De
vez em quando, em imaginação, revivo algumas cenas da infância, que sempre me
foram muito caras, independentemente de adversidades de ordem familiar ou econômica
com que tivessem sido marcadas. Para mim (ou como para todo o menino) isso não
contava. Como não conta ainda hoje. A infância é um mundo à parte. Todo mundo
que a viveu sabe perfeitamente disso. Depois da infância, abre-se um novo mundo
absurdo, com o qual o menino vai bater sempre com a cabeça sem achar meio de se
adaptar.
Queria
ver o Hélio Canela, por exemplo, subindo o morro da Avenida Tico Tico depois da
pelada no Campo do Manejo, com um sorriso largo e com a calça da perna esquerda
arregaçada até o joelho.
Ver
de novo o riso do nego Muru (o Wilson). Ainda havia os irmãos Walmor e o Walter
(este mais moço que os outros dois).
Ver
meu pai regressando do trabalho, no fim da tarde, atravessando sob o vento sul
o dito Campo do Manejo.
O
atendimento sempre atencioso do Oliveira no Açougue do Povo (também no Campo do
Manejo), cuja irmã foi a minha primeira paixão;
E
as cabras, as cabras, balindo sob a chuva?!
Queria
ver o Pouca Roupa (João Cabral), desmazelado como sempre, carregando umas
roupas amarfanhadas e rotas sobre o corpo, mas com uma tal expressão de alegria
que era de contagiar.
Daria
tudo para apreciar o Çagarra fazendo ruído de motor de carro com a boca, dando
marcha à ré ou manobrando com alta perícia um carro imaginário. E o Araponga,
dando seus guinchos a toda hora.
O
Galego da Pedra do Paraíso, quando o sol baixava, subindo com um saco às costas
(nunca se sabia o que continha) em direção à morada (que ficava sob essa
Pedra).
O
Faustino, debruçado no balcão da venda do João Linhares, tomando sua pinga. Ou
certa vez, armado de facão, saindo em perseguição a um desafeto, que imitou seu
modo de falar fino.
O
Pequilo sempre com seu ar preocupado, cheio de hemorróidas, como contava aos
amigos, com o pijama com que acordava de manhã e os chinelos, atravessando as
ruas que levavam à venda do João.
E
o Tromba, por onde andará o Tromba?
Que
dizer do dono de uma quitanda que não tinha nada para vender, a não ser
saquinhos de amendoim.
A
Lemoa, que diariamente vinha com um pote d’água às costas, de uma boa distância.
Que beleza vê-la nessa travessia.
E,
para encerrar esse desfile de memórias, dona Branca à janela de sua casa,
esperando o marido, Targino, cujos paletó e calça lhe dançavam no corpo. Haverá
coisa mais bonita?
(abr./10)
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