Voltando
às páginas de “No caminho de Swann”, o primeiro volume de “À la recherche...”, à
margem, registrei que, a certa altura, o narrador define Swann como um
neuropata. Tal designação lhe concerne ou lhe diz respeito ou casa-se a sua
complicada personalidade?
Bem,
se uma paixão por uma mulher pode ser
considerada uma neuropatia (Freud dizia que era um fetiche) , então não há
dúvida que era um neuropata.
No
decorrer desse primeiro tomo da obra de Proust há muitos momentos em que tal
neuropatia aflora nas relações nem sempre bem definidas entre os dois amantes.
Ela parecia pairar olimpicamente acima de tal paixão, como lhe fosse algo que
cultivasse sem muito entusiasmo ou nutria por Swann não mais que certa admiração
provinda de seu inegável talento para viver a boa vida, um homem ligado à
nobreza, às artes, e, ao mesmo tempo, ser capaz de conviver com um garçom do
primeiro bar de bas-fond que, a certas horas, se permitisse frequentar.
Swann
tinha essa característica de refinamento, mas velada por ele mesmo, que não a
exibia, que até, em certas circunstâncias, a reprimia, escondendo-a dos olhos dos
amigos que não suspeitavam nele essa qualidade fundamental de viver vidas de
diferentes padrões ou características, ou de, por exemplo, coexistir em lugares
tão diferentes um do outro que não levasse ninguém a supor que, antes de
unir-se a um grupo social menos qualificado, estivera em contato com nobres.
Sem falar em sua aptidão de comentar obras de arte como um profundo conhecedor
e de ter assistido às últimas exposições sem que ninguém desse por isso.
Odete
andava bem afastada desse mundo galante ou o freqüentava de raspão, levada por ele;
não por iniciativa própria. Até porque, em tais meios, e nos de menor expressão
social também, era vista como uma pessoa vulgar, mas que a beleza inigualável a
fazia alvo de todas as atenções.
Um
neuropata da paixão pode-se, sim, dizer de Swann. A paixão por Odette era a
cruz que carregava sem que ela mesma se desse conta provavelmente disso. Ou, se
desse, lhe era tão indiferente com as nuvens que via passar no céu.
Odette
pode ser descrita como tendo uma dessas personalidades muito peculiares, ao
mesmo tempo em que fascinam deixam um sabor amargo naqueles que dela se
aproximam. Era ao mesmo tempo bela e inacessível – até mesmo para o amante.
Sua
inacessibilidade podia decorrer de saber-se encantadora e despertar nos homens
desejos inconfessos. A neuropatia de Swann (ou fetiche) era de reconhecer que
ocupava, na vida dela, não mais que um espaço marginal. Ela o acolhia, cortejava-o
às vezes, mas tudo isso vinha revestido, na percepção dele, de um alto grau de
frieza.
Muitas
vezes, em horas perdidas da noite, andava à procura dela nos possíveis locais
onde pudesse encontrá-la. De cada vez que isso se tornava inútil punha-se a
refletir, como um possesso, com quem passava àquelas horas ou em que lugar
insuspeitado podia estar a divertir-se e a desfrutar aqueles momentos
tormentosos para ele.
Razão
teve, sim, o narrador para defini-lo como um neuropata.
(maio/08).
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