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Thursday, October 24, 2013

CORDOLINA - Hamilton Alves

  
Em “O Castelo”, uma das obras mestras da bibliografia de Franz Kafka, há uma passagem em que uma pessoa fala pelos cotovelos e isso diverte o espírito de K, que está pronto para pegar no sono (cap. 23). E ele pensa:

“Gira, moinho, gira,
Gira só para mim”.

Acho que esse fenômeno alcança (ou deve alcançar) um número grande de pessoas, enfeitiçadas pelas mais diversas circunstâncias em que alguém, a certa hora inesperada, inicia uma conversa, podendo ser a mais tediosa.
Do mesmo encanto sofro eu desde tenra idade. Há pessoas que me enfeitiçam com seu desfile de tolices. Ou me expresso mal o que quero dizer: não chegam a ser tolices. É dessas coisas que o comum das pessoas discorre como seu tema primordial de conversa, sem pé nem cabeça, sem nexo, mas que têm esse fascínio por isso mesmo, ou não dizem nada e por tantas vezes constituem o retrato da vida como ela é (tomando a frase de Nelson Rodrigues).
Conheci uma negra velha, amiga de minha mãe, que tinha um time de amigas do nível de Cordolina (como se chamava).
Cordolina primava por ser uma espécie de moinho que girava, girava, girava, sem parar, emendando um assunto no outro, os mais díspares e desencontrados.
Deitado num sofá, meio sonolento, em dias de chuva, especialmente, adorava ouvi-la narrando coisas trivialíssimas. Como me seduziam seus relatos de tudo que  acontecia em torno de sua vida pacata, de mulher pobre, curtida pela vida, sentindo-se feliz a seu modo, sem grande queixa de nada, suportando seu fardo sem consciência de que se tratava de um fardo, como se tudo fosse a cota natural que a sorte lhe havia reservado.             
Ficava tempos ouvindo-a sem entendê-la (o que era para mim o de menos). A forma como contava os fatos (e eram tantos), envolvendo uma série de acontecimentos em cadeia, isso é que produzia um bom efeito em meu espírito, atraído por sua voz em tom uniforme. Nada me era tão benfazejo quanto o eco dessa voz reboando pelos quatro cantos da sala.
Ficava preso ou, a bem dizer, suspenso em só ouvi-la.
Quando, tempos depois, despedia-se de nós, voltando a sua modesta e trabalhosa existência, era como se acabasse de nos deixar uma feiticeira, que tivesse nos legado os dons de seus prodígios, que ainda enchiam o ar de sua presença mágica.


(set/10).

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