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Thursday, December 1, 2016

EMMA BOVARY E ANA KARENINA, DUAS TRAGÉDIAS SEMELHANTES (em contextos sociais e históricos diferentes, mas análogos, as duas heroínas de Flaubert e Tolstoi encontram na morte a saída para suas angústias) (Por Hamilton Alves)



                                                           Emma Bovary e Ana Karenina talvez sejam as principais personagens femininas da história da literatura, embora haja outras de grandeza igual, ou melhor dito, de tanta importância ou ressonância na ficção. Mas as duas, sem dúvida, ocupam um lugar de preeminência entre as demais, lembrando-nos, por exemplo, de Ofélia e Desdêmona, de Shakespeare, ou de Mildred, de Servidão Humana, que, obviamente, não é do mesmo estofo das referidas.
                                                           Um exame comparativo entre as duas me parece interessante pelo confronto que propiciam duas naturezas muito parecidas, embora cada qual guarde seu perfil psicológico próprio. Em que se parecem e em que são distintas Emma e Ana? Aí está desde o início colocado o busílis da questão.
Analisemos primeiro no que se parecem. E se parecem muito, como se Tolstoi tivesse copiado sua personagem de Flaubert, já que este precedeu aquele no tempo.
Só para estabelecer essa precedência de um romance em relação ao outro, basta dizer que o de Flaubert apareceu em l856 e o de Tolstoi iniciou-se em l873, divulgado em jornais. Os traços principais de um se refletem nos do outro. Só para citar os detalhes mais relevantes, Emma e Ana fazem casamentos desastrosos, aquela com um médico medíocre, Carlos Bovary, que, no início da história, aparece às primeiras páginas em trajes tais (um boné enfiado à cabeça) que é, desde logo, ridicularizado pelos colegas. Sobretudo quando o professor lhe pergunta o nome. Ele o diz, mas de tal forma o pronuncia – Carbovary - que provoca logo a hilaridade de todos; esta com um homem de relevante posição na alta administração pública da Rússia e de profunda formação cristã, mas que, não obstante, não soube despertar o amor na esposa, fazendo com que, bem depressa, a relação entre os dois acabasse por se deteriorar, levando-os irremediavelmente à separacão, vindo a envolver-se com um homem da aristocracia, o conde Vronski (que ela conheceu à chegada em San Petersburg, vinda de Moscou, quando ele fora receber a mãe; ali mesmo toma conhecimento do atropelamento de uma pessoa por um trem, como premonição de seu fim), mas com o qual também não encontra o relacionamento tão desejado, pois o fato de ter envolvimento com outra mulher antes dela (Kitty) sempre lhe despertou a suspeição de que  esse amor ainda sobrevivia. O ciúme e os conflitos surgidos desse novo caso amoroso levam-na a um crescente desespero, alimentado por  idéias  que, na maioria das vezes, não tinham base na realidade. Ambas, a seu modo, são fustigadas pelo desejo de superar o estreito mundo em que vivem. Emma pelo propósito de fugir à medíocre vida provinciana de Yonville, buscando outros horizontes. Na fuga de um casamento mal realizado e frustrado passa a se envolver com amantes, cada um dos quais se revela um mau caráter da pior espécie, quando neles deposita toda a esperança de uma vida mais consentânea com seus sonhos, sempre enganosos como todos os sonhos, mas nos quais fez a base de sua esperança de libertação do estreito e sufocante círculo com o qual diuturnamente convivia. Ana igualmente asfixiada pela falta de perspectiva de regularizar sua segunda experiência marital, para o que precisaria que o marido lhe concedesse o divórcio, o que contraria sua fé cristã, que lhe inibe tal solução. O fato da separação lhe causara a perda da guarda do filho, o que era mais um dado a lhe fustigar pavorosamente a sensibilidade estremecida. A sociedade russa de seu tempo tinha forte prevenção contra mulheres separadas, que viessem a ter uma nova relação sem vínculo matrimonial. Por toda parte, Ana percebia lhe fugir o chão dos pés, sentindo em cada pessoa os efeitos terríveis de tal preconceito, mesmo naquelas (como sua cunhada Dolly) que  pareciam mais solidárias com seu infortúnio. A mãe de seu amante (chamemo-lo assim) nutria em relacão a ela o mesmo sentimento de reprovação, lamentando que o filho tivesse dado esse passo de manter laços não legítimos com uma mulher que não tinha suficiente estofo moral. Era uma perdida, na melhor das hipóteses. Como Emma, Ana buscava encontrar apoio em alguma taboa de salvação mas todas lhe pareciam falsas ou não suficientemente seguras, a lhe permitir a superação de seus conflitos. A natureza de tais conflitos com Vronski era mais fantasiosa do que propriamente real, pois procurava ajudá-la em suas crises mais profundas. Quanto mais lhe dava apoio parecia que, por incompreensível atração pelo mal, deixava-se arrastar na torrente de sua mente conturbada, que não lhe dava, a partir de certo tempo, um momento de trégua. Ambas, por isso, buscaram, na morte - Emma de forma mais deliberada que Ana, pois esta no último momento de seu desespero, tentando o suicídio sob as rodas de um comboio, procurou recuar mas fê-lo tarde demais, quando foi vítima de um acidente por ela própria provocado – o alívio para suas dores. Emma não vacilou na ingestão do arsênico que encontrou na farmácia de Homais  (Flaubert revelou que sentiu o gosto da droga no momento em que descreveu a cena); mas Ana, sim, teve lampejos de que incorria,  por suas próprias mãos, num ato tresloucado. Portanto, são duas personagens atingidas fortemente pela desgraça ou pelo drama de serem fustigadas pelo destino ou por sua má sorte ou por sofrerem as contingências de uma sociedade preconceituosa e estreita, que não lhes oferecia a mínima chance de desafogo ou de reconciliação consigo mesmas. Muito ao contrário, estigmatizavam-nas como marginais pelos padrões vigentes e aceitos. No auge de seu desespero, a morte se lhes pareceu a única porta de saída. O que era dominante no conflito das duas é que não se restringia ao âmbito de sua vida amorosa, mas estendia-se para além, para o próprio conteúdo de uma sociedade asfixiante e mesquinha, com a qual percebiam a total impossibilidade de conviver ou  partilhar fosse o que fosse. Na sua visão, todos eram um só, ou seja, comungavam os mesmos preceitos absurdos ou obscurantistas que as prendiam e enredavam numa camisa de força de que se sentiam impotentes de se livrar. Desse modo, não havia escapatória possível à teia em que se percebiam envolvidas.
Só podiam se salvar com a destruição de si mesmas.
                                                                       No que eram distintas?
                                                                       Emma talvez não tivesse o mesmo grau de esquizofrenia de Ana. O conflito desta era mais de ordem psíquica.  No que diz respeito principalmente ao seu envolvimento com Vronski, sua segunda tentativa de realização no plano amoroso, não era ou nem sempre era ele o causador de seus embates ou de sua instabilidade emocional, como se procurasse alimentar as noções mais desastrosas e pessimistas quanto à conduta deste no plano da convivência que passaram a ter. Seu espírito vivia mergulhado na mais absoluta confusão, fazendo-se falsas conjecturas quanto ao comportamento dele, levada pela desconfiança ou por uma noção conturbada.da realidade.
                                                                       Quanto a Emma, era sobretudo a busca de apoio em seus amantes nunca correspondido que a levou ao mais trágico dos atos. Mas Emma não se viu abandonada apenas por esses e amigos mais próximos, como o próprio Homais, que lhe parecia ser tão solidário em seus momentos mais críticos, mas foi atingida mais duramente por um descontrole de dívidas que não via como saldar, a ponto desses amigos lhe faltarem no momento em que mais urgia contorná-lo.
                                                                        No frigir dos ovos, há de se concluir que ambas se parecem mais do que se distinguem. Foram mais vítimas de si
mesmas do que outra coisa qualquer. Mas é evidente que, sob outros aspectos, a sociedade de sua época, com seu ferrenho moralismo e suas estúpidas convenções, influiu decisivamente para conduzi-las de forma irremediável ao calvário.
                                                                       O fato, porém, é que, no mundo ficcional, (sempre as encaro como seres de carne e osso), Emma Bovary e Ana Karenina surgem como duas personagens sem paralelo.                                               
                                                          
                                                          
                                                                       (Hamilton Alves é jornalista e escritor)
                                                           

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