Há muito tempo, ouço falar de Jandira Lorenz. Depois de conhecê-la
vim a me dar conta que a confundia com outra artista. Vendo a exposição de
trabalhos dessa outra, atribui-lhe a autoria das obras. Ela não era quem eu
pensava que fosse. Jandira, quando a encontrei outro dia, na sua caminhada
costumeira, abordada por mim e lhe perguntando por sua atividade, me explicou:
- Não sou
pintora, essa que você está se referindo ou julga que seja eu é outra.
Caí das
nuvens. Já Machado de Assis aviltrava que “é melhor cair das nuvens que de um
terceiro andar”.
Antes de
identificá-la, sendo a pessoa (ou a artista que é), quis saber se tinha um
trabalho que pudesse ver.
- Tenho alguma
coisa. – disse-me com um ar esquivo, não se mostrando muito interessada no
assunto.
Afinal, não
sei que idéia fazia a meu respeito. Se me conhecia. Se ouvira também falar de
mim. Os artistas na Ilha de um modo geral vivem em compartimentos estanques, de
tal maneira que é muito problemático uns se encontrarem ou procurarem outros.
Convidou-me a
entrar em sua casa (onde tem também um pequeno atelier), que é tão estranha
quanto ela. Cheia de gatos. Jandira adora bichos. Contei, na ocasião, sem
exagero, uma dúzia de gatos, mas devia ter mais. Lembrava-me que a famosa
psiquiatra, Nilse Silveira, num apartamento no Rio, vivia cercada de gatos. Os
gatos de Jandira têm mais liberdade que os da doutora Nilse.
Sua casa fica
situada numa ampla área arborizada, de fundos para o mar, em que os gatos podem
se dar ao luxo de andar à vontade, não como os gatos da doutora Nilse, que
viviam confinados e certamente estressados nas pequenas dimensões de um
apartamento.
Foi então que
me mostrou uma tela belíssima. Encantei-me por ela. Propus-lhe adquiri-la.
Mas foi logo
me lembrando que o quadro era de sua filha, que teria de tratar com ela. Deu-me
o telefone da filha. Quando fiz a ligação, o telefone chamava mas ninguém
atendia. Os meses se passaram. Voltei à carga outro dia sobre o dito quadro com
Jandira.
Disse-lhe que
havia tentado contato com a filha mas que até aquele momento nada conseguira.
- Olhe, o
quadro está na Casa Açoriana, em Santo Antônio. – disse-me.
Era um sábado.
Desloquei-me
até a Casa Açoriana.
O quadro
estava ali exposto. Uma obra magnífica.
Mas o que a
Jandira talvez não saiba é que, visitando Osmar Pisani, que é dono de excelente
pinacoteca (inclusive um tapete de Vecchietti diante do qual me ajoelhei em
reverência e a essa reação fui levado por não ter podido resistir a tanta
beleza), lá vi um quadro dela de admirável feitura. Nada perguntei ao Pisani
sobre a aquisição. Teceu loas à obra de Lorenz.
Foi aí que me
penitenciei de ainda não ter tomado iniciativa de concluir démarches para
aquisição do quadro de Jandira.
Então voltei à
carga.
No contato
telefônico com a artista dobrei o preço inicial que tinha proposto.
Preço
acertado, cheque passado, com a alma cantando, voltei ao meu reduto, onde
encontrei um bom espaço para exibi-lo.
O quadro é
muito bonito. Tinha que ter gatos. Tem dois. No mais é uma cadeira transformada
em uma mulher com feições místicas ou fantasmais, um pássaro gigantesco em cima
da tela. Trata-se de uma gravura impressa em papel. Janga, proprietário da Casa
Açoriana, que é um oásis cultural na melancolia de Santo Antônio, me explicou
que é um original único, que não dá para ser reproduzido.
Certo dia (já
há algum tempo de posse do quadro), entrei novamente em contato com Jandira.
Disse-lhe que
podia trabalhar com material mais perene, com óleo, por exemplo. Com papel, a
durabilidade da obra é incerta. Pode durar muito ou pouco, pouquíssimo até,
dependendo da resistência do papel.
Jandira me
explicou que, dependendo dos cuidados que se tiver, não expô-lo à umidade,
poderá se lhe garantir uma grande longevidade.
Mas quando lhe
falei de usar óleo, explicou:
- Não sou
pintora; sou desenhista.
Ora, nada
impede que um desenhista seja pintor. Há, por exemplo, o caso eminente de
Picasso, que foi um excelente desenhista (Guernica está aí para prová-lo) e um
dos maiores pintores conhecidos em todo o mundo.
Ainda não me
dei conta de seu processo de trabalhar. Só sei que se trata de uma gravura. Mas
com que material executa a gravura, disso não fiquei sabendo. Será xilogravura,
na linha de Goeldi? Não, porque o trabalho à gravura de Goeldi e seus
discípulos (ou os que seguem sua escola) é reproduzível. A gravura de Jandira
não.
O fato é que
descobri Jandira Lorenz, pessoa extremamente modesta e recolhida, parecendo,
nos contatos iniciais, não querer (ou pretender) nada com ninguém, às voltas
com seus gatos. O mundo de Jandira: a arte e os gatos, bem se poderia dizer.
Essa obra,
descrita por mim, há pouco produzida por ela, não é obviamente única; mas só
conheço outra, a do Pisani. Posso dizer que é muitíssimo bem trabalhada,
revelando uma artista madura e de perfeita consciência de que domina bem sua
arte.
Quem a vê,
caminhando na rua, sempre de olhos voltados pro chão, sem dar muita atenção ao
que se passa em volta, não faz a menor idéia do valor que tem essa mulher..
Creio que
Jandira, quando tratou comigo da venda de sua tela, deu-lhe tão pouca
importância, como se lhe espantasse um pouco que alguém tivesse mostrado
interesse por ela.
Todos os
artistas são assim meio estranhos. Nunca, na verdade, se dão conta de sua
grandeza – é o caso de Jandira Lorenz.
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