O
prêmio Nobel deve dar ao seu ganhador uma espécie de aura que o faz julgar-se
acima do pensamento corrente e que pode perfeitamente arrogar-se o direito de
ditar o último conceito sobre tudo, desde o tema mais complexo que se refere,
por exemplo, à existência ou não de Deus, tema, aliás, que tem atravessado sem
solução até os dias atuais, envolvendo coisas mais corriqueiras, como a
política corrente nos países, a moda de vestir ou o destino do planeta ou teorias
sobre o triunfo das ideologias ou seu rotundo fracasso.
Foi
assim que num dia desses o escritor José Saramago foi chamado a um auditório,
cercado de jornalistas, quatro ou cinco, de críticos de literatura, e de não
sei mais quem, para ser interpelado.
Alguns
assuntos foram feridos por ele, de preferência os que dizem respeito a Deus.
Ele dá, a esse respeito, uma no cravo, outra na ferradura, com dizer-se que nem
sempre acerta (ou nunca acerta). Até hoje, que se saiba, ninguém descobriu se Deus
existe ou não. De modo que se trata de assunto, de começo, inabordável, que nem
mesmo um prêmio Nobel, por mais avisado, deveria arriscar sua opinião, sob pena
de cobrir-se de ridículo. Mas Saramago, quando provocado, foi em frente e
sapecou que não devia a cura de sua doença a Deus. Quem o salvou foram os médicos
e os remédios que lhe foram ministrados.
Quanto
a ser comunista, por que sê-lo ou por que não sê-lo? Antes sê-lo. Mesmo depois
da fragorosa derrota do comunismo no país que fez uma revolução histórica para
adotá-lo, continua firme na idéia de que tudo pode se resolver com a formação
de uma sociedade do tipo da preconizada por Marx.
“Sou
aquilo que se pode chamar de comunista hormonal”. Essa categoria de comuna não
fora ainda catalogada. “Assim como tenho no corpo um hormônio que faz crescer a
barba, há outro que me obriga a ser comunista”. De modo que se deduz que, para
ser comunista, não precisa mais da razão; os hormônios é que lhe ditam a norma
de pensar. No caso, de mal pensar, porque o comunismo obviamente não se
sustenta mais; caiu de podre. Mas segue fiel a Marx (embora tenha rompido com
Castro), afirmando que “Marx nunca teve tanta razão como agora”. Mas no fim,
não se mostrou tão convencido das razões do filósofo alemão: “Vejamos se Marx
tem ou não razão”.
“A
Bíblia é um livro (diz ele) que não se pode deixar nas mãos de um inocente, só
tem maus conselhos, assassinatos, incestos...” Que Bíblia terá lido Saramago?
Deve ser alguma que ninguém conhece. Ou ninguém leu.
No
fim, falando da literatura brasileira, diz alguma coisa curiosa: ”Há algum
tempo os escritores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns
casos podemos dizer que conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a
portuguesa. Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral, Manuel Bandeira, essa
gente era lida com paixão (não citou, por estranho, nem Machado nem João
Guimarães Rosa, justamente os maiores). Agora que eu saiba não há nenhum
escritor brasileiro que seja lido com paixão em Portugal. Não temos
obrigação de descobrir o que nem sabemos se existe”. Saramago, como se vê,
entrou de sola na falta de escritores brasileiros ou em escritores brasileiros que
não constituem mais a paixão do leitor português. Alguma coisa deve estar dando
errado com o leitor do outro lado do Atlântico para desconhecer um dos maiores
escritores da literatura universal, Guimarães Rosa, cuja obra deveria ter
precedido à de Saramago com o Nobel, disparadamente.
No
fim da entrevista, uma pessoa, no recinto, ergueu-se nos calcanhares e saudou o
escritor com essas palavras: “Em nome de todos os brasileiros, obrigado por
existir”.
Até
que não lhe calharam de todo mal.
(Nov/08).
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