Em
“O Castelo”, uma das obras mestras da bibliografia de Franz Kafka, há uma
passagem em que uma pessoa fala pelos cotovelos e isso diverte o espírito de K,
que está pronto para pegar no sono (cap. 23). E ele pensa:
“Gira,
moinho, gira,
Gira
só para mim”.
Acho
que esse fenômeno alcança (ou deve alcançar) um número grande de pessoas,
enfeitiçadas pelas mais diversas circunstâncias em que alguém, a certa hora
inesperada, inicia uma conversa, podendo ser a mais tediosa.
Do
mesmo encanto sofro eu desde tenra idade. Há pessoas que me enfeitiçam com seu
desfile de tolices. Ou me expresso mal o que quero dizer: não chegam a ser
tolices. É dessas coisas que o comum das pessoas discorre como seu tema primordial
de conversa, sem pé nem cabeça, sem nexo, mas que têm esse fascínio por isso
mesmo, ou não dizem nada e por tantas vezes constituem o retrato da vida como
ela é (tomando a frase de Nelson Rodrigues).
Conheci
uma negra velha, amiga de minha mãe, que tinha um time de amigas do nível de
Cordolina (como se chamava).
Cordolina
primava por ser uma espécie de moinho que girava, girava, girava, sem parar,
emendando um assunto no outro, os mais díspares e desencontrados.
Deitado
num sofá, meio sonolento, em dias de chuva, especialmente, adorava ouvi-la
narrando coisas trivialíssimas. Como me seduziam seus relatos de tudo que acontecia em torno de sua vida pacata, de mulher
pobre, curtida pela vida, sentindo-se feliz a seu modo, sem grande queixa de
nada, suportando seu fardo sem consciência de que se tratava de um fardo, como
se tudo fosse a cota natural que a sorte lhe havia reservado.
Ficava
tempos ouvindo-a sem entendê-la (o que era para mim o de menos). A forma como
contava os fatos (e eram tantos), envolvendo uma série de acontecimentos em
cadeia, isso é que produzia um bom efeito em meu espírito, atraído por sua voz
em tom uniforme. Nada me era tão benfazejo quanto o eco dessa voz reboando
pelos quatro cantos da sala.
Ficava
preso ou, a bem dizer, suspenso em só ouvi-la.
Quando,
tempos depois, despedia-se de nós, voltando a sua modesta e trabalhosa
existência, era como se acabasse de nos deixar uma feiticeira, que tivesse nos
legado os dons de seus prodígios, que ainda enchiam o ar de sua presença
mágica.
(set/10).
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