Total Pageviews

Saturday, August 31, 2013

A PAIXÃO SECRETA

 

            Só hoje, quando ambos chegamos à velhice, nessa idade em que não digo que as ilusões passaram, que nunca passam, mas que se podem dizer certas coisas com franqueza, sem a inibição compreensível de outros tempos, em que as interpretações poderiam sugerir dubiedade ou pelo menos ambigüidade, pude confessar sem rebuços a uma amiga que, na adolescência, quando a via em algum lugar, dava-me ímpetos quase incontroláveis de me aproximar dela e revelar-lhe que era minha paixão secreta. Ela, naturalmente, à vista de tão surpreendente quão imprevista declaração, abriu-se num largo riso.
- Ora, porque não o revelou?
- Pois é (disse-lhe) sempre fui dominado por uma inibição invencível. E perdi certamente grandes momentos na vida por causa disso.
- Eu o teria pelo menos ouvido com muita atenção. Quem sabe até poderia acontecer um envolvimento. – disse ainda toda sorrisos.
Achava que poderia ser repelido. E isso, para mim, se ocorresse, me custaria um grande sofrimento.
A partir daí a conversa girou em torno de conceito de beleza masculina.
- Sabe o que é homem bonito para mim?
- Não faço idéia.
- Não é só beleza física. O intelecto, para mim, numa pessoa, conta mais que tudo.
- Bem nunca fui um intelectual, de modo que estaria perdido de qualquer jeito.
- Por exemplo (disse ainda rindo à minha observação), tipo de homem que me fascina é Roberto Campos. Ele não é nenhum tipo de beleza física assim... é até sob esse aspecto meio feio. Mas quando dá uma entrevista, mostrando sua alta capacidade de análise, acho-o lindo.
- Você citou o tipo de pessoa (perdoe-me) que não me agrada de jeito nenhum. Nada contra o Roberto Campos. Mas não gosto de suas idéias. E como homem... homem me produz urticária!
Ela se debulhou em risos.
- Uma vez, fui a um concerto de um pianista húngaro. Você precisava vê-lo!
- Sim...
- Era gordo, atarracado, desengonçado. Dava a impressão de que era o carregador do piano e não o pianista.
- Sentou-se à cadeira, rodopiou nela inúmeras vezes até se sentir bem instalado, olhou para a platéia, limpou o suor do rosto com o lenço, depois tranqüilamente baixou as duas mãos sobre o teclado. Foi um êxtase. Foi aplaudido, no fim, de uma forma delirante pelo público. As mulheres diziam, após o recital:
- Ele é lindo, é lindo, é lindo!...
- Veja como são as coisas. Como a arte tem o Dom de transformar as pessoas.
- Então a beleza do espírito muitas vezes suplanta ou supre a ausência de beleza física.
- Quem me dera ser um pianista famoso!
- Mas você, afinal, é um escritor, é também um artista. Quantas pessoas que o lêem, sem que você se dê conta. O admiram. Podem também achá-lo lindo por um trabalho que você produziu, etc.
- Mas nós, escritores, somos diferentes do músico, que pode medir no contato direto com o público a aceitação ou não de seu trabalho; ao passo que nós, cronistas ou contistas ou novelistas, nunca ficamos sabendo como é que um leitor reage.
- Eu mesmo lhe dirigi um cartão, manifestando minha simpatia por suas crônicas.
- Agradeço-lhe a atenção. Mas é diferente... O pianista recebe na hora o aplauso em troca de sua “performance”. Nós temos que esperar um cartão, um cumprimento seco e frio de rua – e isso não chega a ser minimamente caloroso. O escritor é, por isso, um solitário irremediável.
Estávamos entretidos nesse papo, quando ela voltou a falar dos tempos idos, em que tantas vezes, como lhe havia dito, senti ímpetos de abordá-la.
- É pena que você não tenha vencido sua inibição e não tivesse se aproximado...
- Pois é... agora é tarde.

Era uma senhora sexagenária, com rugas profundas no rosto, cabelos grisalhos. O tempo havia produzido nela efeitos devastadores. 

No comments:

Post a Comment