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Wednesday, June 19, 2013

O VELÓRIO - Hamilton Alves


Os dois amigos estavam velando um terceiro quando um dizia para o outro:
- Sempre pensei que ele daria um bom defunto.
- Por que?
- Você não percebia?
- Não.
- Pois eu o via atrás de sua mesa no escritório, aqueles óculos em cima do nariz, aquela atenção às cifras...
- Mas o que é que isso explica que ele daria um bom defunto?
- ...aquela sua mulher magra, aquela sua falta de vocação prá qualquer outra coisa na vida, só dinheiro, só papéis, só escritório, o dia inteiro...
- Então só por isso daria um bom defunto?
- É que ele já estava morto há muito tempo e não sabia.
O outro fez silêncio. Achava absurda a opinião do amigo.
- Ele viveu a vida toda às voltas com o nada. E o nada o matou.
- Mas ele sempre me pareceu voltado ao trabalho. Bem verdade que...
- Ele vivia empolgado com isso vinte e quatro horas por dia.
- Ele tinha uma amante, essa é que você não sabia; viajava com ela para toda parte; a última viagem que fez com ela foi ao Caribe.
- Não sabia disso. E a magra nunca desconfiou de nada?
- Tinha que dar uma trégua da magra, ninguém é de ferro.
- Está bem, digamos que esse era o lado humano dele. Mas...
- Mas o que?
- Ele ia pro escritório ao romper da aurora e lá se encafuava até de noite. Isso é vida? E nunca fez, que eu saiba, outra coisa. Valeu a pena? Valeu?
- Mas ele curtia, é o que você não sabe.
- Sempre o vi como um morto. O jeito balofo dele, aquele riso, a forma de andar, nadando com os braços, as calças muito largas, um paletó imenso, sua cara desengonçada, me parecia um morto.
- Você tem cada uma!
- Sua vocação era de morrer. Não de viver. Há indivíduos que vivem para a vida, outros vivem para a morte. Era o caso dele.
- Não compreendo como é que você pensa assim.
- Quando você entrava no gabinete dele, por trás daquela mesa, nunca erguia os olhos pra te olhar, sempre voltado àqueles papéis durante anos e anos.
- Não entendo.
- Não tinha um "hobby", não lia, não tinha outra atividade qualquer, nem dirigir automóvel ele sabia, a mulher é que o fazia, a magra. Aliás, a magra era pau pra toda obra. Por que lidar com tantos papéis?
- Por que acumular tantos bens? Para que?
- Mas cada um tem sua índole.
- Eu sei, eu sei...mas ele era um morto. Não havia vida nele. Eu o olhava muitas vezes e sentia dó de vê-lo entregue àqueles papéis.
- E você (irritara-se o outro), o que é que você faz de melhor que ele?
- Eu, cara?!... Eu vivo!...
- Como você vive?
- Eu curto uma porrada de troços!
- Que troços?!
- Eu não me meto num escritório o dia todo, não lido com papéis, não tenho aquela cara dele que era a pura expressão da morte.
Ali ficaram durante algum tempo, até que se colocou a tampa no esquife. Um padre apareceu para benzer o morto e dizer umas palavras. Lá na rua, embarcando num carro, um ainda dizia para o outro:
- Ele era o defunto mais absoluto que conheci.

O outro escandiu um risinho.

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