Na
noite em que o casal comemorava o décimo ano de vida conjugal, depois que todos
os convidados saíram, deixando-os a sós com os dois filhos, Mariana disse ao
esposo:
-
Guilherme, precisamos repensar nossa proposta de nos separar. Por que manter
uma relação que não tem mais sentido?
Ele
olhou a mulher meio perplexo, porque a noite em que festejaram as bodas tudo
tinha transcorrido normalmente, sem o mínimo incidente ou sem que lhe fosse
dado qualquer motivo para que voltasse a tocar no assunto da separação. Até
pelo contrário, quando tiveram a última desavença, haviam concordado de pôr uma
pá de cal em cima do assunto e procurar viver em paz.
- Por que voltar a essa questão? Não
tínhamos...
- ... não, sinto que entre nós está tudo
acabado. É pura tolice pretender manter os laços.
- Mas por quê?
- Você sabe.
- Eu?... Eu não sei de nada.
- Não se faça de tolo.
Guilherme
fazia pouco havia sido surpreendido com um bilhete de uma mulher no bolso do
casaco. Era uma declaração de amor, assinada por uma tal de Ana, que Mariana
tempos depois veio a descobrir que era colega de trabalho do marido.
- Quem é essa Ana?
-
Guilherme tartamudeara, ficara num beco sem saída, como preso em suas próprias
teias:
- Ana?!... Quê Ana?!
-
Como é que se explica esse bilhete que encontrei no bolso de seu paletó?
-
Você nunca teve esse hábito de remexer em meus bolsos, Mariana. Deu pra isso
agora?
- Não desconverse. Quem é essa Ana?!
- Sei lá de quem você está falando.
Mostrou-lhe
o bilhete, que era curto, escrito à mão, com uma letra fina e feia.
O
bilhete continha umas poucas linhas, do seguinte teor: "Meu amor, ainda me
recordo a noite que passamos juntos. Guardarei na memória todos os detalhes,
como um dos momentos mais felizes da minha vida. Sua Ana".
Quando
lhe foi dado o bilhete para ler, Guilherme caiu no sofá, evidentemente
desarmado.
Mas
ainda argumentou, não aceitando a hipótese de traição consumada:
-
Você está louca! Quem é que botou esse bilhete em meu bolso para comprometer
minha vida?
Mariana
olhou-o com uma expressão de ódio, de
uma mulher que se sente traída.
-
Ana, por acaso, não é aquela sirigaita que trabalha na sua empresa?
Guilherme
fez um esforço para escapar ao cerco:
-
Há, por acaso, uma só Ana neste mundo? Quem é que prova que esse bilhete é
dela?
- Se não é dela é de quem?
A
partir desse dia, mudou radicalmente o relacionamento do casal, a ponto de se
esfriarem também os afetos em todos os níveis.
De
quando em quando, o bilhete de Ana, a pretexto do menor incidente que envolvesse
o casal, dava ensejo e altercações sérias. Até ao ponto da saturação, quando
Mariana tomou a iniciativa de abandonar o lar e ir morar com a mãe até que
pudesse arranjar uma moradia para si e os dois filhos. Fê-lo no dia seguinte à
décima boda.
Guilherme,
porém, não se conformou com isso. Não passava um dia que não fosse ao encontro
dos filhos, quando procurava dialogar com Mariana, fazendo-lhe ver que, com sua
atitude, estava prejudicando sua formação.
-
Destruímos nosso lar. - dizia-lhe sempre. E nada mais terrível do que a
desestruturação da família. Você sabe disso.
Mariana
não dizia nada, o que lhe causava irritação.
-
Hoje, você pode não avaliar o que a separação pode representar para nossos
filhos, mas no futuro ninguém sabe.
-
Fique descansado que nossos filhos terão uma mãe de juízo que velará por eles.
- E terão um pai também.
-
Não, um pai eles não tiveram. Um pai que os traiu, traiu a família! Traiu...
-
Vamos admitir que errei. Mas sou eu só que errei? Não há tantas pessoas que
erram?
- Há erros imperdoáveis.
-
Onde estão seus sentimentos cristãos, de que você sempre se arrogou de
possuí-los?
-
Há um limite para tudo. Há certas coisas que uma mulher não pode tolerar.
- Eu não mereço seu perdão?
- Além do mais, se você quer saber...
- Sim... Diga!
-
Mariana refletiu, acariciou a cabeça de sua filha de seis anos, olhou-o
fixamente e proferiu:
- Não o amo mais.
Guilherme
empalideceu diante dessa inesperada declaração. Foi até a janela, olhou a rua
àquela hora, início de tarde de um fim de semana sem movimento algum, a não ser
uma ou outra pessoa que por ali circulava, um ou outro veículo. Uma tarde fria
de junho, com céu nublado. Voltou-se para Mariana e disse:
-
Espero que você repense o que acaba de dizer. Quero que você saiba que não
posso me privar da convivência com meus filhos. Não admito a hipótese de
permitir que nossa família soçobre, que se desuna, que...
-
Pois da minha parte (disse Mariana, altiva) a decisão está tomada e é
irreversível.
Guilherme
vestiu o casaco, que deixara no encosto da cadeira. Beijou os dois filhos,
dirigiu-se à porta de saída sem se despedir dela e bateu com toda a força o
batente.
Dois
anos já fazia que estavam de relações cortadas. Nesse tempo, Mariana fora vista
em companhia de um outro homem, o que chegara ao conhecimento de Guilherme.
No
mesmo dia que soube disso, telefonou-lhe:
-
Quero que você saiba que não admito em hipótese alguma que meus filhos sejam
criados por outro homem.
-
Você não pode me dar ordens. Estamos separados e não tenho que lhe dar
satisfação.
Foram
estas suas duras palavras.
Guilherme
ouviu-as e desligou o telefone sem retrucá-las.
Ele
próprio numa praia encontrou a mulher de beijos e abraços com o namorado. Ficou
como possesso.
Nessa
noite, não conseguiu conciliar o sono. Uma espécie de tormenta havia desabado
em sua cabeça. Uma idéia fixa penetrou-lhe sorrateiramente a mente. Teria que
dar cabo de tal situação. Como fazê-lo era a fórmula que se propunha com
angústia.
O
amigo mais próximo fora consultado.
-
O melhor é deixar o barco correr. Se não há mais jeito, aceite o fato como
consumado.
-
Custa-me muito. Não é por ela, você compreende.
-
Você ainda a ama?
-
Não digo que não. Uma relação de dez anos não acaba de uma hora para outra.
- Você tem que ponderar os fatos friamente. E
aceitá-los.
- Dizer é simples.
- O tempo cura tudo.
- É um caso sem cura.
Nem
o melhor amigo lhe trouxe conforto. Um vespeiro aturdia-lhe tenazmente dia e
noite. Mariana, mesmo passados dois anos de separação, em que não fora ainda
concretizada judicialmente, não lhe saía da cabeça. Noite e dia só pensava
nela. Não aceitava de forma alguma o rompimento. Tivera, na verdade, um caso
com Ana. Uma aventura desastrosa. O maldito bilhete esquecera no bolso, quando
devia tê-lo rasgado.
Passara
desde então a morar num pequeno hotel, de onde pouco saía, envolvido com seu
trabalho, para o qual não encontrava mais ânimo. Mesmo os livros de ficção, que
foram tempos atrás uma de suas paixões, largara-os de mão. Sua vida estava em
farrapos.
Deduzira,
por fim, tantas foram as tentativas feitas por ele de reconciliar-se com a
mulher, rebaixando-se e humilhando-se, que o caso estava consumado.
Tornara-se
um espectro de gente, barba sempre por fazer, passava horas num bar próximo
sempre sozinho, mas mantinha-se sóbrio. Passara a viver na mais desoladora
solidão, que era aliviada pela presença nos fins de semana dos filhos.
-
Pai, por que não volta pra casa? - perguntava o filho nas entrevistas.
-
O pai tem esperança de que um dia sua mãe volte atrás e possamos nos reunir de
novo.
No
décimo segundo ano de aniversário do casal, Guilherme ligou para Mariana:
- Preciso falar com você.
- Não temos mais nada que nos dizer. - disse
ela resolutamente.
- Não posso conceber que você tenha um
coração tão duro. Pense em nossos filhos, se é que você não pensa mais em mim.
Desta
vez foi ela que desligou o telefone, tendo ficado com o fone ainda no ouvido
com o ruído característico.
Repôs
lentamente o telefone no gancho. Dirigiu o carro, em seguida, ao local onde ela
morava. Pressionou a campainha. Ela mesma, vestida num robe, veio atender a
porta.
Abriu-a,
no que, sem dizer uma palavra, Guilherme desfechou-lhe um tiro à queima-roupa,
matando-a. Depois, dirigiu a arma contra a própria cabeça, disparando-a.
Os
dois filhos do casal estavam nessa ocasião na casa dos avós maternos e só
souberam do fato um mês.
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