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Monday, October 31, 2016

DERCY - Hamilton Alves


Tem uma frase de Dercy que é a revelação de seu caráter ou do ser humano excepcional que foi:         “A gente precisa ser feliz nem que seja na porrada”. Uma frase dessa meu ver, vale por todo um compêndio de psicologia.
Todos deveriam torná-la sua propriedade ou levá-la por toda a parte como um talismã precioso.
Dercy, tal como era vista nos palcos, transmitia exatamente essa energia contida nessa frase às pessoas. Seus palavrões não eram outra coisa que a fórmula de uma espécie de “abre-te césamo” em direção à alegria de viver. Ou de superar os problemas menores ou maiores, que tantas vezes nos surgem como fantasmas, no dia a dia.
Nunca tive com ela contato pessoal. Uma única vez assisti a um de seus shows, sempre na base da improvisação. Creio que inventava tudo, até mesmo sua maneira de viver. Imagine-se que, no dia em que veio a falecer, com 101 anos, fora a um bingo. Quem na sua idade se abalançaria a frequentar uma casa de jogos semelhante? O que seria mais lógico e até mais previsível é que uma pessoa tão longeva assim ficasse em casa, deitada numa cama ou sentada numa long-chaise curtindo algum entretenimento caseiro. Dercy era feita de outra massa. Com ela a barra era diferente, Travava com a vida um duelo permanente, que tirava de letra. Tinha que ser feliz, não obstante arrostar a velhice. Mantinha o alto astral sempre, como contam pessoas que lhe eram íntimas ou como acabou por revelar sua filha, que contou os últimos momentos de sua existência. Dercy voltara do bingo com uma dor no tórax. Constatou-se que apresentava problemas respiratórios, que evoluíram e a mataram, Pediu que fosse cantado em seu enterro o samba enredo da Escola de Samba Viradouro, que num desses últimos anos a homenageou e, com ela, fossem também todas as suas perucas. Oh, perucas – dir-se-á –que gosto extravagante! Mas é bem típico de Dercy.
Quando Chaplin morreu comentei para amigos:
“Perdemos o maior gênio do cinema. O homem que fez o mundo melhor e mais humano”.
Agora, com a morte de Dercy, posso dizer coisa parecida. Dercy fez rir durante os seus 101 anos de vida. Nasceu predestinada, embora pertencente a uma família pobre. O início de vida, contado por ela, foi uma sucessão de sofrimentos. Até que o destino revelou-lhe o caminho que deveria trilhar: o palco. Foi nesse momento que Dercy descobriu Dercy ou o papel que lhe incumbia neste mundo.
Foi sempre irreverente com tudo e todos. Não seguia slogans. Seguia uma única filosofia de vida – a que inventara. O resto não batia com sua cabeça.
No auge da discussão sobre o aborto, lembro-me que pôs a mão no ventre, virou-se para o público e proferiu essas palavras, expressando sua liberdade: “aqui quem manda sou eu”.
Pode ser meio grotesco. Mas era a forma de ser e de agir de uma criatura que sempre primou por ser livre.
Agora a perdemos.
Quem a substituirá nos palcos com a mesma irreverência ou a mesma arte de fazer rir ou de tornar as pessoas mais felizes nem que seja na porrada?
Dercy, por tudo que você foi e fez para tornar a vida mais amena, obrigado.

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