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Thursday, June 6, 2013

A COMERCIÁRIA - Hamilton Alves




Sempre que ia a uma casa comercial onde comprava uma ou outra coisa, Gonçalves se deparava com uma jovem muito bonita, de olhos muito sensuais, que, por trás do balcão, até com certa insistência, o olhava. E se perguntava, recolhendo-se a si mesmo, por que o olhava tanto. Teria algum interesse nele? Notava também que, em outras ocasiões, não se mostrava tão atenta em sua pessoa. O que o levava a outro tipo de reflexão:
-          Talvez me ache ridículo quando a olho tanto.
Formou-se, em seu espírito, esse dilema.
Fora do ofício o que faria a moça? Pouco tempo depois, soube chamar-se Joyce. Então, sempre que lhe dirigia a palavra, para perguntar o preço disso ou daquilo, lhe tratava pelo nome. A moça revelou-se surpreendida de que lhe soubesse o nome. Até sorriu-lhe na primeira vez que isso ocorreu.
Gonçalves não se interessou de saber se Joyce era solteira, casada, separada ou qual, afinal, era seu estado civil. Ou se estava comprometida. De sua parte, não podia também alimentar muitos sonhos; era casado. Se assim era, qual seu interesse em flertar com a moça? Bem, há muitas coisas que não têm explicação. Talvez, no fundo, Gonçalves não quisesse ter qualquer tipo de relacionamento com a jovem. Tinha um rosto bonito, em que principalmente ressaltavam os olhos expressivos, nos quais parecia lhe passar mensagens em código de seu interesse por ele. Mas o olhar é sempre uma coisa enganosa. Podia significar tantas coisas e não significar nada.
Gonçalves urdia, em silêncio, seus planos de abordagem. Primeiro perguntar-lhe-ia se estava disponível. Era o primeiro passo. Mas refletia:
-          Por que vou me meter com essa jovem? Se ela souber que sou casado certamente não alimentará mais a idéia de relacionamento comigo; valerá a pena uma aproximação?
A alma humana, todos o sabemos, é confusa. Mil razões a prendem, outras tantas a libertam. No meio dessa tormenta vacilam os desejos humanos.
Pois um dia Gonçalves arriscou-se a formular a pergunta fatal à moça:
-          Você é comprometida?
Fez um ar de ter sido tomada de surpresa com a pergunta, o que no primeiro momento deixou Gonçalves em pânico, a medo de que tivesse incorrido numa impertinência. Afinal, havia ainda o pormenor de que a diferença de idade entre ambos era notória. A jovem devia estar nos seus sonhadores vinte e cinco anos e ele já tinha passado dos cinqüenta.
Mas lhe respondeu de uma forma que lhe tirou o embaraço:
-          Por enquanto, ainda não estou comprometida com ninguém.
Disse isso e sorriu.
Tal atitude acendeu as esperanças de Gonçalves.
Havia algumas pessoas próximas, que o inibiam de avançar mais.
Por isso, resolveu não queimar o recurso de propor-lhe um encontro. De outra vez que voltou ali, Joyce voltou a olhá-lo e agora com mais determinação. Parecia não haver dúvida no espírito de Gonçalves: a jovem parecia disposta a envolver-se com ele. Mas perguntava-se o que lhe diria a respeito de si mesmo. Ou que reação teria quando lhe dissesse que era casado? Certamente, tudo ruiria por terra. Esconderia dela tal situação? Convinha dar esse passo? E se a coisa pegasse fogo? Não estaria arranjando problemas futuros? Sabia as conseqüências a que poderiam levar um jogo desse tipo.
O homem é levado a tomar decisões que às vezes estão fora de seu entendimento. Uma força o anima a resoluções de que ele próprio parece não tomar consciência. Ou não prever conseqüências futuras.
-          A vida é um jogo tentador. Ou se joga ou se escapa do jogo. – dizia-se a si próprio.
Como se fosse tomado de um instante de completa irreflexão, Gonçalves dirigiu-se à moça com estas palavras:
-          Posso esperá-la à saída?
A moça, em seu traje profissional, de avental e gorro brancos, respondeu-lhe com uma voz trêmula:
-          Hoje, não posso; tenho um compromisso.
Gonçalves ficou perdido em suas conjecturas. Não lhe tinha dito que era descomprometida? Ou a que tipo de compromisso se referia?
Não se conteve e replicou:
-          Quando pode ser então?
Joyce, pela expressão de seu olhar, parecia revelar medo diante da perspectiva de vir a se envolver com esse homem que ela pouco conhecia e que se acostumara a ver nas raras ocasiões em que aparecia no local em que trabalhava. Qual seria seu interesse por ela? Além disso, a diferença de idade entre ambos parecia ser um fator a desaconselhar um envolvimento com ele.
Encontrava-se nesse dilema, mas também era açoitada, no mais fundo de si, pelo vendaval das incertezas.
Foi com essa indecisão que se limitou a responder:
-          Não sei... não sei...
Gonçalves ficou meio aturdido. Tudo lhe pareceu desmoronar. Já nada se fixava nos lugares comuns. A primeira reação foi de sair porta afora. Animava-o ainda o fato de Joyce ter-se mostrado insegura.
-          Ela quer e não quer. O que será que a tolhe?
Com esse pensamento saiu à rua, enfiou-se em seu carro e circulou algum tempo sem dar-se conta por onde seguia ou até mesmo ter a consciência plena de onde se encontrava. Todo ele voltava-se para o drama recém-vivido. Era repelido, mas ao mesmo tempo sentia-se atraído. Ela não o havia recusado de plano. “Não sei... não sei...” - tudo se resumia a um ato dúbio, que tudo podia conter.
Gonçalves estava disposto a não aparecer mais diante da jovem. Não ir mais ao local em que trabalhava. Sair da área de influência daquele olhar que o consumia em chamas de atração. Era uma espécie de andar em círculo em volta do abismo.
Algum tempo se passou sem que voltasse a se encontrar com Joyce. Mas o destino tem suas artimanhas e parece se sobrepor à vontade humana ou à disposição das almas.
Num fim de tarde, quando nem se dava por isso, Gonçalves transitou por perto da confeitaria em que Joyce trabalhava. Notou que ia saindo àquela hora do trabalho. Resolveu segui-la. Encaminhou-se para o ponto de ônibus. Estacionou próximo e foi ao seu encontro. Abordou-a:
-          Que surpresa, não esperava encontrá-la mais.
No primeiro instante, ao deparar-se com ele, sua reação foi de surpresa e de alegria. Seus belos olhos se acenderam luminosos.
-          O senhor não apareceu mais.
-          Estive uns tempos afastado da cidade.
-          Ah, bem...
-          Para onde vai?
-          Vou pra casa.
-          Permita-me que lhe ofereça uma carona.
-          Moro longe.
-          Não faz mal...
Ela morava num bairro da periferia.
-          O senhor é casado? – foi a primeira pergunta que a moça lhe fez.
-          Sim, sou casado.
A resposta, que certamente esperava não a surpreendeu. Os dois ficaram um tempo mudos.
-          Sou casado... mas... afinal, um homem casado não perde o direito de se deixar enfeitiçar quando se depara com uma mulher tão bonita.
-          As coisas se complicam. Não é assim tão simples. Acho que não tenho o direito... de me envolver com o senhor.
-          Não há leis no mundo que não possam ser quebradas. – disse ele sem saber exatamente se o que acabava de dizer não se dispersaria no meio das trevas de todas as improbabilidades.
-          Depende de como se encaram essas leis. – disse ela num tom altivo.
-          O mundo está cheio de exemplos de que essas leis não são... como direi?...não são assim tão peremptórias.
Usou essa expressão e imaginou que a moça, simples balconista, não se desse conta de seu sentido.
-          Lei é lei e, se é lei, tem-se que cumprir.
Pareceu-lhe que, diante desse argumento, que, dito na sua simplicidade, fechava-lhe definitivamente a porta, lhe sobravam alguns trunfos.
-          Mas há leis que se cumprem e leis que não se cumprem. A vida de todos os dias está cheia de exemplos disso.
Pareceu-lhe ter tomado a rédea das razões. Mas a moça refutou-as com sua cândida simplicidade:
-          Paga-se às vezes um alto preço por não se cumprir a lei.
Ele sentiu-se acuado.
Gonçalves não supunha que teria diante de si, na arte de argumentar, uma defensora tão intransigente da inevitabilidade das leis. Pareceu-lhe que as pessoas simples carregavam, dentro de si, instintivamente, a clara percepção da verdade das coisas. Estava quase por render-se à evidência dos fatos ou do impedimento que o tolhia de prosseguir em sua pretensão de envolver a moça, quando lhe tirou o último artefato racional a que ainda pudesse recorrer, comunicando-lhe que estava próxima de onde deveria ficar.
-          Moro naquela casinha.

Apontou mo meio de um grupo de prédios simples uma casa pequena, com duas janelas, com um pequeno jardim à frente, em que despontavam algumas roseiras, que, àquela hora, ao cair da tarde, ainda se podiam distinguir,
Despediram-se.
Ela lhe agradeceu a carona.
De longe, acenou-lhe a mão amistosamente. Segundo Gonçalves pôde notar, não havia no gesto o menor índice de esperança.



Agosto/2000

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