A
bossa nova tem hoje muitos pais. Mas João Gilberto foi o primeiro que desafinou
sabendo que desafinar não era de modo algum um pecado, mas um modo de imprimir
novo estilo à música. E por esses desvãos musicais nasceu o que se passou a
chamar de bossa nova, que outros autores, menos ou mais especializados, alegam
ter sido uma busca de outra cadência da MPB em relação à anterior ou da que
imediatamente a precedeu, a música da dor de cotovelo, que teve nomes consagrados
como os de Antonio Maria, Ari Barroso, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Wilson Batista
e outros menos ou mais votados.
Soube
por um resenhista local que João esteve por estas bandas inóspitas à cultura ou
ao novo no início da década de 50,
a convite de um clube local. Ou porque o microfone
estava ruim ou porque a voz característica de João não fosse suficiente para
cobrir o vozerio geral que se instalou no recinto, o fato é que, lá pela
terceira ou quarta música, cantada por ele (sucessos como Chega de Saudade, Samba
de Uma Nota Só, Desafinado, etc.), João resolveu enfiar a viola no saco. Saiu pela
noite ilhoa, no dizer do tal resenhista, e foi dar com os costados num bar que
nunca fechava suas portas, o Universal, de memorável passagem pelas outroras
madrugadas ilhoas, em que todos os boêmios e marginais e até mesmo gente
colunável à época pintavam. Ali servia-se um prato muito popular e ao jeito da patuléia,
pirão de jacuba com lingüiça, que desfrutava de muitos afeiçoados.
A
certa hora, para gaudio (ó, palavrinha feia!) da rapaziada ou das pessoas
simples que se espalhavam pelos quatro cantos do bar, João, a pedido de uns
e outros, sacou de novo o violão e
sapecou seu já conhecido repertório - embora não tivesse ainda esse nome que
tem hoje na MPB.
Foi
um sucesso, com muitos aplausos, pedidos de bis, muito diferente de seu tão mau
acolhimento num clube da “elite” local, em que não lhe deram ouvidos.
João,
claro, se mandou para outras plagas. Correu mundo. Apresentou-se nos grandes teatros,
como no Olimpya, de Paris, outra casa famosa, Carnegie Hall, de Nova York, e
outras que tais, tornando-se um artista de ponta no mundo da música popular.
Se
fosse um dos nossos, ou seja, um músico ou um cantor integrante da manezada (ou
um Mané puro sangue), o que lhe teria acontecido? O destino de tantos outros,
como Nabor do sax (ninguém soprava o cachimbo à época igual a ele), Orlando Dutra
(violonista), que tinha um acorde fora do comum e um solo de um Segovia (sem
exagero), sem falar, por exemplo, em Daniel Pinheiro , com seu conhecido vozeirão, que
encantou, certa noite, no Bar Rosa, onde ambos se encontraram com admiradores
locais, Silvio Caldas, que deu um show ao vivo a todos os presentes, e o nem
sempre lembrado Narciso Lima, que cantava “Adeus, Guacira” como bem poucos
cantores de seu tempo. A meu ver, ninguém interpretou melhor “Aquarela do
Brasil”, de Ari Barroso, acompanhado tantas vezes no Clube Doze pelo conjunto
harmoniosíssimo de Nabor.
Certa
vez, encontrei Ari num bar da Cinelândia, no Rio, macilento, já provavelmente
doente, solitário, alcançado pela paixão a Guiomar, o Alvadia (bar muito semelhante
ao Universal, só que este tinha mais (como direi?) picardia ou marca de bar de
boêmios). Tive o ímpeto de dizer-lhe:
-
Ari, o maior intérprete de sua música “Aquarela do Brasil” é um conterrâneo meu,
Narciso Lima.
Mas
recobrei o senso do ridículo e recuei. Ari, no mínimo, riria na minha cara.
Se
Narciso, Nabor, Orlando, Daniel Pinheiro tivessem saído por esse mundo, quem
sabe não teriam subido também, como João, à notoriedade ou à fama nacional.
Permanecer
encafuado à Ilha é uma vocação para o fracasso. “O artista local não tem acústica”,
como dizia sabiamente o velho amigo Armando Calil Bulos, ele também boêmio de
boa cepa.
(maio/08).
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