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Friday, September 27, 2013

ACONTECEU EM PARIS - Hamilton Alves


Num início de noite meio frio, sem ter o que fazer no hotel em que me hospedara, uma espelunca no Quartier Latin, até porque estava com vontade de tomar uma bebida que me esquentasse, procurei o Café de Flore, muito famoso por ser o reduto procurado pelos escritores da chamada “lost generation”, como a chamou Gertrude Stein.
Sentei-me a uma mesa ao fundo (não seria a que pertenceu a Hemingway, que era seu frequentador assíduo – e por isso era considerada intocável?).
Trazia no bolso do casaco uma pequena novela de aproximadamente sessenta páginas de Eça de Queiroz, que já havia lido no Brasil, “José Matias”, que é a história de um amante do espírito, não da carne, ou que sublima o amor da carne por uma devoção sem igual ao ente amado, que se satisfaz apenas na sua contemplação, obcecado pela teoria de Fitche, de que o prazer é uma ilusão.
Adquiri esse exemplar da novela de Eça num bouquiniste daqueles numerosos existentes à margem do Sena.
Regalei-me numa confortável cadeira e dei tratos à novela, traduzida num excelente francês, segundo percebi.
Há algum tempo (na década de 20 do século passado), me lembrava, ali havia sido palco de intermináveis discussões de escritores e pintores famosos, como além de Hemingway, Scott Fitzgerald e os de casa, Valéry Larbeaud, Paul Valéry, Picasso, Sartre, Simone de Beauvoir, etc.
O ambiente reinante parecia ressuscitar tais pessoas. Via-os a cada um, como se ali ainda estivessem reunidos, a fazer planos sobre seu trabalho literário, sobre o que se produzia artisticamente à época, quem era quem, e tanta celeuma desse tipo.
Até que entrou, em certo momento, enrolado numa capa que lhe ia até os pés, um poeta conhecido e muito aplaudido naquela ocasião, Jacques Prévert, autor de um poema também muito celebrado, “Déjeuner du matin”, que sabia de cor.
Tive a tentação de dizê-lo a Prévert. Certamente, ficaria feliz de saber que alguém conhecia seu poema e o havia decorado.
Mas como fazê-lo sem quebra da discrição? Prévert se acomodara a uma mesa bem afastada, o que de certo modo dificultava minha aproximação.
Mas a certa hora, com o intuito de ir embora, passei perto de onde se achava alojado. Bati-lhe no ombro. Trocamos algumas palavras, quando lhe informei que conhecia seu magnífico poema.
Ficou encantado quando o disse estrofe a estrofe.
Depois, quando ia já a certa distância, aproximando-me do hotel, algo estranho soou aos meus ouvidos – era o despertador, que me chamava à realidade do dia a dia.


(Nov/10)

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