Emma
Bovary e Ana Karenina talvez sejam as principais personagens femininas da
história da literatura, embora haja outras de grandeza igual, ou melhor dito,
de tanta importância ou ressonância na ficção. Mas as duas, sem dúvida, ocupam
um lugar de preeminência entre as demais, lembrando-nos, por exemplo, de Ofélia
e Desdêmona, de Shakespeare, ou de Mildred, de Servidão Humana, que,
obviamente, não é do mesmo estofo das referidas.
Um
exame comparativo entre as duas me parece interessante pelo confronto que
propiciam duas naturezas muito parecidas, embora cada qual guarde seu perfil
psicológico próprio. Em que se parecem e em que são distintas Emma e Ana? Aí
está desde o início colocado o busílis da questão.
Analisemos primeiro no que se
parecem. E se parecem muito, como se Tolstoi tivesse copiado sua personagem de
Flaubert, já que este precedeu aquele no tempo.
Só para estabelecer essa
precedência de um romance em relação ao outro, basta dizer que o de Flaubert
apareceu em l856 e o de Tolstoi iniciou-se em l873, divulgado em jornais. Os traços
principais de um se refletem nos do outro. Só para citar os detalhes mais
relevantes, Emma e Ana fazem casamentos desastrosos, aquela com um médico
medíocre, Carlos Bovary, que, no início da história, aparece às primeiras páginas
em trajes tais (um boné enfiado à cabeça) que é, desde logo, ridicularizado
pelos colegas. Sobretudo quando o professor lhe pergunta o nome. Ele o diz, mas
de tal forma o pronuncia – Carbovary - que provoca logo a hilaridade de todos;
esta com um homem de relevante posição na alta administração pública da Rússia
e de profunda formação cristã, mas que, não obstante, não soube despertar o
amor na esposa, fazendo com que, bem depressa, a relação entre os dois acabasse
por se deteriorar, levando-os irremediavelmente à separacão, vindo a
envolver-se com um homem da aristocracia, o conde Vronski (que ela conheceu à
chegada em San Petersburg, vinda de Moscou, quando ele fora receber a mãe; ali
mesmo toma conhecimento do atropelamento de uma pessoa por um trem, como premonição
de seu fim), mas com o qual também não encontra o relacionamento tão desejado,
pois o fato de ter envolvimento com outra mulher antes dela (Kitty) sempre lhe
despertou a suspeição de que esse amor
ainda sobrevivia. O ciúme e os conflitos surgidos desse novo caso amoroso
levam-na a um crescente desespero, alimentado por idéias que, na maioria das vezes, não tinham base na
realidade. Ambas, a seu modo, são fustigadas pelo desejo de superar o estreito
mundo em que vivem. Emma pelo propósito de fugir à medíocre vida provinciana de
Yonville, buscando outros horizontes. Na fuga de um casamento mal realizado e
frustrado passa a se envolver com amantes, cada um dos quais se revela um mau
caráter da pior espécie, quando neles deposita toda a esperança de uma vida
mais consentânea com seus sonhos, sempre enganosos como todos os sonhos, mas
nos quais fez a base de sua esperança de libertação do estreito e sufocante
círculo com o qual diuturnamente convivia. Ana igualmente asfixiada pela falta
de perspectiva de regularizar sua segunda experiência marital, para o que
precisaria que o marido lhe concedesse o divórcio, o que contraria sua fé
cristã, que lhe inibe tal solução. O fato da separação lhe causara a perda da
guarda do filho, o que era mais um dado a lhe fustigar pavorosamente a
sensibilidade estremecida. A sociedade russa de seu tempo tinha forte prevenção
contra mulheres separadas, que viessem a ter uma nova relação sem vínculo
matrimonial. Por toda parte, Ana percebia lhe fugir o chão dos pés, sentindo em
cada pessoa os efeitos terríveis de tal preconceito, mesmo naquelas (como sua
cunhada Dolly) que pareciam mais
solidárias com seu infortúnio. A mãe de seu amante (chamemo-lo assim) nutria em
relacão a ela o mesmo sentimento de reprovação, lamentando que o filho tivesse
dado esse passo de manter laços não legítimos com uma mulher que não tinha
suficiente estofo moral. Era uma perdida, na melhor das hipóteses. Como Emma,
Ana buscava encontrar apoio em alguma taboa de salvação mas todas lhe pareciam
falsas ou não suficientemente seguras, a lhe permitir a superação de seus
conflitos. A natureza de tais conflitos com Vronski era mais fantasiosa do que
propriamente real, pois procurava ajudá-la em suas crises mais profundas. Quanto
mais lhe dava apoio parecia que, por incompreensível atração pelo mal,
deixava-se arrastar na torrente de sua mente conturbada, que não lhe dava, a partir
de certo tempo, um momento de trégua. Ambas, por isso, buscaram, na morte - Emma
de forma mais deliberada que Ana, pois esta no último momento de seu desespero,
tentando o suicídio sob as rodas de um comboio, procurou recuar mas fê-lo tarde
demais, quando foi vítima de um acidente por ela própria provocado – o alívio
para suas dores. Emma não vacilou na ingestão do arsênico que encontrou na
farmácia de Homais (Flaubert revelou que
sentiu o gosto da droga no momento em que descreveu a cena); mas Ana, sim, teve
lampejos de que incorria, por suas
próprias mãos, num ato tresloucado. Portanto, são duas personagens atingidas
fortemente pela desgraça ou pelo drama de serem fustigadas pelo destino ou por
sua má sorte ou por sofrerem as contingências de uma sociedade preconceituosa e
estreita, que não lhes oferecia a mínima chance de desafogo ou de reconciliação
consigo mesmas. Muito ao contrário, estigmatizavam-nas como marginais pelos
padrões vigentes e aceitos. No auge de seu desespero, a morte se lhes pareceu a
única porta de saída. O que era dominante no conflito das duas é que não se
restringia ao âmbito de sua vida amorosa, mas estendia-se para além, para o
próprio conteúdo de uma sociedade asfixiante e mesquinha, com a qual percebiam
a total impossibilidade de conviver ou
partilhar fosse o que fosse. Na sua visão, todos eram um só, ou seja,
comungavam os mesmos preceitos absurdos ou obscurantistas que as prendiam e
enredavam numa camisa de força de que se sentiam impotentes de se livrar. Desse
modo, não havia escapatória possível à teia em que se percebiam envolvidas.
Só podiam se salvar com a
destruição de si mesmas.
No
que eram distintas?
Emma
talvez não tivesse o mesmo grau de esquizofrenia de Ana. O conflito desta era
mais de ordem psíquica. No que diz
respeito principalmente ao seu envolvimento com Vronski, sua segunda tentativa
de realização no plano amoroso, não era ou nem sempre era ele o causador de
seus embates ou de sua instabilidade emocional, como se procurasse alimentar as
noções mais desastrosas e pessimistas quanto à conduta deste no plano da
convivência que passaram a ter. Seu espírito vivia mergulhado na mais absoluta
confusão, fazendo-se falsas conjecturas quanto ao comportamento dele, levada
pela desconfiança ou por uma noção conturbada.da realidade.
Quanto
a Emma, era sobretudo a busca de apoio em seus amantes nunca correspondido que
a levou ao mais trágico dos atos. Mas Emma não se viu abandonada apenas por
esses e amigos mais próximos, como o próprio Homais, que lhe parecia ser tão
solidário em seus momentos mais críticos, mas foi atingida mais duramente por
um descontrole de dívidas que não via como saldar, a ponto desses amigos lhe
faltarem no momento em que mais urgia contorná-lo.
No frigir dos ovos, há de se concluir que
ambas se parecem mais do que se distinguem. Foram mais vítimas de si
mesmas do que outra coisa
qualquer. Mas é evidente que, sob outros aspectos, a sociedade de sua época,
com seu ferrenho moralismo e suas estúpidas convenções, influiu decisivamente
para conduzi-las de forma irremediável ao calvário.
O
fato, porém, é que, no mundo ficcional, (sempre as encaro como seres de carne e
osso), Emma Bovary e Ana Karenina surgem como duas personagens sem paralelo.
(Hamilton Alves é
jornalista e escritor)
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