Tem
uma frase de Dercy que é a revelação de seu caráter ou do ser humano
excepcional que foi: “A
gente precisa ser feliz nem que seja na porrada”. Uma frase dessa meu ver, vale por todo um compêndio de psicologia.
Todos deveriam torná-la
sua propriedade ou levá-la por toda a parte como um talismã precioso.
Dercy,
tal como era vista nos palcos, transmitia exatamente essa energia contida nessa
frase às pessoas. Seus palavrões não eram outra coisa que a fórmula de uma
espécie de “abre-te césamo” em direção à alegria de viver. Ou de superar os problemas
menores ou maiores, que tantas vezes nos surgem como fantasmas, no dia a dia.
Nunca
tive com ela contato pessoal. Uma única vez assisti a um de seus shows, sempre
na base da improvisação. Creio que inventava tudo, até mesmo sua maneira de
viver. Imagine-se que, no dia em que veio a falecer, com 101 anos, fora a um
bingo. Quem na sua idade se abalançaria a frequentar uma casa de jogos semelhante?
O que seria mais lógico e até mais previsível é que uma pessoa tão longeva
assim ficasse em casa, deitada numa cama ou sentada numa long-chaise curtindo
algum entretenimento caseiro. Dercy era feita de outra massa. Com ela a barra
era diferente, Travava com a vida um duelo permanente, que tirava de letra.
Tinha que ser feliz, não obstante arrostar a velhice. Mantinha o alto astral
sempre, como contam pessoas que lhe eram íntimas ou como acabou por revelar sua
filha, que contou os últimos momentos de sua existência. Dercy voltara do bingo
com uma dor no tórax. Constatou-se que apresentava problemas respiratórios, que
evoluíram e a mataram, Pediu que fosse cantado em seu enterro o samba enredo da
Escola de Samba Viradouro, que num desses últimos anos a homenageou e, com ela,
fossem também todas as suas perucas. Oh, perucas – dir-se-á –que gosto extravagante!
Mas é bem típico de Dercy.
Quando
Chaplin morreu comentei para amigos:
“Perdemos
o maior gênio do cinema. O homem que fez o mundo melhor e mais humano”.
Agora,
com a morte de Dercy, posso dizer coisa parecida. Dercy fez rir durante os seus
101 anos de vida. Nasceu predestinada, embora pertencente a uma família pobre.
O início de vida, contado por ela, foi uma sucessão de sofrimentos. Até que o
destino revelou-lhe o caminho que deveria trilhar: o palco. Foi nesse momento
que Dercy descobriu Dercy ou o papel que lhe incumbia neste mundo.
Foi
sempre irreverente com tudo e todos. Não seguia slogans. Seguia uma única filosofia
de vida – a que inventara. O resto não batia com sua cabeça.
No
auge da discussão sobre o aborto, lembro-me que pôs a mão no ventre, virou-se
para o público e proferiu essas palavras, expressando sua liberdade: “aqui quem
manda sou eu”.
Pode
ser meio grotesco. Mas era a forma de ser e de agir de uma criatura que sempre
primou por ser livre.
Agora
a perdemos.
Quem
a substituirá nos palcos com a mesma irreverência ou a mesma arte de fazer rir
ou de tornar as pessoas mais felizes nem que seja na porrada?
Dercy,
por tudo que você foi e fez para tornar a vida mais amena, obrigado.
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