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Wednesday, July 10, 2013

O BILHETE FATAL - Hamilton Alves


Na noite em que o casal comemorava o décimo ano de vida conjugal, depois que todos os convidados saíram, deixando-os a sós com os dois filhos, Mariana disse ao esposo:
- Guilherme, precisamos repensar nossa proposta de nos separar. Por que manter uma relação que não tem mais sentido?
Ele olhou a mulher meio perplexo, porque a noite em que festejaram as bodas tudo tinha transcorrido normalmente, sem o mínimo incidente ou sem que lhe fosse dado qualquer motivo para que voltasse a tocar no assunto da separação. Até pelo contrário, quando tiveram a última desavença, haviam concordado de pôr uma pá de cal em cima do assunto e procurar viver em paz.
- Por que voltar a essa questão? Não tínhamos...
- ... não, sinto que entre nós está tudo acabado. É pura tolice pretender manter os laços.
- Mas por quê?
- Você sabe.
- Eu?... Eu não sei de nada.
- Não se faça de tolo.
Guilherme fazia pouco havia sido surpreendido com um bilhete de uma mulher no bolso do casaco. Era uma declaração de amor, assinada por uma tal de Ana, que Mariana tempos depois veio a descobrir que era colega de trabalho do marido.
- Quem é essa Ana?
- Guilherme tartamudeara, ficara num beco sem saída, como preso em suas próprias teias:
- Ana?!... Quê Ana?!
- Como é que se explica esse bilhete que encontrei no bolso de seu paletó?
- Você nunca teve esse hábito de remexer em meus bolsos, Mariana. Deu pra isso agora?
- Não desconverse. Quem é essa Ana?!
- Sei lá de quem você está falando.
Mostrou-lhe o bilhete, que era curto, escrito à mão, com uma letra fina e feia.
O bilhete continha umas poucas linhas, do seguinte teor: "Meu amor, ainda me recordo a noite que passamos juntos. Guardarei na memória todos os detalhes, como um dos momentos mais felizes da minha vida. Sua Ana".
Quando lhe foi dado o bilhete para ler, Guilherme caiu no sofá, evidentemente desarmado.
Mas ainda argumentou, não aceitando a hipótese de traição consumada:
- Você está louca! Quem é que botou esse bilhete em meu bolso para comprometer minha vida?
Mariana olhou-o  com uma expressão de ódio, de uma mulher que se sente traída.
- Ana, por acaso, não é aquela sirigaita que trabalha na sua empresa?
Guilherme fez um esforço para escapar ao cerco:
- Há, por acaso, uma só Ana neste mundo? Quem é que prova que esse bilhete é dela?
- Se não é dela é de quem?
A partir desse dia, mudou radicalmente o relacionamento do casal, a ponto de se esfriarem também os afetos em todos os níveis.
De quando em quando, o bilhete de Ana, a pretexto do menor incidente que envolvesse o casal, dava ensejo e altercações sérias. Até ao ponto da saturação, quando Mariana tomou a iniciativa de abandonar o lar e ir morar com a mãe até que pudesse arranjar uma moradia para si e os dois filhos. Fê-lo no dia seguinte à décima boda.
Guilherme, porém, não se conformou com isso. Não passava um dia que não fosse ao encontro dos filhos, quando procurava dialogar com Mariana, fazendo-lhe ver que, com sua atitude, estava prejudicando sua formação.
- Destruímos nosso lar. - dizia-lhe sempre. E nada mais terrível do que a desestruturação da família. Você sabe disso.
Mariana não dizia nada, o que lhe causava irritação.
- Hoje, você pode não avaliar o que a separação pode representar para nossos filhos, mas no futuro ninguém sabe.
- Fique descansado que nossos filhos terão uma mãe de juízo que velará por eles.
- E terão um pai também.
- Não, um pai eles não tiveram. Um pai que os traiu, traiu a família! Traiu...
- Vamos admitir que errei. Mas sou eu só que errei? Não há tantas pessoas que erram?
- Há erros imperdoáveis.
- Onde estão seus sentimentos cristãos, de que você sempre se arrogou de possuí-los?
- Há um limite para tudo. Há certas coisas que uma mulher não pode tolerar.
- Eu não mereço seu perdão?
- Além do mais, se você quer saber...
- Sim... Diga!
- Mariana refletiu, acariciou a cabeça de sua filha de seis anos, olhou-o fixamente e proferiu:
- Não o amo mais.
Guilherme empalideceu diante dessa inesperada declaração. Foi até a janela, olhou a rua àquela hora, início de tarde de um fim de semana sem movimento algum, a não ser uma ou outra pessoa que por ali circulava, um ou outro veículo. Uma tarde fria de junho, com céu nublado. Voltou-se para Mariana e disse:
- Espero que você repense o que acaba de dizer. Quero que você saiba que não posso me privar da convivência com meus filhos. Não admito a hipótese de permitir que nossa família soçobre, que se desuna, que...
- Pois da minha parte (disse Mariana, altiva) a decisão está tomada e é irreversível.
Guilherme vestiu o casaco, que deixara no encosto da cadeira. Beijou os dois filhos, dirigiu-se à porta de saída sem se despedir dela e bateu com toda a força o batente.
Dois anos já fazia que estavam de relações cortadas. Nesse tempo, Mariana fora vista em companhia de um outro homem, o que chegara ao conhecimento de Guilherme.
No mesmo dia que soube disso, telefonou-lhe:
- Quero que você saiba que não admito em hipótese alguma que meus filhos sejam criados por outro homem.
- Você não pode me dar ordens. Estamos separados e não tenho que lhe dar satisfação.
Foram estas suas duras palavras.
Guilherme ouviu-as e desligou o telefone sem retrucá-las.
Ele próprio numa praia encontrou a mulher de beijos e abraços com o namorado. Ficou como possesso.
Nessa noite, não conseguiu conciliar o sono. Uma espécie de tormenta havia desabado em sua cabeça. Uma idéia fixa penetrou-lhe sorrateiramente a mente. Teria que dar cabo de tal situação. Como fazê-lo era a fórmula que se propunha com angústia.
O amigo mais próximo fora consultado.
- O melhor é deixar o barco correr. Se não há mais jeito, aceite o fato como consumado.
- Custa-me muito. Não é por ela, você compreende.
- Você ainda a ama?
- Não digo que não. Uma relação de dez anos não acaba de uma hora para outra.
- Você tem que ponderar os fatos friamente. E aceitá-los.
- Dizer é simples.
- O tempo cura tudo.
- É um caso sem cura.
Nem o melhor amigo lhe trouxe conforto. Um vespeiro aturdia-lhe tenazmente dia e noite. Mariana, mesmo passados dois anos de separação, em que não fora ainda concretizada judicialmente, não lhe saía da cabeça. Noite e dia só pensava nela. Não aceitava de forma alguma o rompimento. Tivera, na verdade, um caso com Ana. Uma aventura desastrosa. O maldito bilhete esquecera no bolso, quando devia tê-lo rasgado.
Passara desde então a morar num pequeno hotel, de onde pouco saía, envolvido com seu trabalho, para o qual não encontrava mais ânimo. Mesmo os livros de ficção, que foram tempos atrás uma de suas paixões, largara-os de mão. Sua vida estava em farrapos.
Deduzira, por fim, tantas foram as tentativas feitas por ele de reconciliar-se com a mulher, rebaixando-se e humilhando-se, que o caso estava consumado.
Tornara-se um espectro de gente, barba sempre por fazer, passava horas num bar próximo sempre sozinho, mas mantinha-se sóbrio. Passara a viver na mais desoladora solidão, que era aliviada pela presença nos fins de semana dos filhos.
- Pai, por que não volta pra casa? - perguntava o filho nas entrevistas.
- O pai tem esperança de que um dia sua mãe volte atrás e possamos nos reunir de novo.
No décimo segundo ano de aniversário do casal, Guilherme ligou para Mariana:
- Preciso falar com você.
- Não temos mais nada que nos dizer. - disse ela resolutamente.
- Não posso conceber que você tenha um coração tão duro. Pense em nossos filhos, se é que você não pensa mais em mim.
Desta vez foi ela que desligou o telefone, tendo ficado com o fone ainda no ouvido com o ruído característico.
Repôs lentamente o telefone no gancho. Dirigiu o carro, em seguida, ao local onde ela morava. Pressionou a campainha. Ela mesma, vestida num robe, veio atender a porta.
Abriu-a, no que, sem dizer uma palavra, Guilherme desfechou-lhe um tiro à queima-roupa, matando-a. Depois, dirigiu a arma contra a própria cabeça, disparando-a.
Os dois filhos do casal estavam nessa ocasião na casa dos avós maternos e só souberam do fato um mês.


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