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Sunday, June 16, 2013

O DIA EM QUE HEMINGWAY MORREU – Hamilton Alves

 

No dia em que ecoou a morte de Hemingway, que, segundo a versão dos jornais, disparou um tiro de carabina contra a cabeça (teria sido feito na boca), a polícia pôs-se em movimento. No primeiro momento, ainda segundo a informação da imprensa, não se acreditava na hipótese de suicídio. Há algum tempo, o escritor, por suas ligações com a esquerda, vinha sendo alvo de perseguição (ou ao menos de vigilância) da polícia política dos Estados Unidos.
Um batalhão de jornalistas e outro tanto de policiais se dirigiram ao local em que o fato se deu.
O corpo do escritor, grandemente desfigurado, foi encontrado perto de sua mesa de trabalho. Em sua máquina de escrever estava enfiada uma lauda de papel em que dois terços traziam um texto provavelmente de um conto, do qual, ainda segundo a informação que à época se propalou, tinha escrito mais três ou quatro laudas. Aquela folha enfiada à máquina devia ser a conclusão do conto. Dentro de um livro em cima da mesa estavam as três ou quatro outras folhas restantes. Até hoje, por não concluído, não se publicou o conto.
Em cima da primeira folha vinha o título “A Sentença”. Do que se ouviu também falar, o tema envolvia um personagem que contra si mesmo havia prolatado uma sentença de morte. Pelo que se deduziu, Hemingway estava escrevendo nesta última obra o seu fim. Antes mesmo do término, pusera fim à vida.
Para o local da ocorrência, dirigiu-se também o detetive Hans Andersen, de uma agência famosa, que já tivera outros casos mais complicados em sua carreira e que se propusera a descobrir os motivos do escritor para por fim à existência.
Ao ingressar na casa, o que foi bastante dificultado pela presença de jornalistas, amigos do escritor, policiais e curiosos, Andersen entrou em contato com a secretária de Hemingway, que, com ele, tinha trabalhado nos últimos cinco anos.
-       Conte-me essa história do princípio ao fim?
-       Quem é o senhor?
Hans Andersen, que se apresentava vestido no estilo de Sherlock Holmes, com uma capa, um chapéu à Bogart, fumando um cachimbo, apresentou-lhe as credenciais de detetive profissional.
-    Soube a notícia pelo rádio do carro. Fiquei muito chocada. Não esperava que Mr. Hemingway se matasse.
-       Como era seu estado de ânimo nos últimos dias?
-       Ele se revelava muito tenso.
-       Tinha alguma razão para isso?
-       Aparentemente não.
-       Então a que se pode atribuir o suicídio?
-       Andava bebendo demais.
-       Sim.
-       Havia dias em que o encontrava completamente bêbado.
-       Alguma mágoa ou decepção?
-       Como se pode saber?! Era uma pessoa muito fechada. Não revelava para ninguém seus problemas pessoais.
-       Era um grande homem e um grande escritor.
-       Tinha perdido o “pique” literário. Outro dia, disse-me que, como escritor, se considerava no fim. Procurei reanimá-lo. Tinha ganhado a maior láurea da literatura, sinal de seu valor e do reconhecimento do que muito poderia ainda produzir. Mas não se deu por convencido.
-       Estou liquidado. – disse-me.
-       Teria sido isso, então, a causa de matar-se?
-       Creio que isso pesou bastante na sua decisão.
-       Mas a polícia não acredita em suicídio.
-       Ninguém o mataria. Quem o faria?
-       Supõe-se que tudo isso não passe de armação.
-       As impressões digitais na carabina que utilizou para o disparo são suas.
-       Há provas conclusivas quanto a isso?
-       A polícia já as colheu.
-       Então não há mais dúvida. Por que a polícia quer saber mais?
-       Bom, as impressões digitais não são tudo. São apenas parte da prova.
-       Foi encontrado um conto dele, o último, sob o título “A Sentença”, no qual Hemingway teria se tomado a si mesmo por personagem, descrevendo seu fim. Sabe alguma coisa quanto a isso?
-       Ontem, tinha escrito três páginas. Não me interessei de saber qual era o tema. Sei só que estava entusiasmado de encetar um trabalho literário.
-       Fazia muito que não escrevia?
-       Como lhe disse, revelou-me estar no fim de sua atividade. Depois do Nobel, isso parece ter sido um fator para lhe tolher a inspiração.
-       Havia algum caso amoroso no meio de toda essa refrega emocional?
-       Não posso dizer nada a esse respeito. Hemingway era discreto quanto a seus relacionamentos com mulheres. Na aparência, vivia bem com sua mulher.
-       Como reagiu à morte do marido?
-       Claro, ficou bastante chocada.
-       Podia entender-me com ela?
-       Neste momento é difícil. Não creio que se disponha a qualquer tipo de entrevista.
-       Vivendo mais intimamente com ele, poderia saber de sua disposição de espírito. Talvez tenha a chave do mistério. Se foi assassinato (o FBI estava no seu encalço) ela poderia me dizer algo.
-       Quanto a isso parece não haver mais dúvida. O FBI fiscalizava seus passos. É o que se diz. Mas um homem com a fama de Hemingway teria sua inviolabilidade garantida de qualquer jeito.
-       Tudo isso não está ainda muito claro.
-       Não creio na possibilidade de ser crime.
-       Chegou a ler as três páginas de seu último conto?
-       O local em que trabalhava era indevassável até para sua mulher.
-       Ele escrevia em pé?
-       Tinha o hábito de escrever desse jeito.
-       Sua máquina de escrever era aquela ali?
-       Sim, uma máquina simples, portátil, de muito uso.
-       Teria ele escrito sua obra nessa máquina?
-       Dizia-me que muito de seus contos e a novela “O Velho e o Mar” foram escritas nela.
-       Então a máquina passa a ter valor de uma grande relíquia.
-       Sim.
A secretária de Hemingway era uma jovem americana de trinta anos, bonita, estatura média, loura, de um ar muito simpático, mas que revelava também um grande abatimento pela tragédia ocorrida.
-       Bem, - disse o detetive – acho que aqui é o fim da linha. Você descarta a possibilidade de crime...
-       ... Quem poria uma arma na mão de Hemingway? Quem a faria disparar contra seu rosto? Não há sinal nenhum de reação, de luta corporal; a peça em que foi encontrado o corpo está em ordem, tudo no seu devido lugar, o original do conto dentro do livro em que ele próprio o colocou, a conclusão do conto no papel encontrado no rolo da máquina. Nada faz suspeitar que não se trata de suicídio.
-       A dúvida que assalta a todos é por que, coberto de glória, rico, com todos os problemas praticamente resolvidos, este homem resolveu matar-se?
-       O suicídio não é um teorema, em que tudo se situa numa ordem lógica.
-       Sim, você tem razão: não há lógica na morte.
-       Qualquer pessoa que tivesse ganhado o Nobel certamente teria suficiente motivo para cultivar a própria fama. Fazer disso um grande estímulo de viver.
-       Não seria o caso de um homem como Hemingway. Isso, talvez, não lhe bastava. A glória não é tudo para um grande homem.
-       Também penso assim.
-       Há coisas que ignoramos na alma de um artista da envergadura dele.
-       É bem verdade.
-       Gostaria de conversar com a mulher dele, mas como você mesma disse ela não tem condições de dizer qualquer coisa sobre tudo isso.
-       Creio que não é o momento oportuno.
-       É bem certo.
-       Quem é que detém o espólio dele neste momento?
-       Não houve tempo para decidir isso. Naturalmente, sua mulher dará a última palavra.
-       Poderia ler o conto?
-       Posso entregar-lhe para que o leia aqui, não para que o leve consigo.
-       Nem ao menos uma cópia? Poderíamos ambos obter uma cópia. Devolver-lhe-ia o original.
-       Não tenho ordem para fazer isso. Se se contentar em lê-lo aqui, tudo bem.
A secretária de Hemingway dirigiu-se ao escritório em que o escritor trabalhava. Voltou com as quatro folhas à mão, uma das quais inconclusa (a que foi encontrada ainda na máquina).
-       O texto está cheio de emendas. Deduz-se que Hemingway não tinha muita facilidade em redigir.
-       Certa vez, revelou-me que o trabalho literário sempre fora para ele um tormento. Compor uma página para ele era um exercício mental que lhe causava grande extenuamento.
-       Sempre me pareceu o contrário. Quem lê seus contos tem a impressão de que tudo aquilo sai fácil da pena.
-       Custava-lhe um grande esforço.
-       Qual era a fase do dia em que escrevia?
-       Em geral, de manhã. Acordava-se cedo. Sete horas já estava de pé. Tomava um lanche. Em torno das dez, tomava seu daiquiri, aperitivo predileto, que ele mesmo inventara, e depois se entregava à tarefa de escrever.
-       Curioso que o conto tem o título de “A Sentença”. O contexto é feito em cima do fim de um personagem, que liquidaria com a vida, de certo, ao fim do conto. Seria uma premonição?
-       Tudo leva a crer que sim.
-       É um conto admirável, curto como eram, em geral, todos os seus contos, pouco mais de três páginas. Teve sempre um grande poder de síntese. Frases cruas, de uma simplicidade que era também a sua marca. Nada de muitos floreios, ia sempre direto ao assunto.
-       O mundo perdeu um dos seus maiores escritores.
-       Sem dúvida.
-       Bem, não quero retê-la por mais tempo. Vou deixar meu cartão. Se tiver mais algum dado, peço-lhe que me ligue.
-       Pois não. Farei isso. – disse, sorridente, a secretária do escritor.
A casa de Hemingway ainda regurgitava de gente de toda espécie. Era muito estimado por pessoas do povo. Os jornalistas eram numerosos ainda. Todos se faziam perguntas. A secretária conduzia o espetáculo, no sentido de que a todos procurava responder às perguntas. Teria muito trabalho pela frente.
Lá fora, o dia chegava ao fim. Corria um vento forte. Um carro da polícia estacionava nas proximidades. Outra viatura de uma estação de televisão também acabava de chegar.
Para Hans Andersen o mistério da morte de Hemingway, por mais que os fatos falassem por si, ainda pairava no ar.
-       Sim, ele se matou, mas resta saber qual o móvel desse ato. O que o teria levado a fazer isso. Há esse último mistério que nem o mais arguto policial chegará a desvendar um dia. A alma humana é impermeável a qualquer tipo de cogitação em torno de suas razões insondáveis.
Hans dirigiu-se ao seu carro.
Acionou o motor. Percorria vagarosamente a estrada que o levava de volta à empresa em que trabalhava. Mas no fundo de si mesmo abria-se um grande abismo.
-       Nunca se conhecerá suficientemente o homem. – dizia-se consigo próprio, enquanto as luzes da cidade, ao longe, acendiam-se pouco a pouco.


Agosto/00



            

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