do ocorrido.
                                   Quando o encontrei à porta de um prédio, sem revelar a menor surpresa com a minha presença, ao contrário do que me sucedia, disse-me:
                                   - Estava aqui a sua espera. Tinha certeza que passaria por esta rua.
                                   Falamos dos tempos idos e vividos. Ofereci-lhe minha casa quando voltasse de novo à cidade. Fiquei feliz de reencontrá-lo.
                                   De novo, assaltou-me a dúvida sobre se se tratava de um morto ou de um vivo, igual à mesma que tive com respeito ao encontro com Frank.
                                   Boa razão teve Shakespeare para ter dito o que disse.


(março/08).

Monday, November 21, 2016

EM TORNO DE JOÃO GILBERTO - Hamilton Alves



                                   A bossa nova tem hoje muitos pais. Mas João Gilberto foi o primeiro que desafinou sabendo que desafinar não era de modo algum um pecado, mas um modo de imprimir novo estilo à música. E por esses desvãos musicais nasceu o que se passou a chamar de bossa nova, que outros autores, menos ou mais especializados, alegam ter sido uma busca de outra cadência da MPB em relação à anterior ou da que imediatamente a precedeu, a música da dor de cotovelo, que teve nomes consagrados como os de Antonio Maria, Ari Barroso, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Wilson Batista e outros menos ou mais votados.
                                   Soube por um resenhista local que João esteve por estas bandas inóspitas à cultura ou ao novo no início da década de 50, a convite de um clube local. Ou porque o microfone estava ruim ou porque a voz característica de João não fosse suficiente para cobrir o vozerio geral que se instalou no recinto, o fato é que, lá pela terceira ou quarta música, cantada por ele (sucessos como Chega de Saudade, Samba de Uma Nota Só, Desafinado, etc.), João resolveu enfiar a viola no saco. Saiu pela noite ilhoa, no dizer do tal resenhista, e foi dar com os costados num bar que nunca fechava suas portas, o Universal, de memorável passagem pelas outroras madrugadas ilhoas, em que todos os boêmios e marginais e até mesmo gente colunável à época pintavam. Ali servia-se um prato muito popular e ao jeito da patuléia, pirão de jacuba com lingüiça, que desfrutava de muitos afeiçoados.
                                   A certa hora, para gaudio (ó, palavrinha feia!) da rapaziada ou das pessoas simples que se espalhavam pelos quatro cantos do bar, João, a pedido de uns e  outros, sacou de novo o violão e sapecou seu já conhecido repertório - embora não tivesse ainda esse nome que tem hoje na MPB.
                                   Foi um sucesso, com muitos aplausos, pedidos de bis, muito diferente de seu tão mau acolhimento num clube da “elite” local, em que não lhe deram ouvidos.
                                   João, claro, se mandou para outras plagas. Correu mundo. Apresentou-se nos grandes teatros, como no Olimpya, de Paris, outra casa famosa, Carnegie Hall, de Nova York, e outras que tais, tornando-se um artista de ponta no mundo da música popular.
                                   Se fosse um dos nossos, ou seja, um músico ou um cantor integrante da manezada (ou um Mané puro sangue), o que lhe teria acontecido? O destino de tantos outros, como Nabor do sax (ninguém soprava o cachimbo à época igual a ele), Orlando Dutra (violonista), que tinha um acorde fora do comum e um solo de um Segovia (sem exagero), sem falar, por exemplo, em Daniel Pinheiro, com seu conhecido vozeirão, que encantou, certa noite, no Bar Rosa, onde ambos se encontraram com admiradores locais, Silvio Caldas, que deu um show ao vivo a todos os presentes, e o nem sempre lembrado Narciso Lima, que cantava “Adeus, Guacira” como bem poucos cantores de seu tempo. A meu ver, ninguém interpretou melhor “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, acompanhado tantas vezes no Clube Doze pelo conjunto harmoniosíssimo de Nabor.
                                   Certa vez, encontrei Ari num bar da Cinelândia, no Rio, macilento, já provavelmente doente, solitário, alcançado pela paixão a Guiomar, o Alvadia (bar muito semelhante ao Universal, só que este tinha mais (como direi?) picardia ou marca de bar de boêmios). Tive o ímpeto de dizer-lhe:
                                   - Ari, o maior intérprete de sua música “Aquarela do Brasil” é um conterrâneo meu, Narciso Lima.
                                   Mas recobrei o senso do ridículo e recuei. Ari, no mínimo, riria na minha cara.
                                   Se Narciso, Nabor, Orlando, Daniel Pinheiro tivessem saído por esse mundo, quem sabe não teriam subido também, como João, à notoriedade ou à fama nacional.
                                   Permanecer encafuado à Ilha é uma vocação para o fracasso. “O artista local não tem acústica”, como dizia sabiamente o velho amigo Armando Calil Bulos, ele também boêmio de boa cepa.


(maio/08).

Sunday, November 20, 2016

EDUARDO DIAS - Hamilton Alves





                                   Eduardo Dias foi inegavelmente um dos nossos maiores pintores e, na palavra de Marques Rebelo, escritor carioca, um dos precursores do modernismo no Brasil. Isso ouvi o próprio Marques Rebelo dizer numa palestra no MAMF (Museu de Arte Moderna de Florianópolis), que ficava nos altos da rua Tenente Silveira, num prédio antigo muito bonito, que, claro, por isso mesmo, pôs-se abaixo. Diz-se que não se pode opor resistência ao progresso, mas se pode opô-la à burrice.
                                   Gilberto Gerlach (embora muito pouco nos tenhamos dado a conhecer ou de pouquíssima aproximação) lançou um livro há pouco que é um marco em matéria de bibliografia sobre a história de São José (estou para adquirir um exemplar). Na capa, foi estampado um quadro retratando São José daquela época, de Eduardo, conservando quase o mesmo casario que ainda está intacto. Por falar nisso, soube que há dias incendiou-se um daqueles belos prédios. Até que ponto vai a incúria da administração pública, a mesma que levou o prédio do Mercado Publico a pegar fogo. Não custa nada fazer-se uma vistoria nas instalações elétricas para ver se tudo está em ordem. Mas cadê boa vontade? Ou responsabilidade?
                                   Desvio-me do assunto desta crônica, que é Eduardo Dias.
                                   Conheci-o em seu atelier da Praça XV numa casa que resiste ainda a esses tempos de vandalismo, em que se perde dia a dia mais contato com a memória da cidade, com a derrubada de prédios de linha arquitetônica ligada à colonização açoriana. A esse tempo, Eduardo era já um velhinho, com cabelos brancos grandes e amplos, típico de um artista do pincel, às voltas com suas telas, espalhadas pelos quatro campos . Ouvia dizer que Eduardo trocava algumas telas, pintadas em tocos de troncos de árvores, por uma média de café com leite com pão no antigo Café Java, que depois se chamou Nacional e depois sumiu. Ali, hoje, é uma farmácia, na esquina da Felipe Schmidt com Praça XV.
                                   Nunca trocamos uma palavra (eu era a bem dizer um gurizote). Olhava as telas. Deveriam ser belíssimas, dado o fato reconhecido então de ser Eduardo já um pintor admirado, não tão valorizado, certamente, devido ao atraso cultural da época em que viveu. Para sobreviver pintava paredes.
                                   O quadro de Eduardo, que Gerlach me mandou uma cópia, retratando São José (em forma de convite para o lançamento de seu livro), é bem a revelação de seu enorme talento. Como pode usar diferentes nuances de cores para distinguir uma qualidade de luz de outra? Os recursos, à época, quanto ao uso de tintas, deviam ser muito difíceis.
                                   Dizer que Eduardo, com esse quadro (e outros famosos dele), lembra o famoso grupo paulista, formado por Volpi, Rebolo, Tarsila, Anita Malfatti e outros, não é, a meu ver, suficiente para dar uma precisa idéia de sua importância. Ele não só se iguala como supera de certo modo esse grupo.
                                   E a dizer-se que dois escritores ilhéus, Chico Pereira e Amilcar Neves, tentaram resgatar num livro a figura de Eduardo Dias e tudo que conseguiram foi uma decisão judicial impedindo a obra de circular!
                                   Bem, apesar de tudo isso, Eduardo Dias tem uma tal grandeza que nada conseguirá apagá-la e que só aumenta com o passar do tempo.


(abril/08) 

Friday, November 18, 2016

DUDU - Hamilton Alves





                                               Dudu morreu. Dizer isso assim, com essa aparente frieza, parece dar a entender que morrer, mesmo que se trate de um cão, é coisa que temos de encarar com naturalidade ou como uma consumação inescapável da condição mesma de ser vivo.
                                               Mas há evidentemente mortes e mortes.
                                               No primeiro momento em que as pessoas que amavam Dudu ficaram em desespero, julgou-se tratar de envenenamento. Depois, com mais vagar, aceitando-se a realidade dura dos fatos, constatou-se que a morte poderia ter sido decorrente de outros fatores. Uma pessoa entendida em cães colocou a hipótese de um problema cardíaco.
- Isso ocorre frequentemente. – disse ele.
O motivo pelo qual Dudu morreu não nos aliviou a dor de
 perdê-lo.              
                                               Quando disse que há mortes e mortes quis dizer que uma coisa é morrer quando há uma causa que o determine, outra quando isso acontece inesperadamente, sem que haja essa causa que a todos põe de sobreaviso.
                                               Dudu era um cachorrinho guapeca (foi pegado numa ninhada de quatro, deixados por uma cadela desconhecida numa praia). Foi colhido por sua dona que o trouxe e o introduziu no meio da família, recebido alegremente por duas meninas, que passaram, desde então, a adorá-lo e a tratá-lo como se fora um cão de linhagem nobre, com grande pedigree. A origem de Dudu era a mais humilde, mas nem por isso deixou de ser considerado, desde que se integrou a essas pessoas, como um fidalgo, com direito a todas as mordomias: uma casinhola de madeira, que sempre recusou, amante da rua, ração especial, consultas a veterinários, etc.
                                               Dudu retribuía tudo isso com muitos afagos, notadamente quando as meninas chegavam ao fim das tardes da escola. Fazia-se uma arruaça entre eles. O cãozinho pulava, alegre, que dava gosto ver.
                                               Eu mesmo, que não lhe era muito chegado ou de modo algum o tratava com toda essa deferência, tinha um bom relacionamento com ele e, quando podia, o acariciava.
                                               Na última noite fria, quando a temperatura baixou muito, recomendei que fosse colocado dentro de casa. Talvez se ressentisse do excessivo frio e pudesse ter qualquer complicação pulmonar ou coisa parecida.
                                               Terá sido o frio a causa de sua morte?
                                               Ou foi envenenado?
                                               Não se sabe.
                                               O senhor, que comentou que poderia ser problema cardíaco, porque isso, em cachorro, é comum (no dizer dele) é que levantou um pouco a suspeita de ter sido envenenado.
                                               Para pânico geral, Dudu amanheceu morto.
                                               Houve muita tristeza.
                                               O cachorrinho era muito amado de todos.
                                               Enterramo-lo no quintal da casa.
                                               Desejamos que esteja no gozo da paz reservada a todos os cães. Dudu bem o merece por ter nos propiciado tantas horas felizes.   


(junho/08)


Thursday, November 17, 2016

DUCHAMP II - Hamilton Alves




                                   Comenta-se que um crítico de arte, em Nova York ou outra cidade dessas, quando “O grande vidro”, de Duchamp, foi exibido num de seus museus, teria sido perguntado sobre essa discutida obra e respondeu: 
                                   - É um enigma. E todo o enigma é instigante.
                                   Não sou crítico de arte, embora seja colecionador há alguns bons anos e leia muito sobre arte, que, a partir de certo tempo, ainda no início da minha maturidade, começou a me interessar. Desde que, num quarto alugado por Hugo Mund Jr., numa casa fantasmagórica que existia na Av. Hercílio Luz, perto do Albergue Noturno ou da Escola do Comércio, descobri, ali, num dia em que o visitei, um quadro de Henry Rousseau, envolvendo a retratação de uma família dentro de uma caleça, com o diabo de permeio. Era uma mera reprodução de revista. Pouco sabia eu, a essa altura, de pintura e de seus grandes nomes. Esse quadro, porém, me encantou de tal modo que Hugo mo deu de presente. Trago-o até hoje comigo.
                                   Por isso, a minha opinião sobre arte tem a sustentação desses anos que lido com pintores e quadros ou obras de arte de qualquer gênero, sem me ter na conta de crítico.
                                   O que teria dito, nas mesmas circunstâncias do crítico em face de “O grande vidro”, de Duchamp. Diria, simplesmente, sem rebuços:
                                   - Trata-se de uma grande porcaria.
                                   É o caso do rei que está nu e por medo ou outra razão qualquer todos se inibem ou se constrangem de dizer puramente a verdade.
                                   O que é “O grande vidro”, afinal de contas? Segue a teoria duchampiana do “ready made”. Sua obra não prescinde de definição, desde que se adote a sua teoria de que a forma é tudo. Nada mais que a forma. A forma, e só a forma, é a síntese de tudo. Ou da arte. Ou arte é puramente forma. Então qualquer coisa que tenha forma é arte. “O grande vidro”, por isso mesmo, não precisa de maior explicação. Tem forma e isso lhe garante um lugar no mundo da arte. A forma vive de si mesma. Nem precisa ser bela. Como “O grande vidro” não tem nada de beleza.
                                   Assim como é o caso de outras obras de Duchamp, como “Nu descendo uma escada”, em que ele teve a intenção de lhe imprimir idêntico movimento à de uma pessoa. Se qualquer outro pessoa tivesse produzido esse quadro, que não levasse a assinatura de Duchamp, depois de consagrado mundialmente, estaria reservada, para ele, certamente, uma grande rejeição. Todos o considerariam uma obra risível. Ou lhe voltariam as costas.
                                   George Steiner, em seu livro “Gramáticas da criação”, (Ed. Globo)  disse bem quando se referiu à arte contemporânea como produto da era de Duchamp. Ou de suas concepções ou teorias. Diz ele, com suas próprias palavras: “Sempre que encontramos num museu ou em alguma galeria de arte contemporânea aqueles tijolos no chão, os bezerros eviscerados, a roupa de cama suja, os sacos de estopa pendurados em ganchos retorcidos ou a explosão de esterco de elefante em telas brancas (um motivo já conhecido no dadaísmo), estamos entrando no reino de Marcel Duchamp (op. cit. pg. 347).
                                   As instalações (a que me referi já) é o símbolo que expressa bem o espírito duchampiano. Ou sua teoria de “objeto pronto”. O penico, que ocupa um lugar, hoje, no Museu do Louvre, em Paris, é sua consagração máxima e reflete esse tempo, como disse Steiner, pelo qual a “arte” transita triunfalmente.

(agosto/08)
                                  

                                                                      

Tuesday, November 15, 2016

DUCHAMP - Hamilton Alves




                                   A obra de Marcel Duchamp vem sendo polemizada desde seu surgimento na cena artística. Ainda há dias li uma resenha de jornal em que se punha em xeque o ready-made que ele descobriu ou inventou. Ou, como os franceses o chamam, “object trouvé”.
                                   Foi mais longe em sua iconoclastia: pintou um bigode no retrato da Monalisa, de Miguel Ângelo. Discute-se ou pergunta-se com que sentido teria feito isso. Ora, Duchamp dizia que a arte de cavalete estava encerrada e que o fator retiniano não poderia mais preponderar na arte. A obra se destina, mais que tudo, à reflexão e menos à contemplação ou ao gozo visual.
                                   Descobriu o óbvio, ou seja, que todas as coisas têm formas. Daí ter descoberto que o penico, que foi recusado numa mostra feita, em Paris, no salão dos independentes, acabasse sendo consagrado como obra de arte, ocupando um lugar numa das salas do Museu do Louvre, com a assinatura de R. Mutt.
                                   Um visitante do museu urinou no penico de Duchamp e pagou uma multa de 400 mil dólares por ter incorrido nesse atentado à sacralidade da obra. Em sua defesa, alegou que tinha seguido à risca a doutrina de Duchamp, mas isso não lhe valeu de nada.
                                   Outro fato foi que a roda de bicicleta, que também transformou em obra de arte, que está exposta no MASP (Museu de Arte de São Paulo), foi jogada no lixo (a primitiva, essa ora exposta no MASP é uma cópia ou é outra; qualquer roda de bicicleta pode substituir a primitiva; não há nada de original entre a primeira e as seguintes que lhe ocuparam o lugar em outros museus) por sua filha, quando a viu jogada num canto e, pior, enferrujada.
                                   Tem outros feitos mais arrojados ainda. Pôs numa cesta vários objetos de tudo quanto era espécie e apresentou-a como obra de arte numa exposição se não me engano em Nova York.
                                   O fato é que Duchamp queira-se ou não, abriu um novo episódio na história da arte. Ou simplesmente acabou com o conceito de arte. O que é predominante, em nosso tempo, é a anti-arte. Seguiu-se, como conseqüência natural, o fenômeno das instalações, que são o reflexo das teorias duchampianas.
                                   Duchamp deu alguma contribuição à arte?
                                   De certo modo sim. Ele abriu nova perspectiva ao fenômeno arte, libertando a arte da rigidez dos conceitos fechados ou das escolas todas que o aprisionavam numa fórmula que só valia para seus adeptos, como o impressionismo, fauvismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, etc. Cada uma delas tinha e tem um suporte teórico, que a limita.
                                   O “ready made”, tal como descoberto por Duchamp, revelou que a forma é arte ou arte é forma. Mas com isso criou-se um impasse: nada mais é arte e tudo é arte. Chega-se, assim, a uma contradição na própria definição do que seja arte.
                                   Com isso, mais que uma contradição, confinou-se o conceito de arte a um beco sem saida. Se tudo é arte e nada é arte, conclui-se que a arte foi pro brejo.
                                   Vivemos o clima ou o triunfo das teorias de Duchamp, com as instalações, que se apresentam umas diferentes de outras, mas dentro do mesmo espírito de concepção. A pergunta é: para onde caminhará a arte?

                                   Quem o saberá.

Monday, November 14, 2016

DUBLINENSES - Hamilton Alves




                                   A iniciativa de um grupo paulista, tendo os irmãos Campos (Haroldo e Augusto) à frente, de comemorar o Bloomsday (dia de Bloom), personagem de James Joyce, em Ulisses, romance que foi escrito para acabar com todos os romances (ou esse epíteto vale para Finnegans Wake? – agora balanço na dúvida), contagiou o pessoal da Ilha, com a longa programação para o próximo 16 de julho, que é o dia em que Joyce conheceu sua mulher, em Dublin, e com ela se casou de modo não oficial, que, na pia batismal, recebeu o nome de Norma Barnacle.
                                   Joyce teve que sair de Dublin, que, no dizer dele, era a cidade da infelicidade, tal era, na sua visão, o espírito reacionário que dominava tudo por aquelas bandas.
                                   Diz-se que Ulisses foi recusado em Dublin. Recusou-o uma das potestades das letras irlandesas, ninguém menos que o dramaturgo muito conhecido, Bernard Shaw, com essas duras palavras:
                                   “Ulisses é um registro repulsivo de uma fase repugnante da civilização”.
                                   Essas palavras foram colhidas de uma carta que Shaw enviou à editora de Ulisses, Sylvia Beach. O único livro que editou. Ela era dona da livraria Shakespeare & Company, na rue de l,Odeon, em Paris, que era muito frequentada por Joyce nos maus tempos de argola total. Pequeno detalhe sobre a obra: Sylvia diz, no livro em que narrou esses fatos, que Joyce acrescentou vários trechos a “Ulisses” na medida em que ali mesmo na livraria fazia sua revisão.
                                   Sylvia (que tinha um caso com Adrienne Monnier) adorava Joyce, nas suas próprias palavras: “eu idolatrava James Joyce”.
                                   Voltando às palavras de Shaw, o que parece incrível ter um homem de sua estatura intelectual dito uma tolice dessas sobre a obra máxima de Joyce (consideremos Finnegans Wake também), pode-se imaginar o que um escritor, com a independência intelectual de Joyce, sofria em sua própria terra. Daí ter dito sobre ela o que disse.
                                   Mas queria me reportar, afinal de contas, aos contos “Dublinenses”, que nada mais que vinte editoras recusaram-se a publicar (todas de Dublin). O livro contém quinze contos apenas. Constitui toda a obra, no gênero, de Joyce. São quinze contos que deve ter escolhido a dedo de outros que jogou no lixo ou dos quais não gostou, certamente. O melhor para o senhor qual é? O senhor me retrucaria: e para você?
Pois lhe digo sem rebuços: para mim é “Contrapartida”, não
obstante “Os mortos” ser apontado pela maioria das pessoas (ou da crítica) como o melhor de todos. É, inegavelmente, um excelente conto, que não nos esquecemos mais.  Mas em “Contrapartida” gosto muito de seu personagem, Farrington, um empregado de escritório, que tem um conflito com o chefe. Diz-lhe na lata umas boas palavras, muito francas e duras, que, depois, quando bêbado nos bares, fica repetindo para os amigos, como se fora a grande proeza de sua vida. Pega um adiantamento em dinheiro para fazer seu “trottoir” pelos bares e, no fim da noite, nem mesmo consegue se embebedar, que era tudo que mais desejava. Chega em casa, com um buraco na alma (ou vários buracos). Quem paga o pato é o filho, a quem pergunta se a comida está quente.
                                   - Ah, não está quente! Então você vai me prestar contas.
                                   Apronta-se para surrar o filho por essa ninharia quando este, em pânico, lhe diz: “não me bata, papai. Não me bata; eu rezo uma Ave Maria pro senhor; eu rezo...”.
                                   Farrington, de certo modo, somos todos nós, que devemos cada qual ter vivido situação semelhante.
                                   Joyce poderia ter escrito somente “Dublinenses”. E teria sido certamente um escritor bem realizado e famoso.


(Junho/08)                                                      
                       



Saturday, November 12, 2016

DOMINGO – Hamilton Alves



Mais um domingo
Por ele esperei
Com ele sonhei
Nele me embalei

Agora é noite
Fim de domingo
Fim de sonho
Fim de esperança

Outro domingo virá
Com os mesmos acenos
Com expectativa igual
No curso do tempo

Olho a noite
Nela vejo o domingo
Naufragar como um barco
Que perdeu o rumo


(poema de Hamilton Alves escrito em março de 2008 sob o pseudônimo de Otto Nul).



Friday, November 11, 2016

DIAS DE CHUVA – Hamilton Alves





Na casa de minha avó
Em dias chuvosos
Em que todos ficavam dentro de casa
Sem opção de sair à rua
Fazia-se cuscuz
Bolo de cuca
Bolinho de banana (com farofa)
Com café que ela preparava
De sabor sem igual;
Ah, velhas tardes
Chuvosas na casa de minha avó,
Quanta falta me fazes!



(poema de Hamilton Alves escrito em novembro de 2008).

Wednesday, November 9, 2016

DOIS ESCRITORES FRENTE À CRISE - Hamilton Alves




                                               Imagino como reagiriam neste momento de turbulência econômica internacional dois dos nossos escritores mais conhecidos já mortos – Rubem Braga e Paulo Francis. Este, segundo suponho, se limitaria a deitar falação inócua, posando de entendido, como sempre o fez, das coisas da economia, mas, invariavelmente, nessa matéria, revelando pouco ou nenhum conhecimento. Ou sequer capacidade de análise. Mas estava na sua função de jornalista, que mete o bedelho em qualquer tema, ainda que o faça de maneira competente. Francis sempre primou pelo destempero em momentos como esse, acertando no varejo e errando no atacado.
                                               Já Rubem Braga, que era conhecido homem de esquerda (embora nunca posasse oficialmente como tal), o que diria? Mais ou menos, se não erro, o seguinte:
                                               - Crise? Que crise?
                                               E tanto não a reconheceria (ou passaria por alto em sua crônica de estilo inimitável) que, em vez de abordá-la, como esperado, certamente, por algum leitor (ou leitores), falaria de uma borboleta amarela, que perseguira em seu passeio pelas ruas do Rio em determinada tarde. Até que, por fim, acabasse encoberta entre dois prédios ou em algum arbusto frondoso, deixando-o de olhos suspensos no ar.
                                               Eis aí a diferença essencial entre esses dois escritores, um dando todo o trato à crise ou querendo explicá-la ou bancar o profeta, anunciando sua duração ou sua próxima superação. O outro, cronista de levezas e de coisas pouco sérias ou, digamos, mais amenas, nem se importaria se havia crise aqui e ali, sabedor que tudo neste mundo é episódico. Que mais cedo ou mais tarde, assim como veio, essa crise vai embora – e tudo retomará o curso normal.
                                               Preferível falar de borboleta numa hora dessas do que pretender analisar o que se passa – esse reboliço ou, como dizem os mais informados, essa turbulência que parece levar de roldão a economia dos países por ela assolados.
                                               O leitor, de certo, ficaria preso à trajetória desenvolvida pela borboleta do Braga.
                                               Não faltaria quem telefonasse ou (hoje, com os recursos da cibernética) passasse um recado ao cronista para saber, afinal, que destino coubera à borboleta. Ou se reapareceria numa próxima crônica. Ou se a descobrira em algum  outro lugar depois que a perdeu de vista.
                                               Não sei se algum leitor se interessaria de mandar uma mensagem ao Paulo Francis, querendo saber de como as finanças mundiais se comportarão daqui por diante. Se se vai ou não, por bem ou por mal, sair do atoleiro. O que se prepara com a perspectiva da vitória de Obama, que, a essa altura, parece favas contadas.
                                               Mas entre o tema de um e outro é indiscutível que mais vale saber o destino tomado por uma borboleta amarela, em certa tarde subitamente aparecida numa rua do Rio, acompanhada em suas evoluções pelos olhos muito atentos do maior cronista brasileiro.


(out/08).

Monday, November 7, 2016

DOIS CRONISTAS - Hamilton Alves



                                   Na década de 50, costumava frequentar o Rio. Devo ter ido lá uma meia dúzia de vezes. A esse tempo, despontava no jornalismo diário, com uma crônica, Paulo Mendes Campos, que sempre desejei encontrar ao acaso em  bares, por ele muito freqüentados ou fosse onde fosse. Mas nunca dei com ele em parte alguma.  Por isso, ficou essa perda de não o ter conhecido para uma mera troca de palavras. Nessa mesma época pululavam por lá outros nomes de igual estofo, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Antonio Maria (só José Carlos Oliveira veio bem depois e pontificou por alguns anos com uma crônica diária no JB).
                                   Também não tive a chance de conhecer Carlinhos, como era tratado por amigos íntimos. Era por último (ou seja, ao fim de sua trajetória por este mundo) freqüentador assíduo do Antonio’s, um bar em Copacabana, uma espécie de pequena república dos grandes nomes da música e das letras.
                                   Carlinhos tem uma crônica, publicada em seu livro “Os olhos dourados do ódio”, que é antológica, sobre uma baratinha, que o esperava no fim das noites ou madrugadas, quando vinha da boemia. Já falei dela em outro momento.
                                   No último dia de ocupação desse apartamento, Carlinhos conta que dolorosa foi a despedida da baratinha, a que deu o nome de Ivone. Não a encontrou nos lugares costumeiros para uma despedida mais calorosa, pelo que, ao fechar a porta, suas últimas palavras foram:
                                   - Adeus, Ivone!
                                   Já de Paulo Mendes Campos soube de seu dileto amigo Fernando Sabino que, certa vez, quando subia a serra de Petrópolis para dirigir-se a Belo Horizonte, entrou num bar para comprar cigarros (ou para outra coisa qualquer) e foi surpreendido de o encontrar ali solitário.
                                   Conta-se que, nos seus últimos dias de existência, Paulo transitava pelas ruas do Leblon curtindo seu fracasso.
                                   Enquanto assim se considerava, eu, que lia suas belas crônicas, ficava por estas bandas desejoso de um encontro casual com ele, tanto o admirava como cronista.
                                   Quando conheci Otto e Sabino, num encontro no Hotel Maria do Mar, aqui na Ilha, podia lhes perguntar por Paulo. Mas não o fiz.
                                   Paulo é autor de algumas crônicas que considero entre as melhores que li, uma das quais narra a guerra travada com um vizinho, ambos batendo seus textos em máquinas de escrever barulhentas, através do silêncio da noite, na busca de ganhar o pão de cada dia. Outra sobre que presenteou à filha com o livro de Lewis Carrol, “Alice no país das maravilhas”, cujo tratamento é dos mais felizes.
                                   Afora os outros referidos, que conheci pessoalmente, como a Antonio Maria, numa fila desorganizada no cinema Metro de Copacabana, para assistir a “O pecado mora ao lado”, com Marilyn Monroe, que, quando as portas se abriram, foi uma espécie de rolo compressor que nos levou para dentro do cinema. A cabeça de Maria boiava entre todas até que nos alojamos numa cadeira. Lembro-me que uma velhinha me pediu que a protegesse. Prometi-lhe que seria seu escudeiro. Qual nada! Fomos eu, o Maria e a pobre velhinha arrastados na multidão no atropelo que se desencadeou.
                                   Mas ainda hoje curto essa frustração de não ter travado um leve papo com Paulo Mendes Campos e Carlinhos Oliveira sobre qualquer banalidade que nos aflorasse num encontro eventual.


(junho/08)        

Thursday, November 3, 2016

DOIS AMIGOS - Hamilton Alves




                                               Soube através da imprensa do falecimento de dois amigos, com os quais privei em diferentes épocas de minha vida. Trata-se de Márcio Collaço e de Sílvio Coelho dos Santos. O primeiro advogado (não militante), mas professor de Direito Constitucional, em certa época, da Faculdade de Direito da UFSC, e, depois, diretor do Tribunal Regional Eleitoral, cargo que exerceu durante largo período. Minha aproximação mais íntima de Márcio se deu no ginásio (Colégio Catarinense), onde éramos alunos da mesma classe (3º. ano C), famosa série integrada por vários colegas inesquecíveis, alguns dos quais, como dizia Machado de Assis, foram já conhecer a geologia dos campos. Márcio era um aluno mediano como nós todos do 3º. C, que era composto, diga-se de passagem, de uma turma marcadamente virada da breca. Márcio era dotado de um tipo meio irrequieto quando adolescente. Mas quando chegou à maturidade operou-se nele uma profunda transformação. Passou a mostrar-se uma pessoa recolhida e sisuda. Éramos adversários no campeonato da Linguinha. Ele era capitão de um time com o nome de Corinthians, enquanto eu o era do Universal, de cujos integrantes sou capaz de citar um por um, destacando-se na becaria Léo Xavier, meu dileto amigo e médico. Num dos últimos anos em que estive no Catarinense, em que o certame de futebol foi disputado por ambas essas equipes, sagramo-nos campeões. Era corriqueiro receber-se uma medalha por isso. Nem me lembro de que matéria era feita. Creio que era de cobre. Não a recebi porque fui reprovado. Claro, não havia como estabelecer relação entre uma coisa e outra, mas assim era a regra. Mudá-la, àquela época, como tantas outras, de que jeito?
                                               Márcio era bom de bola. Digo-o para encerrar, sobre ele, esse breve necrológio.
                                               Sílvio foi outro amigo que sempre admirei mais à distância. Nunca chegamos a ser muito próximos, mas em várias ocasiões, uma das quais em sua casa, quando me recebeu afavelmente (nem me lembro o motivo dessa visita), trocamos algumas idéias sobre vários temas. Era antropólogo e, por via desse ofício, ligado às venturas e desventuras de nossos índios, a cujo estudo se dedicou sempre com muito interesse.
                                               Deu-me de presente o último livro que editou sob o título “Ensaios Oportunos”, Editora Nova Letra, com uma bela dedicatória: “Ao Hamilton, companheiro de vida e de esperanças, com o abraço amigo de Sílvio Coelho dos Santos, Fpolis., 21/02/08”.
                                               Curioso que, hoje, de manhã, ao acabar de ler um dos ensaios desse livro, procurei o telefone do Sílvio para lhe cumprimentar. Não o achei. Fui ao auxílio da companhia telefônica, mas recebi a informação que, com a mudança de meu telefone há pouco feita, a empresa que prestava esse serviço me informou que por causa disso não me podia mais prestá-lo.
                                               Fiquei meio pesaroso de não poder comunicar ao Sílvio a fortíssima impressão que esse ensaio me causara, pois nele relata a desapiedada e nefanda matança de pequena comunidade indígena pelos homens brancos colonizadores da área que habitavam, a troco da exploração comercial de terras. Até crianças (conta Sílvio) não escapavam de morrer sob facão ou mesmo com os disparos de tiros de winchester, com às vezes calibre 38.
                                               Sílvio comparecia de quando em quando com belíssimos artigos na imprensa local, onde revelava um estilo próprio e límpido, qualidade que marca essa obra de ensaios. Era uma pessoa simples, sem alardear seu talento, sua competência, seu grande prestígio dentro e fora do país por outros companheiros de profissão.
                                               Ficamos todos de luto com o passamento desses dois homens que, cada um a seu modo, deram inegável contribuição cultural e de serviços prestados ao nosso Estado.

                                                           

Wednesday, November 2, 2016

DESTROÇOS – Hamilton Alves




Percorro a rua
Tantas vezes percorrida

Nela não encontro mais
Os encantos de outrora

Casas que se demoliram
Vizinhos que se foram

Pessoas anônimas
Andam de lá para cá

Antes se sabia o nome delas
Agora é uma multidão

O mundo se decompõe
Cada dia que passa

Tenho a impressão
De estar noutra cidade

Tudo me parece estranho
Nada me é familiar

Nem mesmo me anima
A esperança do poeta

De descobrir nos destroços
Algo que recorde o passado.



(poema de Hamilton Alves escrito em março de 2007 sob o pseudônimo de Otto Nul).