João
Gonçalo percorre as ruas soturnas que o levam de volta, invariavelmente bêbado,
ao pardieiro onde mora, num quarto que é bem seu retrato psicológico: uma cama,
uma mesa, uma cômoda, onde guarda tudo que é imaginável, duas ou três cadeiras,
pouco mais que isso.
A
essa hora, a rua é deserta, poucas pessoas transitam ali. Noite invernosa,
Gonçalo vai metido em seu capote, um chapéu à cabeça.
Ao
chegar ao quarto, onde tem um gato que sempre o acolhe, recolher-se-á ao
beliche improvisado, eufemisticamente chamado de cama, com cobertas
amarfanhadas pelo constante uso. Pegará um livro de uma estante, o mesmo que lê
todas as noites antes de pegar no sono. Acorda-se muito tarde, olhando a parede
a sua frente, perguntando-se intimamente pelo dia em que a morte o levará desta
vida que, para ele, há muito perdeu o sentido.
Há
algum tempo, dentro de seu coração, há uma idéia fixa, alimentada com maior
vigor sempre que atravessa a rua em direção ao dito pardieiro, de matar a
mulher que ali naquele quarto morou com ele por algum tempo e da qual
separou-se.
Tentou
muitas vezes reconciliar-se, mas sem sucesso.
Na
noite seguinte em que o descrevemos, ligou para Ivone, que canta numa boate e
sempre trabalhou ali mesmo na época em que viveram juntos.
-
Preciso falar com você.
-
Não perca seu tempo, se pretende reconciliar-se. - disse-lhe.
-
Espere. Não desligue. Tenho uma coisa para te dizer.
-
Diga.
-
Tem que ser pessoalmente.
-
Não conte com isso.
-
Ivone, dê-me essa última chance.
Do
outro lado da linha ela silenciou.
-
Então? - perguntou ele. - É só por alguns instantes. Nada além disso.
-
Está bem.
-
Onde e quando a encontro.
-
No fim do show, amanhã.
-
Combinado.
No
fundo de sua alma tinha tramado tudo, de como atrairia Ivone para o carro e a
seguir a levaria a um local na periferia da cidade, que conhecia bem e ali
acabaria com ela.
Na
noite acertada, estacionou às proximidades da boate, esperando o término do
show. Quando, ao fim de meia hora, ela surgiu numa esquina fartamente banhada
de luz, ele sentiu um frêmito.
-
Como é bonita!
Ivone
tinha os cabelos amarrados atrás com um prendedor, usava uma calça jean e um casaquinho preto. Estava encantadora.
Tentou
introduzi-la no carro, mas recusou-se.
-
Você me falou que eram poucos instantes; não vejo necessidade de sairmos de
carro.
-
No carro, estaremos melhor instalados e evitamos os olhares dos outros.
-
Podemos caminhar um pouco.
Foi
tal sua insistência e a maneira ardilosa como conseguiu convencê-la a entrar no
carro, que acabou cedendo.
-
De que se trata?
-
Você logo saberá.
O
carro tomou rumo desconhecido. O que lhe causou estranheza.
-
Para onde está indo?
-
Você não conhece esta estrada?
-
Nunca passei por aqui.
-
Conheço esta cidade como a palma da minha mão.
-
É tão íntima assim para você?
-
Sim, conheço bem todos os bairros.
Numa
certa altura, estacionou; era um lugar deserto, sem o menor ruído fosse do que
fosse.
-
Bela noite. - disse ele.
-
Ivone protestou: Estou com pressa.
-
É só por uns momentos, como lhe disse.
-
Há uma hora que estamos nisso.
-
Não há razão de pressa.
-
Afinal, o que é que você quer?
Passou
as mãos em seu rosto e em seus cabelos, olhando-a embevecido, como se
completamente tomado de paixão.
-
Amo-a.
-
Não há mais nada entre nós. Você sabe bem disso.
Ele
ligou o motor do carro e fez a manobra de retorno. Ligou o rádio. Uma música
romântica logo se ouviu.
-
Onde você pretende ir?
-
Não se preocupe.
Próximo
de uma praia, num local ainda mais solitário, voltou a estacionar.
-
Bem, afinal, de que se trata?
Fixou-a
nos olhos e notou que Ivone estava mais bela que nunca.
-
Por que não voltamos um para o outro?
-
Se é isso o que você pretende, perde seu tempo.
O
mar próximo estava sereno e a lua projetava seus raios sobre ele.
O
silêncio perpassava todas as coisas.
-
Quero ir embora.
Tentou
abrir a porta do carro, ele a segurou. Dominou-a e sufocou-a com uma peça de
roupa que trazia no banco detrás.
Abandonou
o corpo num matagal.
Descoberto
o crime, os jornais lhe deram amplo noticiário.
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