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Sunday, June 9, 2013

“BEM-AVENTURADOS OS QUE VIAJARAM DE TREM” (com essa crônica, publicada em livro ou jornal, Flávio Cardozo conquistou lugar definitivo entre os ases do gênero).- (por Hamilton Alves)

 

            Sempre fui de opinião que, para um escritor, basta produzir um único trabalho de qualidade para ocupar um lugar entre os grandes. Assim, parece-me ocorrer não apenas nesse gênero tão polêmico, que é a crônica, mas nos demais: conto, novela, romance, poesia, etc.
            Não há prova mais robusta disso do que “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo, que se tornou um clássico em todo o mundo. Toda a obra do escritor mexicano se compõe dessa novela e de mais dezesseis contos; nada mais.
            Teve uma outra novela, com o título de “Cordilheira”, mas que acabou destruindo por entender que não valia a pena editá-la, pois não lhe parecia que tivesse, como a precedente, criado o indispensável clima de alta voltagem. Isso confessou numa entrevista a Leo Gilson Ribeiro, em seu livro “O continente submerso”.
            Já citei em uma das resenhas que venho publicando nesta folha que há o caso eminente de um poeta com um poema único. Escreveu-o, pareceu-lhe que tinha realizado um grande feito ou talvez nem isso, pouco se lixando, certamente, para o resultado que seu trabalho produzisse e nunca mais, ao que sei, voltou à cena literária.           
Se foi um bom poema (acho-o ótimo) ou se não foi, é-lhe indiferente qualquer julgamento.
            Há os grandes escritores, de uma obra alentada – e se podiam citar tantos que alcançaram a fama internacional. Mas há outros, porém, de idêntico valor e que, em pequenas obras ou obras isoladas, de não tanta repercussão, deram o seu recado e o deram de forma até muito satisfatória.
            É o caso de Flávio Cardozo, que com seu “Bem-aventurados os que viajaram de trem”, rivaliza (e não vai qualquer exagero nessa afirmação) com os melhores cronistas conhecidos.
            Há alguns excelentes autores de crônicas, que é com quem, ao que parece, tomaram corpo ou ares de gênero literário. Em outras latitudes não parece ter o mesmo destaque, a não ser em Portugal, onde até José Saramago o cultivou (ou cultiva).
            A crônica, que historicamente alcançou um nível altíssimo, que é indicada inclusive como modelar, pertence ao chamado pai da crônica, Rubem Braga, com sua história intitulada “Eu e Bebu na hora neutra da madrugada”, um encontro do Braga, num boteco do Rio, com o diabo. Rubem narra que, depois de ter feito intimidade com Bebu, não lhe pareceu assim tão, como direi, diabólico; era um cara com quem se podia manter uma relação até bem amistosa.
Há outras crônicas que reclamam o “pódio”.
E citá-las seria um nunca acabar, por certo. Mas tem pequenas histórias narradas, por exemplo, por Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Silveira de Souza, Jair Hamms e outros que são simplesmente antológicas. Omiti o nome de outro cobra, José Carlos Oliveira, que escreveu uma sobre uma baratinha, que o esperava todas as noites em seu apartamento, no qual morou muitos anos, que tem direito, sem dúvida, a um lugar de honra entre os referidos.
            Em que consiste “Bem-aventurados os que viajaram de trem”?
            É uma narrativa que descreve os lances e todo o cenário de uma viagem, a partir da plataforma do trem, em Barro Branco ou Guatá, onde Flávio nasceu (foi nessa região), e a Maria Fumaça percorre todos os lugarejos do sul, Rio do Rastro, Lauro Muller, Oratório, Orleans, Pindotiba, até chegar em Tubarão – e, a seguir, à tardinha, o retorno à origem, quando a maquininha resfolegava para subir a serra, mas valentemente a vencia.
Não entram apenas nessa crônica os pormenores geográficos, de uma paisagem exuberante, que, de manhã, coberta de neblina, não deixava ver praticamente nada. Mas avultam, também, figuras humanas, como a do homem que vendia as passagens, trazendo um boné de abas pregadas com colchete e que era fechado sob o queixo. Em Orleans, entrava no ônibus, no dizer de Flávio, o imperador da viagem, Antonio Francisco, magrelão, pernalta, uniformizado em cáqui, com um quépi em que rutilavam as iniciais EFDTC (Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina).
A descrição de Flávio abrange os mínimos aspectos, até o canto do trenzinho: “café com pão, manteiga não, café com pão, manteiga não”.
Tal cantoria me fez evocar um poema de Manuel Bandeira, “Trem de Ferro”:
“Café com pão
café com pão
café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
café com pão
agora sim
voa, fumaça,
corre, cerca
ai seu foguista
bota fogo
na fornalha
que eu preciso
muita força
muita força
muita força,
etc.”

Flávio presenteou-me com uma cópia dessa crônica, que tenho guardada num arquivo de preciosidades. Volto sempre a relê-la para me contagiar do clima descrito, com o qual se partilha, como se o leitor esperasse sonolento à plataforma o trem para empreender a viagem de Barro Branco ou Guatá, percorrendo lugares belíssimos, passando por Orleans, onde se podia saborear uma rosca de polvilho (êta, rosca!) e ir em frente, percorrendo todo o vale do rio Tubarão, até o fim da linha. Ou ainda não seria, em Tubarão, o fim, pois o trem teria que alcançar a cidade de Imbituba – e, depois, próximo das quatro horas, efetuar a viagem de volta, quando, já no fechar da noite, entrava em seu reduto inicial, com os passageiros visivelmente cansados, mas deslumbrados com tanta beleza vivida.






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