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Friday, September 30, 2016

CEM ANOS DO POETA MÁRIO QUINTANA (vivendo sempre em Porto Alegre, Quintana firmou-se como um dos poetas mais apreciados do país) (por Hamilton Alves)


            Tive a felicidade de conhecer Mário Quintana, já bastante idoso, num apartamento em Porto Alegre, no Hotel Royal, no centro da cidade, que Roberto Falcão, o ex-craque da seleção brasileira e ora comentarista da Globo, lhe emprestou para morar enquanto vivesse.  Pouco antes fora despejado de um imóvel pertencente à prefeitura.
            Foi ali numa certa tarde que o procurei, com um livro de crônicas à mão, em busca de editor. Não cheguei a mostrar-lho. Recebeu-me afavelmente. Era uma figura simpaticíssima, vivendo sozinho nesse apartamento, assistido por uma secretária que, quando cheguei ao local, lhe preparava um lanche.
            As paredes desse apartamento eram forradas de livros. Junto a uma delas uma cama, sobre a qual notei um quadro de muito mau gosto. Talvez a pintura não fosse uma eleição de Quintana. Ou ele nem ligava para isso.
            Conversamos cerca de uma hora.
            Quando lhe falei de meu livro e da dificuldade de editá-lo, comentou:
            - Os editores sempre criam dificuldades para editar livros, mas no fim acabam editando.
            Antes de conhecê-lo ouvira muitas histórias a seu respeito, uma das quais contada por um amigo, que morou com ele numa pensão em Porto Alegre. Quintana sempre chegava tarde à pensão e, em geral, embriagado. Numa dessas noites, os hóspedes da pensão tiveram sua atenção despertada para um cheiro de fumaça.  Quando deram pelo motivo da fumaceira, constataram que um cigarro esquecido por Quintana em sua cama incendiara o colchão e, por pouco, não morrera sufocado.
            O convívio com Quintana nessa pensão, na versão desse amigo, era muito ameno. Quintana era um homem de pouca fala, solitário. Durante o dia ninguém o via. Vinha à pensão para dormir. No resto do dia, ficava no jornal onde era redator. Na editora Globo marcou época como tradutor. Foi essa editora, por obra de Quintana, uma das primeiras (se não foi a primeira) a divulgar os grandes clássicos da literatura mundial, como, por exemplo, “Em busca do tempo perdido”, de Proust, que tem três dos sete volumes traduzidos por ele.
            No jornal onde trabalhou por muitos anos, Correio do Povo, que hoje não é nem a sombra do que foi, um dos melhores do país então, mantinha aos domingos uma página, o famoso Caderno H, onde publicava seus poemas.
            Perto do fim da vida (morreu com oitenta e oito anos), ele que sempre fora esquivo ao ingresso em academias, como fora igualmente seu velho amigo Érico Veríssimo, que até o fim resistiu à tentação de vestir o fardão, aceitou concorrer a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, disputando-a com ninguém menos que José Sarney, que, claro, não tinha dado a contribuição de Quintana à cultura brasileira. E, como poeta, produzira um único livro, com o título “Marimbondos de Fogo”, com uma bagagem pequena e modesta. Mas foi o ungido dos acadêmicos para surpresa geral. Prevaleceu a diferença de projeção política entre um e outro. Sarney, pouco antes, fora Presidente da República, graças à fatídica morte de Tancredo Neves.
            Foi convidado a participar de nova eleição, mas dessa vez, escarmentado com a decepção do primeiro revés, Quintana considerou que a academia não era propriamente um lugar que lhe fosse condizente com sua vida simples, apanágio de toda a sua vida.
            Claro, Quintana não perdeu nada em não ter ingressado na Academia, esta, sim, ficou mais pobre por não tê-lo entre seus pares.
            Travou amizade com os poetas mais notáveis de seu tempo, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, que lhe dedicou um poema e, ainda, Paulo Mendes Campos, que, quando morou por uns tempos em Porto Alegre, fez uma entrevista com ele, publicada na revista Manchete.
            No encontro que tivemos em Porto Alegre me dedicou um de seus livros, que até a pouco ainda conservava, mas que sumiu como tantos outros. Havia ali um poema muito bem estruturado que, certa vez, ouvi declamado pelo ator Lima Duarte num programa da  Globo.
            Quintana era um homem de porte franzino, baixinho, meio calvo ou com uma calvície acentuada pela idade. Parecia um passarinho. Movia-se com facilidade de um lado para outro em seu apartamento.
            Nossa entrevista foi parca.
            Fiz-lhe poucas perguntas. Respondia sempre com muita simpatia, sem dar-se a menor importância.
            Não lhe falei da minha condição de jornalista nem lhe comuniquei que podia algum dia transformar os dados daquele encontro numa resenha de jornal, como o faço agora. Tudo que lhe confessei foi que levava comigo um livro de crônicas para encontrar editor em Porto Alegre, já que, por aqui, à época, isso era difícil.
            Não falou de si, de sua obra nem de nada que de longe transpirasse literatura ou poesia.
            Tudo se resumiu a coisas do momento ou assuntos do dia-a-dia.
            Nem sei como abriu as portas de seu apartamento para receber-me. Não me conhecia, nada sabia de mim. Apresentei-me como um escritor que queria conversar um pouco com ele. Esse foi meu abra-te sésamo.
            Também não sentamos um em frente do outro para conversar. O diálogo pouco e seco se fazia enquanto rodopiava pelo espaço modesto do apartamento, com a secretária de permeio.
            Não houve também despedida.
            Nem me formulou convite para voltar. Nem houve qualquer outro tipo de etiqueta. Tudo se passou de forma muito simples, como ocorre em geral entre duas pessoas que pouco ou nada se conhecem.
            A única nota calorosa foi a dedicatória que me fez no livro de poemas com que me presenteou.
            Do encontro com Quintana fui procurar Moacyr Scliar, numa repartição do governo, onde exercia o cargo de médico sanitarista. Mostrei-lhe os originais do livro. Fez boa referência da crônica/título, “A mosca azul”.
            Não sou grande conhecedor da poesia de Quintana. Mas tudo que conheço dele (ou desse pouco) leva-me a crer que tem uma boa bagagem de poemas, que justifica seu prestígio de poeta e a admiração dos poetas já referidos (Bandeira, Drummond e Paulo Mendes Campos).
            Há pouco, voltei às páginas de “Baú de Espantos”, uma antologia de seus poemas editada pela “Record/Altaya”.
            Segue-se um dos poemas mais fortes dele:
            “O sono é uma viagem noturna:
            o corpo – horizontal – no escuro
            e no silêncio do trem, avança,
            imperceptivelmente avança...Apenas
            o relógio picota a passagem do tempo.
            Sonha a alma deitada no seu ataúde:
            lá longe
            lá fora
            no fundo do túnel,
            há uma estação de chegada
            (anunciam-na os galos agora)
            há uma estação de chegada com sua tabuleta ainda
            toda orvalhada...
            Há uma estação chamada...
            AURORA!”

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