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Thursday, August 15, 2013

O VELHO - Hamilton Alves



 
Quase todas as noites via o velho chegar bêbado de um bar mais que provavelmente. Subia as escadas que levavam a seu quarto confinado, sem janelas, apenas com a porta de entrada, que bem o retratava: uma cama de solteiro, um móvel pequeno ao lado da cama, onde punha sobre a mesinha um castiçal com uma vela de sebo, cigarros e fósforos, e embaixo guardava sapatos e chinelos – tendo ainda um cabideiro onde depositava as roupas, - e ali em geral terminava seu dia pardo. Nessas ocasiões ouvia-o cantarolar uma velha canção, talvez tão velha quanto ele, de autor desconhecido (ou para mim pelo menos desconhecido):
”Faz um ano que ela foi e não voltou”.
Era esse o refrão de recôndita saudade ou dor que exprimia ao chegar à pensão de cômodos no fim de todas as noites.
Que fazia ele?
Nunca procurei saber.
Informei-me, muito por alto, que era reformado do exército, não sei em que patente.
Às refeições, que tomava com um grupo de pensionistas, era um pouco mais expansivo. Falava, em geral, sobre o momento político que atravessava o país, fazendo críticas aos donos do poder. Não escondia sua preferência pelos vermelhos.           
Discutia a questão muito abertamente, sem querer nem pretender ser o dono da verdade.
Era ardoroso, porém, na defesa de seu ponto de vista. Mas respeitava quem lhe fosse desfavorável.
Entre todos aqueles modestos integrantes do grupo em que formava, sua capacidade intelectual, amadurecida pelos anos, lhe dava certo realce. De modo que era comum todos silenciarem para ouvi-lo.
Saía do almoço, tirava uma soneca, depois se embrenhava pela cidade por meandros nunca assaz conhecidos.
Ninguém suspeitava (ou mesmo se interessava) de saber por onde andava.
Teria uma namorada ou uma amante que frequentava?
Nada se lhe perguntava. Nada se sabia.
Sua vida íntima não transpirava para ninguém. Era um segredo fechado a sete chaves.
Ele mesmo nada falava de si, de seu passado ou de seu presente. Era um túmulo.
Caçoava com as empregadas da casa, insinuando que as amava ou que um dia lhes pediria em casamento.
- Estou velho (dizia), está na hora de pensar em arranjar alguém que cuide de mim.
E ria-se.
Era um homem magro, de estatura média, com um olhar triste, um rosto cavado, macilento – usava sempre um terno com gravata e um chapéu já meio desbotado pelo uso.
A não ser às refeições e no fim da noite, quando chegava alcoolizado à pensão, sua presença em parte alguma era notada.
Por onde andaria ou por onde se esconderia.
            Daí a suspeita de que tivesse uma amante.
            Mas sobre isso nada referia. Nem comentava ter ligação com uma mulher. Revelava, assim, que sua vida particular lhe pertencia e nada dizia de si, fosse o que fosse.
Era um solitário.
Ou um triste.
Ou talvez um homem desencantado com a vida.    
À noite, para espantar seus fantasmas ou suas amargas recordações, subia as escadas cantando o verso:
”Faz um ano que ela foi e não voltou”.

(dez/09)

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