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Monday, November 21, 2016

EM TORNO DE JOÃO GILBERTO - Hamilton Alves



                                   A bossa nova tem hoje muitos pais. Mas João Gilberto foi o primeiro que desafinou sabendo que desafinar não era de modo algum um pecado, mas um modo de imprimir novo estilo à música. E por esses desvãos musicais nasceu o que se passou a chamar de bossa nova, que outros autores, menos ou mais especializados, alegam ter sido uma busca de outra cadência da MPB em relação à anterior ou da que imediatamente a precedeu, a música da dor de cotovelo, que teve nomes consagrados como os de Antonio Maria, Ari Barroso, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Wilson Batista e outros menos ou mais votados.
                                   Soube por um resenhista local que João esteve por estas bandas inóspitas à cultura ou ao novo no início da década de 50, a convite de um clube local. Ou porque o microfone estava ruim ou porque a voz característica de João não fosse suficiente para cobrir o vozerio geral que se instalou no recinto, o fato é que, lá pela terceira ou quarta música, cantada por ele (sucessos como Chega de Saudade, Samba de Uma Nota Só, Desafinado, etc.), João resolveu enfiar a viola no saco. Saiu pela noite ilhoa, no dizer do tal resenhista, e foi dar com os costados num bar que nunca fechava suas portas, o Universal, de memorável passagem pelas outroras madrugadas ilhoas, em que todos os boêmios e marginais e até mesmo gente colunável à época pintavam. Ali servia-se um prato muito popular e ao jeito da patuléia, pirão de jacuba com lingüiça, que desfrutava de muitos afeiçoados.
                                   A certa hora, para gaudio (ó, palavrinha feia!) da rapaziada ou das pessoas simples que se espalhavam pelos quatro cantos do bar, João, a pedido de uns e  outros, sacou de novo o violão e sapecou seu já conhecido repertório - embora não tivesse ainda esse nome que tem hoje na MPB.
                                   Foi um sucesso, com muitos aplausos, pedidos de bis, muito diferente de seu tão mau acolhimento num clube da “elite” local, em que não lhe deram ouvidos.
                                   João, claro, se mandou para outras plagas. Correu mundo. Apresentou-se nos grandes teatros, como no Olimpya, de Paris, outra casa famosa, Carnegie Hall, de Nova York, e outras que tais, tornando-se um artista de ponta no mundo da música popular.
                                   Se fosse um dos nossos, ou seja, um músico ou um cantor integrante da manezada (ou um Mané puro sangue), o que lhe teria acontecido? O destino de tantos outros, como Nabor do sax (ninguém soprava o cachimbo à época igual a ele), Orlando Dutra (violonista), que tinha um acorde fora do comum e um solo de um Segovia (sem exagero), sem falar, por exemplo, em Daniel Pinheiro, com seu conhecido vozeirão, que encantou, certa noite, no Bar Rosa, onde ambos se encontraram com admiradores locais, Silvio Caldas, que deu um show ao vivo a todos os presentes, e o nem sempre lembrado Narciso Lima, que cantava “Adeus, Guacira” como bem poucos cantores de seu tempo. A meu ver, ninguém interpretou melhor “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, acompanhado tantas vezes no Clube Doze pelo conjunto harmoniosíssimo de Nabor.
                                   Certa vez, encontrei Ari num bar da Cinelândia, no Rio, macilento, já provavelmente doente, solitário, alcançado pela paixão a Guiomar, o Alvadia (bar muito semelhante ao Universal, só que este tinha mais (como direi?) picardia ou marca de bar de boêmios). Tive o ímpeto de dizer-lhe:
                                   - Ari, o maior intérprete de sua música “Aquarela do Brasil” é um conterrâneo meu, Narciso Lima.
                                   Mas recobrei o senso do ridículo e recuei. Ari, no mínimo, riria na minha cara.
                                   Se Narciso, Nabor, Orlando, Daniel Pinheiro tivessem saído por esse mundo, quem sabe não teriam subido também, como João, à notoriedade ou à fama nacional.
                                   Permanecer encafuado à Ilha é uma vocação para o fracasso. “O artista local não tem acústica”, como dizia sabiamente o velho amigo Armando Calil Bulos, ele também boêmio de boa cepa.


(maio/08).

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