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Saturday, September 7, 2013

PAIXÃO - Hamilton Alves



João Gonçalo percorre as ruas soturnas que o levam de volta, invariavelmente bêbado, ao pardieiro onde mora, num quarto que é bem seu retrato psicológico: uma cama, uma mesa, uma cômoda, onde guarda tudo que é imaginável, duas ou três cadeiras, pouco mais que isso.
A essa hora, a rua é deserta, poucas pessoas transitam ali. Noite invernosa, Gonçalo vai metido em seu capote, um chapéu à cabeça.
Ao chegar ao quarto, onde tem um gato que sempre o acolhe, recolher-se-á ao beliche improvisado, eufemisticamente chamado de cama, com cobertas amarfanhadas pelo constante uso. Pegará um livro de uma estante, o mesmo que lê todas as noites antes de pegar no sono. Acorda-se muito tarde, olhando a parede a sua frente, perguntando-se intimamente pelo dia em que a morte o levará desta vida que, para ele, há muito perdeu o sentido.
Há algum tempo, dentro de seu coração, há uma idéia fixa, alimentada com maior vigor sempre que atravessa a rua em direção ao dito pardieiro, de matar a mulher que ali naquele quarto morou com ele por algum tempo e da qual separou-se.
Tentou muitas vezes reconciliar-se, mas sem sucesso.
Na noite seguinte em que o descrevemos, ligou para Ivone, que canta numa boate e sempre trabalhou ali mesmo na época em que viveram juntos.
- Preciso falar com você.
- Não perca seu tempo, se pretende reconciliar-se. - disse-lhe.
- Espere. Não desligue. Tenho uma coisa para te dizer.
- Diga.
- Tem que ser pessoalmente.
- Não conte com isso.
- Ivone, dê-me essa última chance.
Do outro lado da linha ela silenciou.
- Então? - perguntou ele. - É só por alguns instantes. Nada além disso.
- Está bem.
- Onde e quando a encontro.
- No fim do show, amanhã.
- Combinado.
No fundo de sua alma tinha tramado tudo, de como atrairia Ivone para o carro e a seguir a levaria a um local na periferia da cidade, que conhecia bem e ali acabaria com ela.
Na noite acertada, estacionou às proximidades da boate, esperando o término do show. Quando, ao fim de meia hora, ela surgiu numa esquina fartamente banhada de luz, ele sentiu um frêmito.
- Como é bonita!
Ivone tinha os cabelos amarrados atrás com um prendedor, usava uma calça jean  e um casaquinho preto. Estava encantadora.
Tentou introduzi-la no carro, mas recusou-se.
- Você me falou que eram poucos instantes; não vejo necessidade de sairmos de carro.
- No carro, estaremos melhor instalados e evitamos os olhares dos outros.
- Podemos caminhar um pouco.
Foi tal sua insistência e a maneira ardilosa como conseguiu convencê-la a entrar no carro, que acabou cedendo.
- De que se trata?
- Você logo saberá.
O carro tomou rumo desconhecido. O que lhe causou estranheza.
- Para onde está indo?
- Você não conhece esta estrada?
- Nunca passei por aqui.
- Conheço esta cidade como a palma da minha mão.
- É tão íntima assim para você?
- Sim, conheço bem todos os bairros.
Numa certa altura, estacionou; era um lugar deserto, sem o menor ruído fosse do que fosse.
- Bela noite. - disse ele.
- Ivone protestou: Estou com pressa.
- É só por uns momentos, como lhe disse.
- Há uma hora que estamos nisso.
- Não há razão de pressa.
- Afinal, o que é que você quer?
Passou as mãos em seu rosto e em seus cabelos, olhando-a embevecido, como se completamente tomado de paixão.
- Amo-a.
- Não há mais nada entre nós. Você sabe bem disso.
Ele ligou o motor do carro e fez a manobra de retorno. Ligou o rádio. Uma música romântica logo se ouviu.
- Onde você pretende ir?
- Não se preocupe.
Próximo de uma praia, num local ainda mais solitário, voltou a estacionar.
- Bem, afinal, de que se trata?
Fixou-a nos olhos e notou que Ivone estava mais bela que nunca.
- Por que não voltamos um para o outro?
- Se é isso o que você pretende, perde seu tempo.
O mar próximo estava sereno e a lua projetava seus raios sobre ele.
O silêncio perpassava todas as coisas.
- Quero ir embora.
Tentou abrir a porta do carro, ele a segurou. Dominou-a e sufocou-a com uma peça de roupa que trazia no banco detrás.
Abandonou o corpo num matagal.
Descoberto o crime, os jornais lhe deram amplo noticiário.


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