No dia em que ecoou a morte de Hemingway,
que, segundo a versão dos jornais, disparou um tiro de carabina contra a cabeça
(teria sido feito na boca), a polícia pôs-se em movimento. No primeiro momento,
ainda segundo a informação da imprensa, não se acreditava na hipótese de
suicídio. Há algum tempo, o escritor, por suas ligações com a esquerda, vinha
sendo alvo de perseguição (ou ao menos de vigilância) da polícia política dos
Estados Unidos.
Um batalhão de jornalistas
e outro tanto de policiais se dirigiram ao local em que o fato se deu.
O corpo do escritor,
grandemente desfigurado, foi encontrado perto de sua mesa de trabalho. Em sua
máquina de escrever estava enfiada uma lauda de papel em que dois terços traziam
um texto provavelmente de um conto, do qual, ainda segundo a informação que à
época se propalou, tinha escrito mais três ou quatro laudas. Aquela folha
enfiada à máquina devia ser a conclusão do conto. Dentro de um livro em cima da
mesa estavam as três ou quatro outras folhas restantes. Até hoje, por não
concluído, não se publicou o conto.
Em cima da primeira
folha vinha o título “A Sentença”. Do que se ouviu também falar, o tema
envolvia um personagem que contra si mesmo havia prolatado uma sentença de
morte. Pelo que se deduziu, Hemingway estava escrevendo nesta última obra o seu
fim. Antes mesmo do término, pusera fim à vida.
Para o local da
ocorrência, dirigiu-se também o detetive Hans Andersen, de uma agência famosa,
que já tivera outros casos mais complicados em sua carreira e que se propusera
a descobrir os motivos do escritor para por fim à existência.
Ao ingressar na casa,
o que foi bastante dificultado pela presença de jornalistas, amigos do
escritor, policiais e curiosos, Andersen entrou em contato com a secretária de
Hemingway, que, com ele, tinha trabalhado nos últimos cinco anos.
-
Conte-me
essa história do princípio ao fim?
-
Quem
é o senhor?
Hans Andersen, que se
apresentava vestido no estilo de Sherlock Holmes, com uma capa, um chapéu à
Bogart, fumando um cachimbo, apresentou-lhe as credenciais de detetive
profissional.
- Soube a notícia pelo rádio do carro. Fiquei
muito chocada. Não esperava que Mr. Hemingway se matasse.
-
Como
era seu estado de ânimo nos últimos dias?
-
Ele
se revelava muito tenso.
-
Tinha
alguma razão para isso?
-
Aparentemente
não.
-
Então
a que se pode atribuir o suicídio?
-
Andava
bebendo demais.
-
Sim.
-
Havia
dias em que o encontrava completamente bêbado.
-
Alguma
mágoa ou decepção?
-
Como
se pode saber?! Era uma pessoa muito fechada. Não revelava para ninguém seus
problemas pessoais.
-
Era
um grande homem e um grande escritor.
-
Tinha
perdido o “pique” literário. Outro dia, disse-me que, como escritor, se
considerava no fim. Procurei reanimá-lo. Tinha ganhado a maior láurea da
literatura, sinal de seu valor e do reconhecimento do que muito poderia ainda
produzir. Mas não se deu por convencido.
-
Estou
liquidado. – disse-me.
-
Teria
sido isso, então, a causa de matar-se?
-
Creio
que isso pesou bastante na sua decisão.
-
Mas
a polícia não acredita em suicídio.
-
Ninguém
o mataria. Quem o faria?
-
Supõe-se
que tudo isso não passe de armação.
-
As
impressões digitais na carabina que utilizou para o disparo são suas.
-
Há
provas conclusivas quanto a isso?
-
A
polícia já as colheu.
-
Então
não há mais dúvida. Por que a polícia quer saber mais?
-
Bom,
as impressões digitais não são tudo. São apenas parte da prova.
-
Foi
encontrado um conto dele, o último, sob o título “A Sentença”, no qual
Hemingway teria se tomado a si mesmo por personagem, descrevendo seu fim. Sabe
alguma coisa quanto a isso?
-
Ontem,
tinha escrito três páginas. Não me interessei de saber qual era o tema. Sei só
que estava entusiasmado de encetar um trabalho literário.
-
Fazia
muito que não escrevia?
-
Como
lhe disse, revelou-me estar no fim de sua atividade. Depois do Nobel, isso
parece ter sido um fator para lhe tolher a inspiração.
-
Havia
algum caso amoroso no meio de toda essa refrega emocional?
-
Não
posso dizer nada a esse respeito. Hemingway era discreto quanto a seus
relacionamentos com mulheres. Na aparência, vivia bem com sua mulher.
-
Como
reagiu à morte do marido?
-
Claro,
ficou bastante chocada.
-
Podia
entender-me com ela?
-
Neste
momento é difícil. Não creio que se disponha a qualquer tipo de entrevista.
-
Vivendo
mais intimamente com ele, poderia saber de sua disposição de espírito. Talvez
tenha a chave do mistério. Se foi assassinato (o FBI estava no seu encalço) ela
poderia me dizer algo.
-
Quanto
a isso parece não haver mais dúvida. O FBI fiscalizava seus passos. É o que se
diz. Mas um homem com a fama de Hemingway teria sua inviolabilidade garantida
de qualquer jeito.
-
Tudo
isso não está ainda muito claro.
-
Não
creio na possibilidade de ser crime.
-
Chegou
a ler as três páginas de seu último conto?
-
O
local em que trabalhava era indevassável até para sua mulher.
-
Ele
escrevia em pé?
-
Tinha
o hábito de escrever desse jeito.
-
Sua
máquina de escrever era aquela ali?
-
Sim,
uma máquina simples, portátil, de muito uso.
-
Teria
ele escrito sua obra nessa máquina?
-
Dizia-me
que muito de seus contos e a novela “O Velho e o Mar” foram escritas nela.
-
Então
a máquina passa a ter valor de uma grande relíquia.
-
Sim.
A secretária de
Hemingway era uma jovem americana de trinta anos, bonita, estatura média,
loura, de um ar muito simpático, mas que revelava também um grande abatimento
pela tragédia ocorrida.
-
Bem,
- disse o detetive – acho que aqui é o fim da linha. Você descarta a
possibilidade de crime...
-
...
Quem poria uma arma na mão de Hemingway? Quem a faria disparar contra seu
rosto? Não há sinal nenhum de reação, de luta corporal; a peça em que foi
encontrado o corpo está em ordem, tudo no seu devido lugar, o original do conto
dentro do livro em que ele próprio o colocou, a conclusão do conto no papel
encontrado no rolo da máquina. Nada faz suspeitar que não se trata de suicídio.
-
A
dúvida que assalta a todos é por que, coberto de glória, rico, com todos os
problemas praticamente resolvidos, este homem resolveu matar-se?
-
O
suicídio não é um teorema, em que tudo se situa numa ordem lógica.
-
Sim,
você tem razão: não há lógica na morte.
-
Qualquer
pessoa que tivesse ganhado o Nobel certamente teria suficiente motivo para
cultivar a própria fama. Fazer disso um grande estímulo de viver.
-
Não
seria o caso de um homem como Hemingway. Isso, talvez, não lhe bastava. A
glória não é tudo para um grande homem.
-
Também
penso assim.
-
Há
coisas que ignoramos na alma de um artista da envergadura dele.
-
É
bem verdade.
-
Gostaria
de conversar com a mulher dele, mas como você mesma disse ela não tem condições
de dizer qualquer coisa sobre tudo isso.
-
Creio
que não é o momento oportuno.
-
É
bem certo.
-
Quem
é que detém o espólio dele neste momento?
-
Não
houve tempo para decidir isso. Naturalmente, sua mulher dará a última palavra.
-
Poderia
ler o conto?
-
Posso
entregar-lhe para que o leia aqui, não para que o leve consigo.
-
Nem
ao menos uma cópia? Poderíamos ambos obter uma cópia. Devolver-lhe-ia o
original.
-
Não
tenho ordem para fazer isso. Se se contentar em lê-lo aqui, tudo bem.
A secretária de
Hemingway dirigiu-se ao escritório em que o escritor trabalhava. Voltou com as
quatro folhas à mão, uma das quais inconclusa (a que foi encontrada ainda na
máquina).
-
O
texto está cheio de emendas. Deduz-se que Hemingway não tinha muita facilidade
em redigir.
-
Certa
vez, revelou-me que o trabalho literário sempre fora para ele um tormento.
Compor uma página para ele era um exercício mental que lhe causava grande
extenuamento.
-
Sempre
me pareceu o contrário. Quem lê seus contos tem a impressão de que tudo aquilo
sai fácil da pena.
-
Custava-lhe
um grande esforço.
-
Qual
era a fase do dia em que escrevia?
-
Em
geral, de manhã. Acordava-se cedo. Sete horas já estava de pé. Tomava um
lanche. Em torno das dez, tomava seu daiquiri, aperitivo predileto, que ele
mesmo inventara, e depois se entregava à tarefa de escrever.
-
Curioso
que o conto tem o título de “A Sentença”. O contexto é feito em cima do fim de
um personagem, que liquidaria com a vida, de certo, ao fim do conto. Seria uma
premonição?
-
Tudo
leva a crer que sim.
-
É
um conto admirável, curto como eram, em geral, todos os seus contos, pouco mais
de três páginas. Teve sempre um grande poder de síntese. Frases cruas, de uma
simplicidade que era também a sua marca. Nada de muitos floreios, ia sempre
direto ao assunto.
-
O
mundo perdeu um dos seus maiores escritores.
-
Sem
dúvida.
-
Bem,
não quero retê-la por mais tempo. Vou deixar meu cartão. Se tiver mais algum
dado, peço-lhe que me ligue.
-
Pois
não. Farei isso. – disse, sorridente, a secretária do escritor.
A casa
de Hemingway ainda regurgitava de gente de toda espécie. Era muito estimado por
pessoas do povo. Os jornalistas eram numerosos ainda. Todos se faziam
perguntas. A secretária conduzia o espetáculo, no sentido de que a todos
procurava responder às perguntas. Teria muito trabalho pela frente.
Lá
fora, o dia chegava ao fim. Corria um vento forte. Um carro da polícia
estacionava nas proximidades. Outra viatura de uma estação de televisão também
acabava de chegar.
Para
Hans Andersen o mistério da morte de Hemingway, por mais que os fatos falassem
por si, ainda pairava no ar.
-
Sim,
ele se matou, mas resta saber qual o móvel desse ato. O que o teria levado a
fazer isso. Há esse último mistério que nem o mais arguto policial chegará a
desvendar um dia. A alma humana é impermeável a qualquer tipo de cogitação em
torno de suas razões insondáveis.
Hans dirigiu-se ao
seu carro.
Acionou o motor.
Percorria vagarosamente a estrada que o levava de volta à empresa em que
trabalhava. Mas no fundo de si mesmo abria-se um grande abismo.
-
Nunca
se conhecerá suficientemente o homem. – dizia-se consigo próprio, enquanto as luzes
da cidade, ao longe, acendiam-se pouco a pouco.
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