Outro
dia, Salim Miguel, trocando comigo opinião sobre literatura, muito de passagem,
colocou a seguinte e enigmática questão:
-
Não dá para entender o Silveira, não é?
Com
essa pergunta pretendia insinuar
ser incompreensível que um
contista do nível de Silveira de Souza continue ainda um ilustre desconhecido
nas letras pátrias, sendo considerado dentre os melhores. Da altura, por
exemplo, de Dalton Trevisan ou Sérgio Faraco ou Moacyr Scliar, para situar o
problema ao sul do país. Ou ainda de Rubem Fonseca.
À
colocação do Salim respondi com idêntica perplexidade, pois se tantos, de menor
envergadura, alçaram-se no cenário nacional, conquistando as grandes editoras,
por que não ele?
O
caso é que Silveira de Souza, a depender dele, não dará um passo na sua promoção.
Certa feita mencionei alguns de seus contos como sendo expoentes entre os
demais escritores consagrados. Fechou-se como um caramujo.
Agora,
vem de editar mais um livro, “Janela de Varrer”, (Editora Bernúncia, l50 pgs.),
título de um dos cinqüenta contos desse livro e um dos melhores.
Ocorre
com Silveira um fato pouco comum: alguns contos desse livro já os editou em outros. Dentre a
meia centena há alguns poucos inéditos. Dito por ele mesmo, quando lhe falei há
pouco sobre isso, “Stela” e “Caga Lume Cego” são dois deles.”Para a
rodoviária”, que é um dos melhores contos que já produziu (o de minha
preferência, já o li inúmeras vezes, não
vou parar nunca de lê-lo, tenho dele um recorte de jornal onde foi publicado na gaveta da mesa de
meu escritório), publicou em quase todos os livros editados, inclusive nesse
último.
Vê-se
por aí que não é muito prolífero. Outro dado a respeito de sua atividade
literária é que leva tempo para concluir um trabalho, mesmo que seja uma
crônica banal. Já pertencemos em priscas eras à mesma redação de um jornal
local, em que ambos dividíamos o espaço da crônica. Certa tarde (ou manhã), na
redação, encontrei o Silveira empacado no início de uma crônica ou no seu
desenvolvimento, pedindo-me para socorrê-lo, o que aceitei, mas de minha vez
também não consegui ir adiante. Demos a essa histórica crônica o título de
“Inês e os pardais”, com cujo título pretendemos editar um livro de crônicas. Podia
citar um outro conto que é igualmente impactante, ou tão bom quanto o precedente
citado, para o meu gosto, curtíssimo, de uma página e meia, se tanto, com o
título ”Fuga”.
Um
único conto ou um único poema é suficiente para consagrar um escritor ou um
poeta. Esses dois contos bastariam para colocá-lo no “podium”. O teor de ”Para
a rodoviária” é de tal natureza que seria capaz de fazer sobre ele uma
conferência, tão sortida e variada é a forma pela qual se compõe. Ou tão
múltiplas são suas nuances. Ou os lances que se podem extrair dele. Além de seu
conteúdo poético.
Quando
escrevi há tempos um artigo para a revista da Academia Catarinense de Letras
sobre esses dois contos de Silveira, sob os auspícios de meu amigo Apóstolo
Psíquica, pediu-me que escrevesse um outro trabalho alcançando mais
profundamente sua obra. Não cabe, aqui, esmiuçar o conteúdo desses contos, por
mais que valesse a pena, dada a beleza de que se revestem, mas em resumo, “Para
a rodoviária” envolve o drama de dois amantes, que vêm de uma noitada de amor e
que, por ninharia, se desentendem. Ele carrega a bagagem dela, que seguirá para
Porto Alegre. Em dado momento, ele tem uma iluminação e percebe toda a
artimanha ardilosa da mulher. Por isso, encosta-a à parede e a beija.
Segue-se a reconciliação. Mesmo assim, ela embarca no ônibus. Orgulhoso,
deixa-a ir, sem pretender alterar o rumo dos acontecimentos. Em seguida, sai a
passos “pelas ruas desertas, com suas casas baixas, com seus bares conhecidos e
árvores fiscalizadas, a testemunhar mais um dia na vida desses estranhos seres
humanos”.
Em
“Fuga”, o personagem aluga um carrinho de cavalo, que estacionava na Praça XV,
em velhos tempos. O boleeiro pergunta ao passageiro para onde quer ir. Responde:
-
Para qualquer lugar.
A
caleça segue pelas ruas estreitas da cidade.
-
Mais rápido – diz o passageiro – tão rápido que eu esqueça de mim mesmo.
Numa
área aberta, defrontando-se com o mar, o carrinho pára. O personagem, como
tomado de um transe, salta e segue na direção do mar. São esses os
dois grandes momentos de Silveira no conto, embora, claro, haja outros iguais.
Cito, por exemplo, os seguintes: “He, he, he!”. “Canário de Assobio”, “Ilha das
Vinhas”, ”Nuvens”, “Janela de Varrer”, que dá título ao último livro, já
referido aqui, e outros.
Houve
um episódio curioso ocorrido há alguns anos com Silveira, quando ele, embora
jovem, tinha já percorrido um bom caminho nas letras e escrito alguns de seus melhores contos. Numa
das vezes que foi ao Rio, envolvido sempre com os meios literários, encontrou-se
com Jorge Amado, um escritor que apreciava e que, àquela altura, era detentor
de fama nacional. A certa altura, dado o rumo que a conversa tomou, Silveira identificou-se.
Foi quando, para sua surpresa, viu que Jorge tirou do bolso o recorte de um
jornal com um conto de sua autoria (do Silveira) e lhe disse:
-
Colhi esse conto de um jornal, “O Charadista”, de sua autoria, não é? Gosto
muito dele.
Silveira,
com isso, ficou paralisado. Não esperava que um escritor do prestígio de Jorge
Amado tivesse revelado interesse por um de seus contos.
Alguns
de nossos escritores já alcançaram a façanha de ultrapassar fronteiras. É o
caso de Salim Miguel, tendo sido duas ou três vezes editado por grandes
editoras. Outro é Flávio Cardozo, que recentemente teve seu livro de contos,
“Guatá”, publicado pela Record. E também há pouco teve um conto publicado numa
antologia da Ediouro. Parece que são apenas esses dois que conseguiram esse
feito. Desconheço que outros o tenham logrado.
Silveira
continua feito caramujo, encolhido em seu canto de Itaguaçu, “o melhor lugar do
mundo para se morar”, como costuma dizer a amigos, confirmado por seu vizinho
Hassis, que já nos deixou faz um tempo.
A
estranheza manifestada por Salim Miguel quanto
ao fato de Silveira não ter ainda alcançado audiência nacional é compartilhada
por muitas outras pessoas, inclusive por gente do mesmo ofício.
Se
Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Faraco, Fernando Veríssimo, Moacyr
Scliar são, hoje, celebrados como nomes de realce do panorama literário brasileiro,
porque negar-se a Silveira, igual a eles, o mesmo direito? Ou a mesma
consideração? Ou não será o caso de
negar-se, mas de reconhecer-se, embora esse reconhecimento não seja traduzido
na divulgação de sua obra ou de seu trabalho.
Silveira
não faz, ao que parece, o menor empenho em conquistar as grandes editoras. Se
um dia lhe baterem à porta, tudo bem; franqueá-la-á. Mas até que isso seja
feito, não demonstra o menor sinal de querer insistir em que as coisas
aconteçam no sentido de sua difusão. Com seu temperamento simples e esquivo,
contenta-se com as editoras locais, que vêm publicando seus contos faz anos,
tão boas em qualidade (menos em distribuição) como as demais conhecidas dos
grandes centros.
Como
Borges, que vivia anônimo e ignorado em Buenos Aires , espera a vez de aparecer alguém que
o descubra e lhe destine o lugar merecido nas letras deste país.
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