Quase
todas as noites via o velho chegar bêbado de um bar mais que provavelmente. Subia
as escadas que levavam a seu quarto confinado, sem janelas, apenas com a porta
de entrada, que bem o retratava: uma cama de solteiro, um móvel pequeno ao lado
da cama, onde punha sobre a mesinha um castiçal com uma vela de sebo, cigarros
e fósforos, e embaixo guardava sapatos e chinelos – tendo ainda um cabideiro
onde depositava as roupas, - e ali em geral terminava seu dia pardo. Nessas
ocasiões ouvia-o cantarolar uma velha canção, talvez tão velha quanto ele, de
autor desconhecido (ou para mim pelo menos desconhecido):
”Faz
um ano que ela foi e não voltou”.
Era
esse o refrão de recôndita saudade ou dor que exprimia ao chegar à pensão de
cômodos no fim de todas as noites.
Que
fazia ele?
Nunca
procurei saber.
Informei-me,
muito por alto, que era reformado do exército, não sei em que patente.
Às
refeições, que tomava com um grupo de pensionistas, era um pouco mais
expansivo. Falava, em geral, sobre o momento político que atravessava o país,
fazendo críticas aos donos do poder. Não escondia sua preferência pelos
vermelhos.
Discutia
a questão muito abertamente, sem querer nem pretender ser o dono da verdade.
Era
ardoroso, porém, na defesa de seu ponto de vista. Mas respeitava quem lhe fosse
desfavorável.
Entre
todos aqueles modestos integrantes do grupo em que formava, sua capacidade
intelectual, amadurecida pelos anos, lhe dava certo realce. De modo que era
comum todos silenciarem para ouvi-lo.
Saía
do almoço, tirava uma soneca, depois se embrenhava pela cidade por meandros
nunca assaz conhecidos.
Ninguém
suspeitava (ou mesmo se interessava) de saber por onde andava.
Teria
uma namorada ou uma amante que frequentava?
Nada
se lhe perguntava. Nada se sabia.
Sua
vida íntima não transpirava para ninguém. Era um segredo fechado a sete chaves.
Ele
mesmo nada falava de si, de seu passado ou de seu presente. Era um túmulo.
Caçoava
com as empregadas da casa, insinuando que as amava ou que um dia lhes pediria
em casamento.
-
Estou velho (dizia), está na hora de pensar em arranjar alguém que cuide de
mim.
E
ria-se.
Era
um homem magro, de estatura média, com um olhar triste, um rosto cavado,
macilento – usava sempre um terno com gravata e um chapéu já meio desbotado
pelo uso.
A
não ser às refeições e no fim da noite, quando chegava alcoolizado à pensão,
sua presença em parte alguma era notada.
Por
onde andaria ou por onde se esconderia.
Daí a suspeita de que tivesse uma
amante.
Mas sobre isso nada referia. Nem
comentava ter ligação com uma mulher. Revelava, assim, que sua vida particular lhe
pertencia e nada dizia de si, fosse o que fosse.
Era
um solitário.
Ou
um triste.
Ou
talvez um homem desencantado com a vida.
À
noite, para espantar seus fantasmas ou suas amargas recordações, subia as
escadas cantando o verso:
”Faz
um ano que ela foi e não voltou”.
(dez/09)
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