Cantalício
foi um dos grandes amigos que fiz num lugarejo do interior da Ilha onde tive
durante tempos uma casa de passar férias e fins de semana – agora tornou-se
moradia.
A princípio, quando nos aproximamos, causou-me estranheza o
modo como vivia, sem uma casa
para morar (hoje aqui, amanhã ali, em abrigos precários e provisórios). Isso me
tocava ou preocupava. De alguma maneira procurei minimizar-lhe os efeitos da
miséria.
O
que me chamava mais a atenção nele era sua religiosidade, não que fosse um
fenômeno igual ao de outras pessoas que seguiam a mesma linha de religiões. A
religião nele era uma coisa mais visível, no sentido de que levava por toda parte
um rosário de contas enormes.
-
Quem lhe deu esse rosário, Cantalício?
-
Foi uma senhora.
Vezes
sem conta encontrei-o lendo a bíblia nos lugares mais diferentes.
-
Qual a parte da bíblia que mais lhe interessa? – perguntei-lhe sem esperar resposta
muito pronta.
-
É o Novo Testamento.
Em
algumas ocasiões, encontrando-o ao acaso, tinha o hábito de repetir-me:
-
Tem muito pecado no mundo.
Parecia-me
que essa era uma forma de crítica que fazia ao mundo ou à sociedade como um
todo ou da omissão dos homens face aos problemas humanos.
Para
mim, tal reflexão me chamava à razão para o modo de vida que levava. A lição contida
nessas simples palavras funcionava em mim como um aguilhão.
Talvez
mal tivesse senso de que era fortemente atingido pelos “pecados do mundo”,
representados pela corrupção, pelos desmandos, pelos desregramentos de quem detinha
o poder.
Haveria
um santo no mundo comparável aos grandes santos? – diante de Cantalício costumava
me perguntar.
Não
seria esse homem um santo?
Vivia
como tal, metido com seu rosário, na leitura da bíblia, morando de forma miserável,
se alimentando de forma irregular, despojado de todas as coisas que davam
conforto à maioria das pessoas. Dizia-me que fazia uma lata de café e o bebia
frio ou quente durante o dia.
Ninguém
queria saber dele. Não lhe davam atenção. Só dois ou três cachorros o seguiam
por toda parte.
Um
outro vizinho disse-me um dia de forma que me pareceu injusta:
-
Isso é um malandro; não quer trabalhar.
-
Cantalício é um homem doente. – disse-lhe.
Calou-se.
De
tanto que me empenhei, construí um pequeno barraco onde Cantalício, por fim,
poderia se abrigar. Durou pouco. Três dias depois sumiu, levado por membros de uma
congregação existente em Ribeirão da Ilha.
A
última notícia que soube dele é que está internado no Orianópolis, uma casa que
recolhe idosos e pessoas que vivem ao Deus dará.
Deu-me
a bíblia de presente, deixando-a com um vizinho incumbido de me entregá-la, com
a seguinte dedicatória:
-
Ao irmão Hamilton, com o abraço do Cantalício.
(junho/08).
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