Sempre fui de opinião que, para um escritor, basta
produzir um único trabalho de qualidade para ocupar um lugar entre os grandes.
Assim, parece-me ocorrer não apenas nesse gênero tão polêmico, que é a crônica,
mas nos demais: conto, novela, romance, poesia, etc.
Não há prova mais robusta disso do
que “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo, que se tornou um clássico em todo o mundo.
Toda a obra do escritor mexicano se compõe dessa novela e de mais dezesseis
contos; nada mais.
Teve uma outra novela, com o título
de “Cordilheira”, mas que acabou destruindo por entender que não valia a pena
editá-la, pois não lhe parecia que tivesse, como a precedente, criado o
indispensável clima de alta voltagem. Isso confessou numa entrevista a Leo
Gilson Ribeiro, em seu livro “O continente submerso”.
Já citei em uma das resenhas que
venho publicando nesta folha que há o caso eminente de um poeta com um poema
único. Escreveu-o, pareceu-lhe que tinha realizado um grande feito ou talvez
nem isso, pouco se lixando, certamente, para o resultado que seu trabalho
produzisse e nunca mais, ao que sei, voltou à cena literária.
Se
foi um bom poema (acho-o ótimo) ou se não foi, é-lhe indiferente qualquer
julgamento.
Há os grandes escritores, de uma
obra alentada – e se podiam citar tantos que alcançaram a fama internacional.
Mas há outros, porém, de idêntico valor e que, em pequenas obras ou obras
isoladas, de não tanta repercussão, deram o seu recado e o deram de forma até
muito satisfatória.
É o caso de Flávio Cardozo, que com
seu “Bem-aventurados os que viajaram de trem”, rivaliza (e não vai qualquer exagero
nessa afirmação) com os melhores cronistas conhecidos.
Há alguns excelentes autores de
crônicas, que é com quem, ao que parece, tomaram corpo ou ares de gênero
literário. Em outras latitudes não parece ter o mesmo destaque, a não ser em
Portugal, onde até José Saramago o cultivou (ou cultiva).
A crônica, que historicamente
alcançou um nível altíssimo, que é indicada inclusive como modelar, pertence ao
chamado pai da crônica, Rubem Braga, com sua história intitulada “Eu e Bebu na
hora neutra da madrugada”, um encontro do Braga, num boteco do Rio, com o
diabo. Rubem narra que, depois de ter feito intimidade com Bebu, não lhe
pareceu assim tão, como direi, diabólico; era um cara com quem se podia manter
uma relação até bem amistosa.
Há
outras crônicas que reclamam o “pódio”.
E
citá-las seria um nunca acabar, por certo. Mas tem pequenas histórias narradas,
por exemplo, por Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando
Sabino, Silveira de Souza, Jair Hamms e outros que são simplesmente antológicas.
Omiti o nome de outro cobra, José Carlos Oliveira, que escreveu uma sobre uma
baratinha, que o esperava todas as noites em seu apartamento, no qual morou
muitos anos, que tem direito, sem dúvida, a um lugar de honra entre os
referidos.
Em que consiste “Bem-aventurados os
que viajaram de trem”?
É uma narrativa que descreve os
lances e todo o cenário de uma viagem, a partir da plataforma do trem, em Barro
Branco ou Guatá, onde Flávio nasceu (foi nessa região), e a Maria Fumaça
percorre todos os lugarejos do sul, Rio do Rastro, Lauro Muller, Oratório,
Orleans, Pindotiba, até chegar em Tubarão – e, a seguir, à tardinha, o retorno
à origem, quando a maquininha resfolegava para subir a serra, mas valentemente
a vencia.
Não
entram apenas nessa crônica os pormenores geográficos, de uma paisagem
exuberante, que, de manhã, coberta de neblina, não deixava ver praticamente
nada. Mas avultam, também, figuras humanas, como a do homem que vendia as
passagens, trazendo um boné de abas pregadas com colchete e que era fechado sob
o queixo. Em Orleans, entrava no ônibus, no dizer de Flávio, o imperador da
viagem, Antonio Francisco, magrelão, pernalta, uniformizado em cáqui, com um
quépi em que rutilavam as iniciais EFDTC (Estrada de Ferro Dona Tereza
Cristina).
A
descrição de Flávio abrange os mínimos aspectos, até o canto do trenzinho:
“café com pão, manteiga não, café com pão, manteiga não”.
Tal
cantoria me fez evocar um poema de Manuel Bandeira, “Trem de Ferro”:
“Café
com pão
café
com pão
café
com pão
Virge
Maria que foi isso maquinista?
Agora
sim
café
com pão
agora
sim
voa,
fumaça,
corre,
cerca
ai
seu foguista
bota
fogo
na
fornalha
que
eu preciso
muita
força
muita
força
muita
força,
etc.”
Flávio
presenteou-me com uma cópia dessa crônica, que tenho guardada num arquivo de
preciosidades. Volto sempre a relê-la para me contagiar do clima descrito, com
o qual se partilha, como se o leitor esperasse sonolento à plataforma o trem
para empreender a viagem de Barro Branco ou Guatá, percorrendo lugares
belíssimos, passando por Orleans, onde se podia saborear uma rosca de polvilho
(êta, rosca!) e ir em frente, percorrendo todo o vale do rio Tubarão, até o fim
da linha. Ou ainda não seria, em Tubarão, o fim, pois o trem teria que alcançar
a cidade de Imbituba – e, depois, próximo das quatro horas, efetuar a viagem de
volta, quando, já no fechar da noite, entrava em seu reduto inicial, com os
passageiros visivelmente cansados, mas deslumbrados com tanta beleza vivida.
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