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Como é que você consegue viver com esse homem?
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Sempre tem um jeito.
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Mas você me disse que ele não faz outra coisa na vida que ler, colecionar
quadros, pilhas de discos de música que você não gosta.
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Mas gosto dele, ora bolas.
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Sim, entendo que você possa gostar de um homem assim. Mas...
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Mas o que?
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Tem uma hora que você precisa falar com ele, chegar a um ponto comum. E daí?
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Não tem grilo, companheira.
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Como?
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A gente fala o que pinta.
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Ah, é?!
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É. Você... como é que você se entende com o teu homem?
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Bem, nós temos o mesmo grau de burrice.
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Ele é um intelectual, esses babados, compreende?
Eu, muito diferente dele, não leio livros, nunca li nada,
costuro pra fora, como você sabe, mas ele não faz questão que eu saiba dessas
coisas. E ainda por cima disse-me outro dia que me acha uma pessoa inteligente.
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Ele te disse isso? Certamente, estava te gozando.
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Acreditei nele; não sou tão burra assim; qualquer pessoa pode ser inteligente
sem ter lido livros, compreende, amiga?
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Não chego a perceber. Continuo achando que esse abismo um dia acaba separando
vocês.
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Mas isso não importa; se acontecer, paciência; a gente está no mundo para o que
der e vier; mas nos amamos; na hora do amor a gente se entende.
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E isso enche a vida de vocês?
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Se enche, não sei; só sei que até agora está dando certo.
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De que assuntos vocês tratam?
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De todos.
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Mas quais, de preferência?
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Não há preferência.
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Mas o que é que pinta no papo de vocês?
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Ora, a vida, as coisas, os assuntos que ocupam a cabeça de qualquer pessoa.
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Ele não fala dos livros que lê, dos assuntos de que trata nos livros dele, dos
quadros ou das músicas eruditas que ele vê e ouve?
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Fala e, quando fala, eu o ouço; tenho aprendido muito com ele; mas não é só
isso que ele fala ou que nos interessa.
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É esquisito.
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Não vejo nada esquisito; pelo contrário, é tudo muito simples; cada um na sua.
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Gostaria de ser um fantasma para estar presente em algum momento de curtição de
vocês dois sobre qualquer tema.
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Outro dia, você devia ver, me falou de um cara que foi escritor, morreu
tuberculoso, que produziu uma novela de um pesadelo, escreveu-a em três dias e
tornou-se uma história conhecida no mundo todo; ele contou-a do início ao fim;
é uma beleza. Você já deve ter ouvido falar nessa novela.
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Como se chama?
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“O médico e o monstro”, de Stevenson, que, aos 44 anos, depois de viver longos
anos com uma prostituta, pela qual se apaixonou, que inclusive era mais velha
do que ele, morreu numa ilha perdida nos mares do sul.
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Ele sempre fala de escritores e literatura com você?
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Nem sempre, no mais é sobre o trivial variado.
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