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Thursday, August 4, 2016

A MORTE DE DEUS - Hamilton Alves





            Numa sexta-feira de abril de um ano de que nãoregistro, num hotel da rua Conselheiro Mafra, em que durante uma semana ocupou uma água-furtada, de onde se tinha uma bela visão da baía sul, Deus morreu.
            Quando se deu pelo fato, houve um alarido no pequeno hotel. O gerente ficou feito barata tonta quando a camareira lhe pôs a par do ocorrido.
-         Mas por que Deus está morto? – perguntou ele muito tenso à camareira.
-         Sabe-se lá porque! Hoje, à tarde, quando fui arrumar o quarto, o corpo estava caído do lado da cama.
Imediatamente, depois de constatar o fato, temeroso do escândalo que a morte de Deus poderia provocar, o gerente, com toda a cautela, dirigiu-se à Delegacia de Polícia, onde manteve contato com o comissário de plantão, que foi encontrado sentado numa cadeira rolante, lendo um gibi, com as pernas repousando em cima da mesa.
-         Boa tarde.
-         Boa tarde. – respondeu o comissário. O que é que manda?
-         Um homicídio!... E logo no hotel em que trabalho.
-         O que é que aconteceu?
-         Deus morreu hoje de tarde.
-         Deus morreu?!... Você deve estar brincando. A morte de Deus foi anunciada pelo filósofo Nietzche, mas nem por isso se deu ao caso maior importância; Deus continua vivo e bem vivo. Você enlouqueceu!
-         Não se trata do Deus bíblico.
-         De quem se trata então?
-         Este Deus a que me refiro é outro Deus. É um homem como eu e você, de carne e osso.
-         Mas como ousa chamá-lo de Deus?
-         Nós o chamávamos de Deus. Era corriqueiro no hotel, desde o dia em que lá se hospedou.
-         Tem outro nome então?
-         Sim.
-         Como se chama?
-         José de Deus.
-         Então está explicado. Começo a entender melhor as coisas.
O policial mexeu nuns papéis, pegou um cigarro, acendeu-o, empertigou-se, olhou de frente seu interlocutor e lançou-lhe a pergunta.
-         Mas afinal, de que ele morreu?
-         Pois é... isto é que convém saber.
-         Estava há muito tempo hospedado no hotel?
-         Fazia já uma semana.
-         Como foi que souberam do fato?
-         A camareira hoje à tarde foi entrar no quarto para a faxina de rotina e viu o corpo caído ao lado da cama.
-         Estava morto?
-         Sim, ela disse que o encontrou morto.
-         Ele tinha algum tipo de relacionamento com alguém conhecido?
-         Não, ninguém o visitara durante esse tempo no hotel.
-         Quem poderia tê-lo matado?
-         Quem é que sabe!
-         Ele costumava ir a algum local conhecido, recebia telefonemas ou coisas desse tipo?
-         Nada se sabe em torno de sua vida. Era uma pessoa esquisita, de pouca fala.
-         Isso torna tudo difícil. Bem, providenciarei a remoção do corpo para fazer-se a autópsia. Em seguida, será aberto o inquérito. É tudo o que nos cabe, no caso, fazer.
O policial, seguido do gerente, dirigiu-se à garagem da Chefatura de Polícia. Embarcaram num carro. Foram até o hotel. Uma ambulância retirou o corpo de onde se encontrava e o levou ao Instituto Médico Legal, onde se veio a constatar a morte de Deus por ter feito ingestão excessiva de barbitúricos.
Ao tomar conhecimento do fato, alguns repórteres estiveram na Delegacia.
-         Soube-se que Deus morreu. Ou matou-se, comissário. Que pode adiantar sobre o fato?
-         Tudo se resume à ingestão de dose letal de barbitúricos.
-         Não foi crime, então?
-         Não havia vestígio de luta corporal no local em que foi encontrado o corpo.
-         Por que Deus teria se matado?
-         Quem sabe?!...
-         De onde teria vindo?
-         O gerente me disse que ele era caixeiro-viajante.
-         Não é um ofício muito condigno a Deus.
-         Não brinque. Não seja sacrílego.
-         Mas não é conhecido por esse nome?
-         Sim, todos o conheciam por Deus. O nome dele é José de Deus
-         A polícia não fará nenhuma diligência além da que já fez para apurar outros fatos ligados à morte de Deus?
-         O que é que você espera que a polícia faça?
-         É possível que alguém lhe tenha servido algum líquido envenenado ou uma garrafa de bebida contendo dose excessiva de alguma droga. Deus não se mataria á-toa.
-         Por que não?
-         O senhor sabe alguma coisa a respeito da sua vida pregressa? Acaba de me dizer que não se sabe de onde veio.
-         Quem é que teria motivos para matá-lo?
-         Há tanta gente interessada em matá-lo.
-         Quem?
-         Isso não é pergunta que o senhor me faça. O senhor mesmo deve fazê-la a si mesmo.
-         Vocês, jornalistas, sempre pretendem bisbilhotar em torno de razões às vezes imponderáveis.
-         Mas o caso não se encerrou com a simples constatação da morte de Deus. Há que ir até o fim.
-         O gerente me disse que ele deixou apenas o nome no registro de hóspedes e quando foi perguntado de onde tinha vindo não disse nada. Disse apenas que acabara de chegar à cidade e, ao declinar sua profissão, disse ser caixeiro-viajante.
-         O que é que ele vendia?
-         Livros.
-         Procurou-se saber se tinha visitado alguma livraria ou biblioteca?
-         O gerente nada disse a tal respeito.
-         O caso, então, a seu ver, está encerrado. A morte de Deus fica por isso mesmo?
-         Não temos até agora nenhuma pista.
-         Não se procurou algum documento que revele sua identidade ou o lugar de onde teria vindo?
-         Nada constava numa pequena maleta que o acompanhava, nada nos bolsos de sua roupa, que, aliás, se resumia a duas calças, três camisas, dois pares de meia, duas ou três cuecas e um casaco pendurado num cabide atrás da porta do quarto que ocupou.
-         Isto é tudo?
-         Sim.
-         Nada mais?
-         Nada.
Houve um longo silêncio. O comissário puxou novamente um cigarro do bolso, acendeu-o, deu algumas baforadas, olhou por uma janela por onde se via uma nesga do mar. Àquela hora, transitavam por ali alguns barcos.
-         Deus tinha que escolher logo esta Ilha para morrer. – disse, entre dentes, o comissário.
Parecia ter pensado em voz alta, dando azo a que o jornalista perguntasse:
-         Não seria o caso de checar as livrarias da cidade ou a biblioteca pública? Pode ser que tivesse mantido contato com elas
-         Já foi tudo devidamente checado. Ninguém sabe informar nada sobre a existência de Deus.
-         Isso dá o que pensar... – disse o repórter.
-         O que é que você pretende dizer?
-         Mas se ninguém sabe da existência de Deus... isso é muito curioso.
-         Por que?
-         Ora, se ele era caixeiro-viajante, algum contato devia manter com o comércio de livros. Não acha?
-         Mas o que se apurou até agora é que ninguém o viu. Ninguém sabe dizer nada. Nada se prova. O que é que você quer?
-         É estranho!...
-         Por mais estranho que lhe possa parecer, os fatos são estes - declarou peremptório o comissário como querendo pôr uma pá de cal no assunto.
-         A polícia não tomará mais nenhuma iniciativa?
-         Estamos coletando dados, mas não creio que esse caso envolva algum crime.
-         Por que o senhor está tão certo disso?
-         O gerente informou que Deus não foi visitado por ninguém no dia dos fatos. Não manteve também nenhuma ligação telefônica com qualquer pessoa. Que conclusão tirar disso?
-         Alguém poderia ter se infiltrado no quarto e lhe servido o líquido contendo a droga. Havia uma jarra de água em sua mesinha de cabeceira.
-         Quem foi que lhe disse que tinha uma jarra de água na cabeceira dele?
-         O gerente.
-         Você o entrevistou também?
-         Antes de vir aqui, estive com ele.
-         Nada me disse a tal respeito.
-         São dados importantes.
-         Você tem razão. Voltarei a entrevistar o gerente para que confirme esses detalhes.
Na entrevista mantida com o gerente, este repetiu tudo o que o policial já sabia e confirmou a existência de uma jarra d’água à cabeceira da cama de Deus.
Teria tomado da água da jarra onde poderia ter sido colocada a dose fatal de barbitúricos.
A polícia, apesar de todo o levantamento feito, não chegou a nenhuma conclusão de ter havido crime.
Nunca se soube nada a respeito da morte de Deus. E muito menos da sua vida pregressa. O mistério envolveu para sempre este rumoroso caso. Até hoje.



(fim) 

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